MFÛMU: instituição de Autoridade

Por Patrício Batsikama

 

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Interessa-nos estudar aqui a origem desta instituição, mfûmu. Utilizaremos a linguística comparada como método. Desde já, importa salientar que será tido em conta aqui o “proto-bantu” (ancestralidade) deste termo, o que significa que embora inicialmente fizéssemos recursos as significações kikôngo serão consideradas aqui as semânticas de outras línguas vizinhas.

Na trama semântica do termo mfûmu, encontramos duas dimensões onde intervenham três grupos de significações:

1) Dimensões

(i) Uma só linhagem uterina exerce o poder: (a) mfûma quer dizer menstruações (Laman, 1936: 556); (b) vûmu: útero ou gravidez (Laman, 1936); (c) mfûmu: irmão mais velho numa linhagem composta de várias famílias.

(ii) Institucionalização do poder: (a) Assembleia consultativa (Laman, 1936: 556) que emite orientações e práticas por executar; (b) vûmu: ventre como símbolo da exigência alimentar; (c) mfûmu: proprietário de bens, terras e homem livre.

A seguir, vamos tentar construir a raiz semântica na sua evolução a partir das amostras morfológicas que encontramos nas outras línguas bantu.

Kikôngo

1) Mfûmu = +ûm (autoridade)

2) Ñkûmba = +ûm (cordão umbilical/origem de vários irmãos/nome)

3) Ndûmbululu = +ûm (nome; história da linhagem/família)

Lyumbûndu

1) Utumini = +um (Autoridade)

2) Ocikumbo/a = +um (família; conjunto de casas num só recinto: eumbu)
3) Untûmbulu = +um (nome da família das pessoas do mesmo nkûndu: aldeia)

Kwâdi

1) Hume: +um (ordem emitida pelo Conselho/eumbo)
2) Humbo = +um (paus que marcam limites da circunscrição; famílias)
3) Yeumbelo: +um (histórias que unem diversos ancestrais; adivinhas dos adultos)

A raiz “+um”, que seria proto-bantu, indica que o poder nasceu no “seio de várias” famílias da mesma origem (vumu): o mais velho que inicialmente assume a liderança para estabelecer a harmonia e a

concordância entre vários ganhará outro sentido: aquele que é reconhecido pelas leis dos ancestrais-fundadores como líder de inúmeros “grupos de famílias”. Aqui nasce a investidura. Desde então, mfûmu passa a ser uma autoridade investida: “kimfûmu mambu ma kya ñtûmbwa” (a autoridade é uma questão de investidura).
A ideia terá evoluído de irmão mais velho para “representante” da família mais velha entre várias outras famílias. A imagem inicial é de o mais-velho (mukûlu) desempenhar as suas funções domésticas.
Até este ponto, a economia estaria na sua fase rudimentar, essencialmente baseada na agricultura, pesca fluvial e pastorícia. A sedentarização das populações terá criado a instituição Vûmu nsi: Direito fundiário (por nascença). Como podemos notar, aqui está ligada a ideia de origem uterina de executor do poder e, ao mesmo tempo, implica uma variedade de vûmu: campo de produção associada à criação do nsi (Estado: conjunto das leis). Nesta etapa, as classes sociais são definidas em livres (aqueles que têm famílias ligadas às terras/vûmu); não-livres (aqueles que não têm vûmu/terras ou aqueles que emprestaram as terras/campos). A união destes vários vûmu nsi é possível através dos rituais “dia musûnga” (Sousberg, 1954: 396). 

A última seria de Mfûma: Assembleia Consultativa. Na lógica seria sequência de vûmu nsi. Na mitologia kôngo, a transição de vûmu nsi para mfûma passa pelo monstro Na Vûmu, um sábio que conhecia a História de todos intervenientes no “dia musûnga”, que tinha sabedoria em “fundir” diferentes leis para as diferentes famílias numa só “terra delimitada” (Söderberg, 1956:18; Mertens, 1936: 122; Van Wing, 1921:144). Numa análise qualitativa, Na Vûmu seria a antropomorfização da Assembleia e todas as instituições nelas relacionadas. O designado ou o eleito desta Mfûma era, como é óbvio, mfûmu, quer dizer, “aquele que (i) recebe do Vûmu/Mfûma a legitimação de executar as orientações estipuladas; (ii) representa a convergência e consenso de todos”.

A legitimação e o consenso já não poderiam ser apenas biológicos (oriundos do mesmo útero). Começa-se aqui a primeira etapa da simbologia do poder: insígnias do poder. Em kimbûndu ainda existe kijînga que é o chapéu daquele que é investido, que a Assembleia entregava ao designado/eleito”.20 Esta Assembleia será chamada Lûmbu: (i) institucionalização de Nkûmba (dia musûnga); (ii) institucionalização de Ndumbululu (legalização da união das diversas linhagens). Vamos explicar os dois pontos para maior esclarecimento. 

(i) ÑKÛMBA: os rituais de “dia musûnga” consistiam em três mi-lûmbi mya ñkûndi (três semanas para institucionalização da amizade/Irmandade). Por cada semana, existia um recinto lûmbu que significava literalmente “recinto da instrução”. Isto é, socialização que, na verdade, era nova nesta etapa: nestes novos recintos eram “fundidas” as novas normas dos novos associados. Eram acauteladas as diferenças – levava uma semana (quatro dias). Em cada Lûmbi (recinto), os jovens eram chamados a construir uma casa para todos (mbôngi).

Esta casa tornava-se, na verdade, o símbolo da nova “Mãe de todos”. Depois da socialização, a mbôngi passava a ter outras significações: (i) lugar onde deveria ser embalsamado o cadáver do todo “eleito investido”; (ii) lugar de julgamento, onde as leis devem espelhar todos signatários desta Aliança; (iii) lugar onde deve funcionar o novo eleito. Importa esclarecer que três mi-lûmbi tinham, em comum, um só mbôngi. E, quando totalizavam-se nove mi-lûmbi, os três mbôngi passavam a constituir um só Yêmbe, também chamado Ngûndu (Nkûndu, Nkônde, etc.), geralmente localizado numa terra elevada fértil, onde há presença de nascentes de água (nkûmbidila).

Por esta razão, Ñkûmba é tido como algo de “todos nós, e que espalha em todos lados” (Laman, 1956: 733). Aqui os constituintes femininos possibilitam este facto, depois de “dia musûnga”. A exogamia proclamada – com fins de juntar os novos associados em cunhadio – permitia que todos sejam nkûmbi (cunhados) entre eles. E quem não tem irmã, passava a ser “sem aliado/irmão/cunhado/família”. Pois, a “irmã” aqui é nsânga (Bentley, 1895:794): “aquela que possibilita a aliança/mistura”. Ainda hoje vigora este princípio. Por isto, o nome que significa origem (da família, dos ancestrais) traduz-se em ñkûmbu (cordão umbilical).

A socialização através de mi-lûmbi passará a constituir as “cerimónias ou rituais de passagem”: nas meninas o temo kikûmbi (cikûmbi) ainda vigora nos dias de hoje e especifica que, à origem, era uma institucionalização para socialização dos “jovens cunhados” na construção de um só país de diversas populações. Isto é, nkûmbi passa a significar iniciado (Bentley, 1895:853). Nestas cerimónias, os iniciados/ñkûmbi deveriam memorizar bem os seus ndûmbululu como forma de preservar a irmandade dos constituintes da sociedade. 

(ii) NDÛMBULULU: para os lexicógrafos, o termo significa: (a) sobrenome; (b) explicação ou interpretação [deste nome]; (c) nome da família, clã; (d) nome de santo; nome da parada” (Laman, 1936: 675). Como está nítida, é a ndûmba (jovem mulher) que torna possível a existência deste sobrenome que, na verdade, é uma mistura de várias famílias. Por isso ndûmba significa mistura (Bentley, 1895:882) de vários cunhados. O termo ndûmbululu é composto por (i) ndûmbu: origem uterina dos associados; (ii) lulu é um sufixo que significa ação, ou tornar-se completo (Laman, 1936: 429). Logo, ndûmbululu significaria “conjunto de origens uterinas.

Existem três tipos de ndûmbululu: (1) Reservados às linhagens que “dia musûnga” quer dizer que criaram os ñkûmba. Por esta razão, o patrónimo da linhagem proporciona o verbo patronímico. Exemplo:

“Mazînga, wazînga makânda mawônsono”; etc. (Batsîkama, 2010: 45). (2) Segundo tipo ndûmbululu é sequencial (Idem, 2010: 45-46) e constitui a classe dos fundadores dos clãs e aldeias por ter recebido as orientações expedidoras do Lûmbu (Lethur, 1960: 12, 42) com propósito de selar novas relações com outras populações (através de “dia musûnga”). Exemplo: “Kuna Mbângala batûkidi bambûta…”; “Tukidi ku mayânda ma nzâdi, tutûngidi Nsânda…” (Cuvelier, 1934: 3, 7, 12, 18). (3) O último tipo de ndûmbululu é a forma ordinária que explica a sua função social (na verdade, desempenhada pelos fundadores) dos membros da linhagem na distribuição das tarefas sociais. São relatos bem conhecidos dos seus membros e cabia ao Vûmu nsi assegurar que os seus sobrinhos tivessem memorizado bem os relatos.

Isto é, era fundamental conhecer o seu nome/nkûmbu nesta sociedade recém-criada. Este nome tinha, na verdade, uma forte ligação com os limites do espaço onde se vivia, como também legitimava a sua cidadania nas questões de nsi (Estado, leis, etc.). Por esta razão, em todos os espaços por onde os ancestrais fundadores do reino do Kôngo passaram, deixaram seus traços: Mwêne Ñjîng’a Mbândi (Ndôngo/Matâmba); Ma Ñkônde; Omukwangobe u’e Kondo (Kwânyama/Mandume ya Nemufayo); Yînga/Dînga (Kawûndu); etc. (Batsîkama, 2011: 109, 111, 114, 118-120).

O que acabamos de ver indica a origem da instituição de mfûmu nas regiões meridionais de Angola. Ora, tendo em conta as migrações dos proto-banto orientais (e setentrionais) que formarão o núcleo proto-kôngo de Mbata/Mpângu, a instituição mfûmu sofrerá inúmeras dinâmicas. Para provar a origem destas dinâmicas, importa traçar, primeiro, três grupos bantu orientais: (i) Nsôngo/Pênde; (ii)Luba/Telela; (iii) Mbâla/Kuba. 

 

Nsôngo

1) Nkumu = +um (poder mágico/feitiço para chuva e trovoadas)
2) Bumu = +um (ventre; aquele que fornece alimentos)
3) Nkombo = +om (nome, título)

Luba

1) Bulumpwe = +um (poder mágico, virilidade)
2) Lome = +om (conjunto de vários jina/nomes na atribuição dos lugares sagrados)
3) Bumpife: +um (amuleto do poder na caça, talismã que dá sorte na caça)

Mbala

1) Nkumu = +um (poder, autoridade do pai ao seu filho)
2) Mbumu = +um (nome da linhagem do chefe; nome de Deus criador)
3) Nkombe = +um (divindade da fertilidade masculina)

Vamos sublinhar dois aspetos:

(i) A ideia do poder está associada à virilidade nos bantu orientais e, ao mesmo tempo, reserva o “reconhecimento uterino” nos patrónimos que concorrem ao poder político. Nos Kôngo temos lûmi que significa “semente viril”, nlûmba que quer dizer “homem grande” que resiste nas batalhas. Aliás, em kikôngo nkuma significa força física (Bentley, 1895:781).21

(ii) A ideia do poder está associada ao sagrado, geralmente atribuído à divindade da fertilidade masculina, ora importância das autoridades religiosas na legitimação do poder político (Heusch, 1972; 2000).

Estamos aqui perante uma influência que dinamizou sobremaneira a instituição de mfûmu kôngo. Partirmos do pressuposto que a instituição mfûmu proto-kôngo terá nascido em Kawûndu’a Mbângala, ao Norte de Tsodilo Hills (Vansina, 2004), e do núcleo Leste de Mbata/Mpângu. Assim sendo, a ideia de “linhagem uterina das autoridades” ser “investida por outras instituições” e, posteriormente, ser “confirmada pelo poder mágico” explicaria, por um lado, as influências orientais e, por outro, a coexistência já no proto-kôngo das populações oriundas do Sul e as oriundas do Nordeste. Razão pela qual sobrevivem dois conceitos quase paralelos: (i) autoridade por nascença que se deve conquistar nas eleições; (ii) investidura da autoridade através da observância das leis (assimiláveis aos ancestrais: mortos, demiurgos).

A institucionalização da autoridade na sua fase de “pequeno nsi” liderado por Ne Nkâyi é proto-bantu (Batsîkama, 2010: 213-220; Vansina, 2004), numa altura em que a agricultura é sustentada com
auxílio da metalurgia, permitindo assim, a domesticação de animais relativamente pesados, cujos derivados servirão nas insígnias do poder (mfûmu): (i) mpûngi (dentes de elefante22 já trabalhados com utensílios de ferro); (ii) dentes, unhas e pele de leopardo ou leão (Mertens, 1942:86); makonga = lanças especiais de caça; a confeção de vestimentas a partir da pele de leopardo indica a existência de
instrumentos de ferro: “pais de Leopardo” (Balandier, 2009:17); (iii) bengala (bem trabalhado com utensílios em ferro); (iv) mbele, faca (existia faca em madeira, mas geralmente faca foi em pedra e/ou em ferro); (v) etc.
Linguisticamente, a instituição de mfûmu envolveria a Idade de Ferro Antiga ocidental: a fundação dos reinos (Obenga, 1981; Vansina, 2004) estaria entre século II e IV da nossa era (Batsîkama, 2012: 273). Alguns resultados arqueológicos ao longo do rio, nas zonas do Kinsâsa até Noki, apresentam duas datas abalizadoras: por um lado, século II e III depois do Cristo e, por outro, século IV e VII depois do Cristo. Confrontámos os resultados dos especialistas (Phillipson, 2005; Maret, 1986; Clist, 1991; etc.) com os resultados de 21 palavras ligadas a esta instituição que analisámos.

Foram – muito recentemente – encontradas algumas estruturas construídas em pedras debaixo de Kûlumbîmbi (Sé Catedral de São Salvador). Defendemos que a datação destas estruturas pudesse ajudar a perspetivar as datas da fundação do Kôngo. Ao mesmo tempo, chamamos atenção a dois fatos: (i) caso a datação for do século XVI, seriam apenas ligadas a “arquitetura lusitana”, já que se sabe, o actual Kulûmbimbi seria apenas 8,75% daquilo que terá sido Sé Catedral de São Salvador.23 Daí justificaria a expressão: “o que restou…” (Kûlumbimbi). Mas a pergunta agora é: porque apenas esta parte terá sobrevivido? (ii) Ou, ainda, a justificação seria muito provavelmente na localização das prováveis nove sepulturas24 (de forma circular, tal como é verificado nos Mukubal [Bettencourt; Cotta, 1962:1925]) muito significativas para a União, e a sua datação poderá espelhar o tempo que levou a fundação da União: (a) cada sepultura estaria ligada a uma data específica, caso for vários mbôngi (cujos nove fazem Ngûndu); (b) todas elas poderiam ser da mesma época, caso forem apenas simbólicas, mas ainda assim cada “estrutura circular” é possuidora de uma data específica.

Este ponto é importante nesta altura que estão a decorrer preparativos para escavação séria – depois de localizar onde escavar, e depois de classificar o “Centro Histórico de Mbânz’a Kôngo como património nacional angolano – e esperemos que se tenha em conta que nos arredores das atuais ruínas da Sé Catedral de São Salvador, é possível encontrar alicerces construídas no século XVII, e ao mesmo tempo, encontrar outras estruturas que possam ser pré-lusitanas.

 

Extratos do livro: Lûmbu: A democracia no antigo Kôngo

 

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