Retrato da centenária vila do Bungo

Por Silvino Fortunato

Quem parte do Negage com destino à vila é levado confortavelmente por uma estrada asfaltada, protegida por frondosos eucaliptos perfilados lado a lado. Uma paisagem planáltica é visível em ambos os lados da estrada, mostrando as casas abandonadas que sustentavam a florescente criação de gado nas fazendas coloniais, até antes da independência nacional.

Algumas dessas casas conservam ainda as paredes e os tectos, mas a maioria está reduzida a escombros, numa demonstração clara do abandono a que foram remetidas, apesar de terem sido repassadas a nacionais após a sua nacionalização em 1976. A vila do Bungo tem as ruas perpendiculares à estrada nacional que vai até à fronteira com a República Democrática do Congo, passando pela comuna do Tsoso e pelos municípios da Damba e de Maquela do Zombo.

As ruas da circunscrição são de terra batida, com separadores a sinalizar os sentidos ascendente e descendente. Nos separadores míngua alguma relva e plantas que clamam por água, escassa em tempo de cacimbo. Há no centro da vila um enorme jardim, dominado pela “planta de ouro”, com uma torre ao meio a dar as “Boas-vindas à vila do Bungo”.

A localidade é constituída por uma maioria de casas que vêm desde a era colonial portuguesa, sendo elas geminadas. As residências estão acopladas a lojas. Algumas construções novas, de baixa qualidade arquitectónica, foram sendo infiltradas entre as casas coloniais, ofuscando, em muitos casos, a beleza das edificações antigas.

Muitos ocupantes das casas coloniais fizeram rectificações nas mesmas, substituindo quase sempre o tecto de telha ou de lusalite por chapas chinesas.
A vila do Bungo apresenta um figurino pacato, com pouca gente a circular pelas ruas. São visíveis algumas pessoas sentadas nas reduzidas escadas das residências e nos quintais delimitados por chapas de zinco, que substituíram os antigos muros de pouco menos de um metro.

A maioria das instituições públicas, como a esquadra da Polícia Nacional, o palácio, a emissora da Rádio Nacional, e outras, estão situadas em ruas não asfaltadas. É notória a presença de bairros suburbanos, surgidos depois da independência nacional, com casas maioritariamente de adobe e chapas de zinco.

“As casas dos populares estavam muito longe da vila. Os colonos viviam aqui sozinhos. A gente só vinha para comprar coisas nas lojas dos brancos e assistir desporto ou então quando te mandassem chamar para responder no posto administrativo”, explicou um idoso, na casa dos 70 anos. Muito próximo do convento dos missionários da Igreja Católica vê-se um edifício já vencido por muitos anos.

Soubemos que se trata da primeira cadeia que os colonos construíram quando se estabeleceram no Bungo. Idosos com quem falamos sublinharam que o edifício é de muito triste memória. Ao lado da casa missionária está um outro edifício, o maior da vila. É a escola missionária católica, bastante envelhecida, com os vidros, das inúmeras janelas e portas, quebrados.

É de realçar a existência de um pequeno aglomerado de eucaliptos, plantados com a pretensão de proteger a escola missionária dos ventos planálticos que, frequentemente, assolam o Bungo. O edifício, apesar do estado de aparente abandono, continua a servir de lugar de ensino e aprendizagem, desta feita para crianças e jovens em idade escolar fundamental.

A presença cristã secular é indicada ainda pelo edifício da igreja católica, muito separado dos demais imóveis, que merece a vénia de quem quer que passe pelo vilarejo.

Actividade mercantil

Logo no princípio da vila, para quem chega do Negage, foi erguido, muito recentemente, um estabelecimento comercial que abastece os moradores com peixe fresco, frango e os produtos da cesta básica. De vez em quando, a loja também vende carne de vaca abatida nalguma fazenda da circunscrição. À tardinha os jovens se juntam no local para saborear as bebidas disponíveis.

“Bebem mais o uísque em pacote. Começam a beber o maruvo no bairro e vêm se aquecer aqui com o uísque em pacote”, disse o empregado, 30 anos, que vive na vila há um ano, quando ganhou o emprego na loja. O jovem informou que o produto com mais saída na loja é a lambula. Disse ainda que é no tempo das chuvas que as vendas atingem o auge, “porque no cacimbo a maioria dos moradores da vila, que é camponesa, prefere passar mais tempo nas lavras que ficam junto aos rios onde fazem a pesca”.

Os professores, os enfermeiros, os polícias e os funcionários da administração municipal, que são os que possuem maior poder de compra, preferem deslocar-se à cidade do Uíge, que dista apenas cerca de 74 quilómetros, para fazerem as suas compras. Segundo o lojista, é por isso que os principais clientes da loja são os moradores dos bairros suburbanos.

No centro da vila, estão outras lojas, mais concretamente cantinas, detidas por muçulmanos, que vão competindo com as vendedoras ambulantes. A localidade conta ainda com um mercado municipal, uma estrutura construída há menos de oito anos, cuja serventia vai desde a disponibilidade dos produtos da cesta básica aos agrícolas produzidos localmente.

“Aqui é proibido fotografar”

A vila, apesar de diminuta, oferece lugares pitorescos, nomeadamente o bem arranjado jardim, os edifícios antigos que resistem ao tempo e a bela igreja católica. Os repórteres do Jornal de Angola não resistiram à tentação de fotografar a igreja, mas foram terminantemente impedidos pela voz de um sub-inspector da Polícia Nacional, que, furtivamente, acompanhara os repórteres desde a sua chegada ao Bungo.

O sub-inspector procurou saber se os jornalistas pertenciam a uma instituição do Estado e se tinham autorização para fotografar a vila. Estupefactos, os repórteres procuraram saber se tirar fotografias a um jardim, a uma igreja ou às casas a partir da rua conformaria um crime contra a segurança do Estado. O polícia continuou a sua investida dizendo que “aqui no Bungo só é permitido tirar fotografias mediante uma autorização”.

Os repórteres retorquiram que o Estado de Direito e Democrático lhes autorizava a tirar fotografias. Perante a incapacidade do polícia continuar a sustentar a sua ordem de proibição, os repórteres continuaram a desfrutar da beleza da urbe. Seguiram para a saída da vila, onde foram dar a uma picada que os conduziu ao rio Longe, depois de vencerem cerca de três quilómetros de um tortuoso caminho.

É uma verdadeira estância balnear, bastante procurada pelos jovens da localidade e dos municípios do Negage e do Uíge.  O rio tem ambas a margens protegidas por árvores de média altura, algumas das quais deitadas, com os ramos a beijarem as águas límpidas. Os banhistas aproveitam as areias ribeirinhas para deitarem-se ao sol.

São visíveis os vestígios de pequenas cozinhas sustentadas a carvão ou à lenha, utilizadas pelos excursionistas. Os estilhaços de loiça, os sacos e os copos de plástico abandonados e dispersos são indicadores de que o lugar é mesmo muito frequentado. Uma língua fina de água se desprende de um monte e corre solta por pouco menos de cinquenta metros, antes de se transformar num dos afluentes do rio.

Os camponeses locais usam esse troço do rio para também se refrescarem com um banho, antes de chegarem a casa. Os homens usam a parte de cima e as mulheres, a de baixo.

Da fundação aos tempos actuais

Os mais velhos do Bungo são unânimes em apontar o militar português Sargento Melo como o primeiro habitante do lugar que foi transformado em vila no dia 6de Agosto de 1916. Conta a tradição oral que o português teria sido recebido por Me Mbungu, a quem pediu um lugar para construir o seu acampamento militar, depois de ter chegado de Mukaba.

Segundo os mais velhos, o branco português fazia-se acompanhar de um seu compatriota, Santos Tenente, e de um séquito de carregadores autóctones, entre os quais tradutores. Acompanhados por Me Nfumu a Kizumba, os portugueses foram recebidos amistosamente, beneficiando de alojamento condigno.

A comunidade dos sobas do Bungo sempre delegou a Alfredo Mukita, regedor de Mbanza Mbungu, a tarefa de retratar para os visitantes a história da circunscrição. Foi o que aconteceu quando os repórteres do Jornal de Angola se interessaram em saber a trajectória da localidade.

De acordo com Alfredo Mukita, cumprida a praxe protocolar e diplomática, foi concedido ao Sargento Melo um lugar, próximo de um matagal, para instalar uma posição militar, após o que ele regressou ao território de Mufongo, actual município de Ambaca, no Cuanza-Norte. O seu retorno às terras de Me Mbungu aconteceu meses depois. Agora fazia-se acompanhar por um agrupamento militar.

Mas os seus interlocutores locais decidiram indicar-lhe um outro lugar para montar o seu acampamento, a 35 quilómetros do lugar inicialmente indicado, precisamente nas proximidades das terras de Mfumu a Kizumba. Alfredo Mukita disse que os líderes autóctones teriam chegado a conclusão que não deveriam coabitar com um agrupamento militar.

“Eles pensaram que, como ele dizia que traria militares, o bom mesmo era ele ir ficar sozinho, muito longe, para não trazer problemas ao povo”. Contrariado, o Sargento Melo disse aos soberanos que iria ver o lugar indicado, mas que, se não gostasse, regressaria e ocuparia o espaço indicado inicialmente. “Assim, tirou uma moeda metálica, uma cavilha e uma tábua que pregou na árvore chamada mukia, sinalizando a ocupação. Feito isso, seguiu para a direcção indicada”.

O lugar era vasto e dava vista a toda a cercania. Não existia, nas proximidades, floresta alguma. Havia alguns rios que facilitariam a obtenção da água para o consumo da tropa e para irrigação. O Sargento Melo mandou construir casas de pau-a-pique, em voga naquela época, e deu ao lugar o nome de Mbungu, supostamente em homenagem aos povos de Me Mbungu. O militar português acabaria por casar-se com uma negra de nome Ngenda Kabangu.

Posteriormente, o Sargento Melo viria a confrontar-se com Me Kabangu, que rejeitava, terminantemente, a presença portuguesa nas suas proximidades.
“As histórias que nos contaram os mais velhos não dizem quem perdeu nesta luta, quem mais homens perdeu”, disse o regedor de Mbanza Mbungu. Seguiu-se um período em que a coabitação entre os autóctones e os colonos foi pacífica, até que eclodiram os acontecimentos de 1961, que “levaram muita gente”, de acordo com Alfredo Mukita.

Com “levaram muita gente”, quis ele dizer que causaram a morte de muita gente. O regedor Pedro Nunes Kamalandena é uma das muitas autoridades tradicionais que pereceram. O município do Bungo é actualmente composto por 60 aldeias e 12 regedorias cuja população se dedica, essencialmente, à agricultura de subsistência.

Durante a época colonial, o território possuía grandes manadas de bovinos, controladas em várias fazendas. “Hoje, as fazendas estão abandonadas e as manadas há muito desapareceram”, disse em tom de lamento o velho Nkoxi a Kizuanga.

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