A ABAKO e a tomada de consciência nacionalista kongo: o retorno ao Kongo dia Ntotila

Por Bruno Pastre Máximo

O Congo dos Sinos ou o Congo do Rei é o jornal de todos os filiados do Rei, tanto no Congo, como em Angola, no Congo Belga e Congo Francês. Este jornal está tocando o sino para chamar e despertar toda a gente do Rei que está adormecida na estupidez; conversemos, façamos reviver o nosso amor, amizade, solidariedade e união deixados pelos nossos antepassados, mas que os inimigos destruíram.(357)

O acrônimo ABAKO significa Aliança dos Bakongo. O grupo foi fundado em 1950 pelo bakongo Nzeza-Landu e outros intelectuais com a finalidade de promover o uso da língua kikongo. O kikongo a ser compilado, dentre as muitas variantes existentes, foi o “(…) Kikongo de ‘Ntotila’ ou de ‘Mbansa Kongo”358. Em 1950 o grupo lançou o seu primeiro manifesto, intitulado “Para a unificação da língua kikongo: manifesto de um grupo de bakongo”. Neste documento se encontra o cerne da organização, suas demandas e lutas políticas. Suas pautas de orientação iriam perdurar até o final dos anos 50, quando a ABAKO, já tendo se tornando um partido político, mudou seu foco de questões de linguísticas e histórico-culturais para a disputa partidária na política do Congo Belga. A luta pela promoção do kikongo era necessária pela falta de acesso a informação escrita na língua (não havendo jornal na época), a perda da tradição que a língua carrega, e, o motivo que mais nos interessa,

Todos os Bakongo se sentem irmãos de uma mesma cepa: Kongo Dia Ntotila. Mas, no entanto, desde o colapso de nosso amado Reino causado por guerras incessantes com nossos vizinhos “Yaga” (os Bayaka), a escravidão e os últimos três séculos, não estamos mais unidos. Esse registro irá servir como um traço de união.(359)

O Kongo dia Ntotila, com capital em Mbanza Kongo, é elo identitário da etnia bakongo, e portanto, deve ser reconhecido como tal.360 Segundo Verhaegen, foi deste substrato cultural que surgiu a ABAKO:

[Kongo dia Ntotila foi] mito histórico, que exerceu uma influência inegável sobre a sua consciência política. Também é certo que o Kongo viveu, desde o século XIV, uma grande história coletiva, se não nacional. Durante vários séculos, a maioria da população Kongo foi, de facto confrontados com os mesmos eventos e sujeito às mesmas limitações e as mesmas forças políticas. Esta situação favoreceu a identidade, apesar das fraquezas de um poder central e as instituições políticas, a emergência de uma consciência de solidariedade a que a obra e os ensinamentos dos missionários contribuíram. Denominador comum de história, marcado permanentemente cultura Kongo, apesar da fragmentação política e social da sociedade. É, em parte, estes aluviões históricos e culturais que foi baseado em movimento nacionalista encarnado pelo ABAKO.(361)

Para ele, a ABAKO surgiu já com as principais afirmações do nacionalismo kongo:

– Existe uma unidade cultural profunda entre os povos kongos; – Esta unidade é baseada na qualidade da língua kikongo e sobre a história do antigo reino; – É ação da Abako de defender, de fazer reviver e de enriquecer o patrimônio cultural de todas populações kongos; – A zona de influência kongo se estende para além das fronteiras do Congo belga através de Angola, Cabinda e a AEF [África Equatorial Francesa], e engloba igualmente as populações de origem não-kongo, mas que, historicamente, foram ligadas aos Kongos.(362)

Este sentimento era compartilhado na região bakongo, e a cidade de Mbanza Kongo e o Ntotila eram centrais para a composição deste pensamento. Também tinham em planos a organização de uma biblioteca kikongo e da escrita da história do Kongo. Como órgão de comunicação, foi fundado posteriormente o jornal Kongo dia Ngunga, ou Kongo dos Sinos, e depois o Kongo Dieto:

Figura 46 – Kongo dia Ngunga, nº8, agosto de 1954.

      Figura 47 – Detalhe do Jornal Kongo Dieto. In: ANTT-PIDE-DGS-NGWIZAKO-Proc11-14A 

A escolha deste nome, como ressalta Cunha, foi simbólica, e já apontava o objetivo político que estaria neste primeiro momento – a reconstituição do Kongo dia Ntotila.

O seu principal fim político era a princípio a reconstituição da antiga unidade do grupo bacongo, hoje dividido pelo Congo Belga, pelo Congo Português e pela África Equatorial Francesa, restaurando o antigo Reino do Congo na sua perdida grandeza. Neste aspecto tem valor simbólico o título escolhido para o órgão da Associação – Kongo dia Ngunga, o Congo dos Sinos, isto é, S. Salvador a antiga capital do Reino.363 

Verhagen defende que a ABAKO já compartilhava na sua paisagem política a reconstituição do Kongo dia Ntotila independente e forte, assim como pudemos ver com o movimento ZVLN. A questão linguística se transformou em posição política de restauração do Kongo dia Ntotila na assembleia geral da ABAKO, em 24 de abril de 1955, quando é apresentado que as razões da decadência e variações do kikongo foram decorrentes da colonização:

(…) A fragmentação do antigo Reino do Congo durante a conquista colonial; que a época do regime da dinastia do Congo, não havia dúvida de existirem diferentes dialetos. Todas essas expressões formavam, no entanto, apenas um idioma, kikongo, falado por sua vez universalmente no território do Reino.(364)

Desta forma, Vernahein concluiu que a questão linguística e política se encontraram na denúncia do colonialismo europeu, e portanto, se a colonização era a causa da separação linguística, “(…) basta abolir e restaurar o antigo Reino para recuperar a unidade da língua”.

O pensamento da ABAKO concebia uma nova versão da história do Kongo dia Ntotila. O responsável pela criação da seção de história da ABAKO foi durante alguns períodos o historiador Raphaël Batiskama. Ele foi um dos co-fundadores da ABAKO, sendo desde 1954 redator do jornal Kongo dia Ngunga, assumindo diversos cargos na associação, dentre eles o de responsável pela escrita de uma narrativa kongo sobre a história do Kongo dia Ntotila.

Suas ideias e pensamentos, divulgados pela imprensa na região kongo, foram decisivos para a conscientização política e ascensão do nacionalismo bakongo. Outros membros da ABAKO lideraram a população como representantes em cargos políticos. Batsikama foi um dos ideólogos responsáveis pela concepção de passado e tradição pela ABAKO. Os resultados desta empreitada foram escritos que posteriormente seriam compilados em um livro intitulado, L’Ancien Royaume du Congo et les bakongo.

O autor demonstrou seu conhecimento da tradição kongo, e o combinou de forma magistral com a documentação, para a escrita de um livro de História denso e profundo.

Neste livro o autor propôs uma versão diferente da narrativa histórica colonial. O passado pré-europeu foi profundamente estudado e analisado, através da história oral. O autor apresentou a tese de que o Kongo dia Ntotila era muito maior do que o descrito e relatado pelos cronistas europeus, abarcando regiões do sul de Angola e chegando até o Gabão. Os fundadores vieram do sul de Angola, e foram migrando ao norte onde fundaram Estados, que finalmente se fundiram para a criação do Kongo dia Ntotila unificado em Mbanza Kongo, sendo o Kongo dia Ntotila uma obra puramente africana.

Figura 48 – “Kongo-dina-Nza” ou o Reino do Congo em sua plenitude” In: BATSÎKAMA BA MAMPUYA MA NDÂWLA, 1999.

O autor criticou a presença europeia na região. A chegada dos europeus marcou um período de conflito e desgraça. Os portugueses semearam a discórdia com o objetivo de escravizarem o povo kongo. Apesar de valorizar o cristianismo na região, a Igreja católica foi apontada pelo autor como uma das responsáveis direta pela destruição do Kongo dia Ntotila, por sua política de demonização da religião tradicional e dos valores  tradicionais ligados ao poder político e familiar. O reinado de João I (Nzinga-a-Nkuwu) e tradicionais ligados ao poder político e familiar. O reinado de João I (Nzinga-a-Nkuwu) e Afonso I (Mvemba-a-Nzinga) foram colocados como um divisor de águas na história. Estes foram agentes manipulados pelos europeus para obter as riquezas do país e os escravos.

O momento de virada da ABAKO, de uma associação cultural para um partido político, foi a resposta ao Manifesto do Consciense Africaine, publicado em 1956. Feito por intelectuais congoleses ligados a Igreja católica, estes defendiam uma independência negociada e gradual do Congo com relação a Bélgica. A ABAKO respondeu este manifesto com um apelo à independência imediata do Congo, o que lhes trouxe muita popularidade. A associação foi gradativamente crescendo em número de adeptos no Congo Belga, principalmente entre os bakongo do baixo-congo, os bakongo angolanos refugiados no congo (somando a impressionante soma de 20% da população bakongo de Leopoldville em 1955), mas também no Congo Português, em Angola. Em diversos documentos portugueses, as autoridades relataram suas preocupações com a magnitude que a ABAKO estava alcançando na fronteira norte de Angola. Em meados dos anos 50, a presença já era considerável no Congo Português,

Apesar das medidas repressivas tomadas por este Governo a expansão da ABAKO neste Distrito é um facto a que se torna necessário dar a devida importância. (…) vários indígenas nossos que tem sido apanhados com o cartão da ABAKO, têm sido castigados com fixação de residência por um período mínimo de seis meses em local distante.(368)

Mesmo com a repressão, o governo não conseguiu impedir a difusão das ideias da ABAKO no norte de Angola, a ponto de até se “infiltrarem” na administração colonial, “(…) a maioria dos nossos cipaios das administrações fronteiriças são já membros da ABAKO. Em Nóqui, por exemplo, 80% dos cipaios são abaquistas.”

A fronteira do Congo Belga e de Angola era grande e pou

                                              Figura 49 – Emblema ABAKO e NTO-BAKO. In: PT-AHD-MU-GM-GNP-RNP-0022-07532. Figura 50 – Cartão de membro da ABAKO. In: PT-AHD-MU-GM-GNP-059-Pt.07

co vigiada, permitindo que houvesse um grande trânsito de informações entre os dois países, acompanhando o fluxo de pessoas que cruzavam constantemente as fronteiras, principalmente indo trabalhar (se refugiar) no Congo Belga. Por lá não existiam trabalhos compulsórios, e os salários eram consideravelmente superiores aos de Angola, além de uma maior oferta de empregos. Muito destes migrantes propagavam os ideais da ABAKO para Angola, através do envio do jornal ou do rádio. Por um trecho de carta podemos perceber a emoção e o impacto da mensagem do rádio na região de Mbanza Kongo,

Temos todos os muxicongos por língua o Kicongo; os velhos, bastante idosos, estavam todos muito admirados e cheios de alegria ao ouvirem a sua língua radiofundida; muitos vinham de cerca de 10 kilómetros de distancia para ouvirem rádio.(371)

Portanto, é bastante seguro, a partir das fontes consultadas, confirmar que para um bakongo no norte de Angola em meados dos anos 1950, as ideias e ideais da ABAKO não eram algo estranho ou desconhecido, servindo de importante referencial para refletir sobre sua identidade, cultura e luta política. E qual o papel da paisagem de Mbanza Kongo no pensamento da ABAKO? Como capital do antigo Kongo dia Ntotila, a cidade era vista com olhos especiais pela direção. Em carta enviada pela direção do jornal Kongo Dia Ngunga a um morador de Mbanza Kongo, fica evidente a insatisfação com a situação da cidade por parte da ABAKO:

Nós pensamos constantemente em vós, pensando sobretudo no amplo largo do Reino deixado por nossos antepassados e hoje coberto de capim, as casas em ruínas, um grande número de crianças, filhos e meios nossos irmãos, irmãs e primas nossas, andam todos espalhados, vivendo como se fosse órfãos. Ah! a Cidade do Congo [Mbanza Kongo] transformou-se numa floresta virgem numa floresta e desabitada e por isso é nosso veemente desejo que muitos muxicongos leiam o nosso jornal em terras do Congo.(372)

A situação de “abandono” da cidade, comparada com as modernas cidades do Congo Belga – Leopoldville, Matadi – fez a ABAKO lamentar a situação.373 Não é somente uma lamentação geral da situação de Angola, mas específica para a Cidade Congo (Mbanza Kongo), que pelo seu status dentro da história do Kongo dia Ntotila torna inaceitável sua condição. Para dar maior visibilidade a questão, o jornal publicou reportagens em que representantes da ABAKO visitaram a cidade de Mbanza Kongo em 1955 e deixaram suas impressões bastante críticas. São preciosos testemunhos sobre a cidade de Mbanza Kongo na perspectiva de uma nacionalista kongo. Não tivemos acesso aos textos originais em kikongo, e nem a primeira parte da publicação. Todas as informações citadas são as que foram traduzidas e publicadas pelo agente colonial Cunha e, portanto, merecem serem consideradas com cuidado.

(…) Sim, nós fomos até a essa cidade donde, de certo, somos todos oriundos. Não sabemos ao certo a data de dispersão dos nossos antepassados do Congo, mas podemos calculá-la por cerca de 500 ou 600 anos depois do nascimento do Senhor Jesus. Chegamos ao Congo na noite do domingo, 13-9-1955. Ao amanhecer, julgávamos contemplar uma cidade. Essa cidade está construída sobre uma colina não muito grande. O local é de terra avermelhada. Um lindo local onde estão plantadas numerosas palmeiras. A primeira coisa que nos afligiu foi constatarmos que a cidade do Congo já não é cidade, mas uma pequena povoação. Verificamos que as casas dos muxicongos estão quase todas cobertas de capim, muitas delas em ruínas e outras abandonadas, como se os seus donos já tivessem morrido. Perguntamos aos habitantes daquela povoação a quem pertenciam aquelas tantas casas abandonadas e responderam-nos: São todas de irmãos nossos que se foram para o Congo Belga, porque nós cá na nossa terra vivemos uma tristeza sem medida, em sofrimentos sobre sofrimentos, e por isto toda a gente foge para o Congo Belga. Verificamos ainda que em toda a povoação apenas havia cerca de 5 casas cobertas a zinco pertencem aos indígenas. Perguntamos então: porque é que os nativos não constroem casas cobertas a zinco? Muitos dos nossos irmãos, retorquiram, que vivem em Matadi, em Leopoldville e em Brazzaville quereriam construir casas cobertas a zinco, mas o Governo não quer que o preto possua casa tão boa como a do branco. Ficamos ainda estupefactos ao saber que o preto não pode negociar no Congo; comprar e revender é exclusivo do branco. No congo não existe um negociante nativo. Fomos ainda visitar a residência dos Reis do Congo. Está construída no centro da povoação e ao lado estão algumas casas comerciais dos portugueses. Muito perto dessa residência dos Reis existe uma grande árvore, debaixo da qual os Reis fazem a sua Justiça. Essa árvore existe há cerva de 600 ou 700 anos. As suas folhas são lindas e seus ramos muito largos. Debaixo da sombra da mesma podem estar a divertirse quinhentas e tal pessoas. (…) Fomos ainda visitar a primeira Igreja construída no Congo: A Igreja de S. Salvador do Congo. Daí proveio o nome com que chamam os nossos irmãos oriundos daquela terra. Essa Igreja foi construída em 1492, quer dizer ela já tem 163 anos. Por falta de cimento, ela tinha sido construída toda em pedra. O tecto está todo desfeito, mas as paredes estão intactas e apesar de muitos anos de existência, ela ainda poderá existir muitos anos. Saímos ali uma fotografia de recordação com os nossos irmãos. Vimos também as sepulturas dos antigos Reis do Congo. Foi triste verificarmos que esse Cemitério estava todo cheio de capim. Está sem vedação e nem sequer uma única flor está ali plantada e indicar que ali é o Cemitério dos Reis. É triste para os Muxicongos não respeitarem o Cemitério dos seus Reis. É muito verdade, irmãos, que de Congo, só ficou o nome. (374)

A cidade é apresentada para o leitor como a origem de todos os bakongo. A origem não é precisa, mas ela é bem anterior ao contato com os portugueses, ou seja, consolidando uma narrativa antiga e ancestral em Mbanza Kongo. O autor relatou sua tristeza em ver as pequenas dimensões de Mbanza Kongo, certamente tomando como referencial a época antiga, colocando-a como ápice do Kongo e da cidade. Mbanza Kongo encontrava-se, de forma geral, em ruínas. Nesta interpretação eles assumiram uma perspectiva semelhante a colonial, mas invertendo, mostrando que antes eles eram grandes e poderosos e hoje estão vivendo em condições precárias. Aqui a noção de ruína está mais perto de miséria da colonização que uma valorização do estilo de vida ocidental.

A cidade abandonada mostra que a situação é terrível a ponto de os kongo saíram de lá para enfrentar outro colonialismo. No entanto, não só as condições econômicas determinavam a migração, mas talvez a própria existência da ABAKO deve ter incentivado muita gente a ir ao Congo Belga, buscando um sentimento de liberdade, união e identidade. A casa, o nzo, um lugar muito especial para todo ser humano, é o ponto de comparação e mostra a brutalidade do colonialismo português na sua vertente congolesa. O escolhido para comparação foi a casa, não o regime político, os costumes, a estrutura urbana – o mais básico e essencial, conjuntamente ao comércio.

O autor então passou a descrever os locais da tradição, a Casa do Rei, que neste artigo recebeu pouca atenção, a árvore da justiça, a igreja e o cemitério dos reis. Aqui o nome Yala-Nkuwu é referido como árvore da justiça. Devemos questionar: terá sido este o termo usado no texto original em kikongo? De toda forma, a importância da árvore é dada pela sua ancestralidade, grandeza e local dos julgamentos.

Ele aqui aparentemente não usa o termo Kulumbimbi, ou melhor, pode ter usado e a tradução eliminou. O autor descreveu as ruínas enquanto um lugar de ancestralidade cristã, ressaltando como características das ruínas a questão de não ter teto e a forma de construção em pedras. Ao comentar sobre as ruínas ele compartilha a narrativa ocidental sobre o lugar, ou seja, de um legado cristão, que deve ser reconhecido pela forma de construção em pedra. Já ao comentar sobre o cemitério ele ressalta a importância dos cemitérios para os bakongo, lamentando a situação do cemitério, abandonado, não recebendo homenagens. E é enfático que este não é um cemitério comum, mas o dos Ntotila, e portando deveria receber homenagens especiais.

O mais interessante em seu texto, para além das descrições, é perceber sua concepção de análise da cidade, tendo como referencial o antigo, mas também tratando a cidade ainda como capital de um estado independente do Kongo dia Ntotila, e não em perspectiva de uma cidade pertencente a colônia portuguesa de Angola. A entidade que existe é o Kongo dia Ntotila e ele foi lá discutir sobre isso.

O historiador Raphaël Batskama também esteve em Mbanza Kongo e nos deixou comentários sobre a cidade. Batsikama afirma:

Como Jerusalém, M’banza Kongo não tem monumentos, a não ser um Muro das Lamentações, que permanece milagrosamente salvo de um templo de destruíção pelos próprios construtores. Além disso, mesmo que as representações de alguns ilustres antepassados ou de outras lembranças existissem, estes não poderiam sobreviver à guerra implacável entregue a “fugires madeira e pedra” por séculos em nome do puritanismo continua para surpreender o próprio Cristo. M’banza-Kongo, a primeira sede episcopal de todo o continente (1597), continha mais de dez igrejas em 1640, que lhe valeu o apelido de “Kongo-DYA-Ngunga”, a cidade, a capital dos sinos. (…) que os telhados de todos os edifícios foram quase palha por razões e circunstâncias que todo mundo sabe, ele quase nada permanece. permanece, no entanto, uma vez que é necessário mencionar a “KULU-MBIMBI” ou cemitério dos reis antigos e a “YALA Nkuwu”, a árvore sob a qual foram coroados e jurou reis e em que eles emprestaram o juramento constitucional e proclamou as leis do Reino.(375) 

 

                   Figura 49- Kulu-Mbimbi e Yale Nkuwu. In: Batsikama, 1999.

As ruínas da antiga sé do Congo foram nomeadas com o simbólico nome de muro das lamentações. Esta afirmação relaciona o papel de Mbanza Kongo com o de Jerusalém, ou seja, um lugar sagrado e central para diversos grupos religiosos. E as ruínas são equiparadas com o muro das lamentações, o lugar mais sagrado para os judeus, vestígios de um passado de glória. O passado cristão não é negado, mas é sim questionado sobre o qual o seu resultado para a cidade e o reino.

Mbanza Kongo é uma cidade que demonstra a decadência de um Estado poderoso através dos seus vestígios de ancestralidade, a árvore, a Yala-Nkuwu, e o cemitério dos reis do kongo, o Kulu-Mbimbi. De todos os textos consultados para o período, este é o primeiro texto feito por autor bakongo em que aparece o termo Kulu-Mbimbi para designar o local compreendendo o cemitério dos reis e as ruínas. Nas fontes portuguesas, o primeiro – e único – uso da palavra encontrado foi no jornal católico angolano “O Apostolado” de 02 de janeiro de 1957 que cita o seguinte: “Com efeito, entre os próximos melhoramentos, podemos enumerar já os seguintes; (…) reparação condigna do ‘Cemitério dos Reis’, no Kolumbimbi.”. Neste sentido, a palavra kulumbimbi estaria de acordo com a interpretação kongo do lugar compreendendo o cemitério dos reis e as ruínas da antiga Sé Catedral, utilizando-se do nome kikongo para nomeá-la.

Podemos então afirmar que, em meados dos anos 1950, o termo já existia para designar o local. Ambos os visitantes da cidade concluíram que em Mbanza Kongo não existia mais o passado glorioso. Como a ABAKO iria explicar esta situação? Através do fracasso do Ntotila. Ao invés de culpar o colonizador pelas mazelas, os grupos nacionalistas kongo se voltaram contra os Ntotila, acusados de culpados pelo fim do Kongo dia Ntotila e da independência.

Em outro artigo no jornal Kongo Dia Ngunga, complementando a descrição da visita a Mbanza Kongo, há um tom muito mais crítico com relação à situação da cidade, e o principal responsável pela situação – o Ntotila. O texto descreveu a divisão espacial da cidade de Mbanza Kongo entre os bairros católico e protestante, e colocou mais um bairro – o dos estrangeiros. E quem seriam os estrangeiros? “(…) gente que não é do Congo, e que não são numerosos”, ou seja, os colonos portugueses. Na cidade, eles visitaram a casa do Ntotila (na época residência do Gama), constatando a situação “precária” em que este vivia. A casa

(…) está dentro dum muro construído em tijolos, com a altura de cerca de um metro, podendo o visitante transpô-lo com facilidade, querendo entrar. O largo estava cheio de capim, a cozinha e o W.C. construídos em adobe e cobertos a capim. Nada enfim indicava que era aquela a casa do Rei do Reino do Congo. Estamos dentro dela e vimos umas fotografias dos antigos soberanos portugueses, sobre as paredes, e outras de antigos Reis do Congo. A casa nem seque tinha uma cadeira, é uma casa simples tal como a casa de um tipo qualquer. Informaram-nos ainda que o Rei no Congo, não tem automóvel, não tem casa para tribunal como em tempos passados, não tem conselheiros peritos, não tem reparação, não tem gados, empregados que trabalhem em sua casa real, nem polícia de guarda, não possui criação alguma de ovelhas ou bois. (…) o Rei não recebe nem um só real dos impostos que a sua gente paga. Vendo todas estas coisas ficamos estupefactos e antónitos… concluindo disse que era tudo mentira o que se dizia que no Congo existia um verdadeiro Rei; no Congo não há Rei, mas um simples capataz (soba) dos portugueses. Ficou apenas o nome na boca das pessoas que dizem que no Congo há um Rei, porque afinal o Rei do Congo é um pobretão, não havendo diferença entre ele e um seu súbdito qualquer. Sabemos por tradição e pela história que os portugueses tinham vindo ao Congo como amigos, vieram trabalhar e negociar mas não para serem senhores, governando ou reinando, ou apoderarem-se da terra, mas essa amizade tornou-se como um sapo que quere entrar numa cabaça. Quatrocentos e setenta anos se passaram já desde que os Reis contraíram a dita amizade com os portugueses, mas antes não podendo melhorar a terra, toda a gente se espalhou, muitos dos nossos irmãos vieram ocultar-se no Governo Belga (…). (378) 

O Ntotila é motivo de misericórdia. Aqui o referencial do que é ser Ntotila é o seu lugar na paisagem ideativa. Batsikama elencou as principais responsabilidades e funções do Ntotila. 1- Ele deve ser consagrado pelo povo e seguir a vontade popular. 2- Deve governar para os verdadeiros donos do poder: os mortos. 3- Sua ascensão deve ser feita por eleição. 4- Seu governo deve velar sobre a saúde do povo. 5- Deve assegurar o progresso econômico, manter as leis justas do país e por fim, 6- guardar os segredos dos ancestrais. Nada mais distante do papel de Gama perante o seu povo. O autor do artigo percebeu que mesmo as condições mais básicas para assegurar o seu poder não existiam.

As condições materiais da casa demonstravam o pouco poder que ele possuía, em clara comparação com o passado e também com as autoridades tradicionais do Congo Belga. A casa é comum. Enquanto se esperava um palácio, se encontrou a normalidade bakongo, uma decadência sem precedentes. Todos os símbolos materiais que esperavase encontrar de um soberano, o Ntotila não possui. Neste julgamento os valores ocidentais e os tradicionais se cruzam, pois, ao julgar o Ntotila por meio de bens de prestígio “ocidentais”, o autor buscava reconfigurar o poder do Ntotila do passado através dos símbolos de status de autoridade do presente. O autor concluiu,

O rei, na cidade do Congo, tornou-se um mensageiro estúpido, ou como um passarinho denominado Tunze – em Kicongo – o qual diz sempre sim; ele aceita todas as propostas boas ou más, e faz tudo quando saia da boca dos estrangeiros e deixa assim espalhar toda a sua gente. Porque então será que a terra do Congo (Angola) está desabitada e a toda a sua gente vem viver no Congo Belga? a) – Os muxicongos deixaram de viver no amor e na união deixadas pelos nossos antepassados, aceitaram que a sua povoação fosse dividida em duas partes por causa das doutrinas: tornaram-se inimigos entre si. (…) b) Muitos muxicongos deixaram de falar a sua língua- Kicongo – falando apenas a língua portuguesa; abandonaram os usos e costumes da sua terra e tornaram-se pretos portugueses. c) – Por causa do Rei que se tornou mensageiro estúpido, deixando espalhar-se a sua gente sem saber impor-se. Ódio e inimizade entre os cristãos católicos e os protestantes, divisão entre si e falta de união, deixando assim de respeitar a tradição da terra do Congo, abandonando a língua e deixando-se infiltrar dos costumes dos Portugueses; de tudo isto proveito o sofrimento e o jugo dos nossos irmãos da cidade do Congo, essa a razão por que a terra do Congo (Angola) está estragada e a sua gente espalhada.(380)

Fica bastante claro que o Rei era o maior responsável pela atual situação do povo kongo, que não conseguiu cumprir suas funções de unir o povo, valorizar a cultura e a tradição, ser independente e potente perante o povo e os portugueses.

Para a ABAKO, a cidade histórica de Mbanza Kongo era central dentro do pensamento histórico e da luta política pela restauração do Kongo dia Ntotila. Os vestígios de um passado glorioso, como escreveu Batsikama, eram uma constante lembrança do poder de outrora, uma janela para lamentar a decadência do reino constatando a situação de degradação cultural da cidade. Uma situação que permitiu que existisse um monarca fantoche, que não conservou nenhuma legitimidade perante o povo, e locais de extrema sacralidade – como o cemitério dos reis e o palácio do rei do Kongo – deixados abandonados e sem veneração e respeito.

Como ressaltou Verhaegen, a ABAKO surgiu em um ambiente político favorável, de abertura e diálogo pela administração colonial, conjuntamente a um reforço dos mitos políticos cultivados pela tradição e pela história do Kongo dia Ntotila dos missionários. Dentre as reminiscência histórias mais idealizadas estavam, “(…) A potencia do antigo Reino do Congo; a continuidade de sua dinastia, seu rei Dom Afonso correspondendo de igual a igual com o Rei de Portugal e com o Papa, (…); sua capital San Salvador os monumentos em pedra onde os vestígios existem ainda; existência dos nove clãs tradicionais os quais todos Mukongo pertencem (…).” Assim, os lugares sobreviventes – Kulumbimbi (Ruínas da Sé Catedral e Cemitério dos Reis), Yala-Nkuwu e Ntotila – eram um componente importante para a consolidação da paisagem de Mbanza Kongo narrada pela ABAKO, e que influenciaria todo o movimento político nacionalista bakongo na região, servindo de inspiração para a revolta social e a luta pela mudança na situação política, com o objetivo do reencontro da paisagem ideativa.

No ato de independência da República Democrática do Congo, o primeiro presidente do país foi da ABAKO, Joseph Kasa-Vubu. No Congo Francês a situação também se mostrava favorável aos nacionalistas kongo. No mesmo período, o governo francês iniciou políticas de inserção de africanos dentro dos quadros da administração colonial. Um dos quadros que mais se destacou foi o abade Albert Youlou, membro do clero com forte discurso nacionalista kongo. Sua vitória na prefeitura da capital Brazzaville, e sua posterior nomeação como primeiro-ministro em 1958 da República do Congo independente encheram de esperanças os nacionalistas kongo. Em 1960, os dois países Congo eram dirigidos por nacionalistas kongo.

Analisando de uma perspectiva contextual, não é de se estranhar que o movimento nacionalista kongo ia na contramão da maioria dos movimentos de libertação africanos no período, que tinham como ideologias principais o pan-africanismo e o afrocentrismo como base de união nacional e identitária frente ao sectarismo étnico. Estes movimentos tinham um ideal republicano ou comunista que orientava a organização dos futuros Estados independentes. Eram contra os referenciais tradicionais de autoridade, calcados em privilégios não orientados aos valores da “modernidade”. Este ambiente regional de nacionalismo kongo, de rápida ascensão e vitórias políticas regionais, propiciou o agrupamento de membros angolanos que conspiravam a tomada do poder visando a restauração do Kongo dia Ntotila, aproveitando o crucial fato de que a cidade de Mbanza Kongo se encontrava sob domínio português.

O início da luta de independência por Angola foi descrito por muitos autores, que tratam da origem dos principais partidos políticos envolvidos na guerra de libertação colonial – UPA, MPLA e UNITA. No caso da UPA, de nosso interesse, eles se remetem sempre à questão da ligação com ao Ntotila bakongo. Invariavelmente, os autores citam como referência o grande trabalho The Angolan Revolution do norte-americano John Marcum, testemunha de muito dos eventos deste momento.

Sua descrição sobre a UPNA é referência, seja pela falta de outras fontes publicadas (ou mesmo em arquivos), mas principalmente pela falta de maior interesse por parte da historiografia em entender o papel do nacionalismo bakongo – em sua vertente de restauração da monarquia kongo – como fator de impulso para luta de independência. Nosso texto tem como objetivo servir de apoio e complemento para a sua descrição. Ao mesmo tempo, tencionamos incorporar nossa perspectiva: analisar a paisagem ideativa com o surgimento do nacionalismo bakongo e o papel que os monumentos de Mbanza Kongo desempenham nas narrativas histórica e política dos grupos envolvidos na luta de independência.

A resistência ao colonialismo é algo constante entre os povos da região, e desde o início do século XX revoltas armadas, movimentos religiosos e grupos políticos se consolidaram como opositores ao colonialismo. A paisagem de Mbanza Kongo teve papel ativo na construção de oposição ao colonialismo fundado no nacionalismo bakongo, em que a luta por soberania deveria passar pelo caminho de restauração do Kongo dia Ntotila e da ordem ancestral. A paisagem gloriosa de um passado contrastava com as atrocidades cometidas no cotidiano da cidade, perturbando aqueles movimentos a tomarem iniciativa para alterar esta situação.

357 Trecho de transcrição de Carta apreendida pelas autoridades portuguesas, e publicada em CUNHA, J. M. da Silva. Missão de estudos dos movimentos associativos em África: relatório da campanha de 1957. Lisboa: Centro de Estudos Políticos da Junta de Investigações do Ultramar, 1958. p.141.
359 “Tous les Bakongo se sentent frères issus d’une même souche: Kongo dia Ntotila. Mais cependant, depuis l’écourlement de notre cher Royaume provoque par les guerres incessantes avec nos voisins, les “Yaga” (les Bayaka), et l’esclavagisme des trois derniers siècles, nous ne sommes plus unis. Ce jornal nous servira de trait d’union.” NZEZA-LANDU, M.E. Vers L’Unification de la Langue Kikongo Manifeste d’um Groupe de Bakongo. 1950. In: VERHAEGEN, Benoît (Org). A.B.A.K.O. 1950-1960: documents.(…). 1962. p. 1
361 “(…) mythe historique, ils ont exercé un influence incontestable sur la prise de consciense politique. Il est par ailleurs certain que les Kongos ont vécu, depuis le XIV siècle, une histoire en grande part collective, sinon nationale. Durant plusieurs siècles, la majorité et soumise aux mêmes contraentes et aux mêmes forces politiques. Cette identité de situation favorisa, malgré faiblesses d’un pouvoir et d’intiturions politiques centrales, l’éclosion d’une conscience de solidarité à laquelle les travauz et les enseignements des missionaires constribuaient. Ce commun dénominateur historique a marque durablement l aculture kongo, malgré l’éclatement politique et social de la société. C’est en partie sur ces alluvions historiques et culturelles que s’est fondé le mouvement nationaliste incarné par l’ABAKO.” VERHAEGEN, Benoit. L’ABAKO et l’indépendance du Congo belge. 2003. p. 17. 
363 CUNHA, J. M. da Silva. Missão de estudos dos movimentos associativos em África. 1958. p. 72.
364 “ (…) morcellement de l’ancien Royaume du Congo, lors des conquêtes coloniales; qu’à l’epoque du regime de la dynastie du Congo, il n’était pas question de dialectes différents. Tous ces idiomes ne constituaient qu’une seule langue, kikongo, univerellement parlée sur tour le territoire du Royaume.” VERHAEGEN, Benoit. L’ABAKO et l’indépendance du Congo belge. 2003. p. 146.
368 Cópia do ofício nº 53/Gab./Sec. SECRETO do Governo do Distrito do Congo. Feito por Major Hélio Augusto Felgas em 27/02/1960. PT-AHD-MU-GM-GNP-059-Pt.07
371 Trecho de transcrição de Carta apreendida pelas autoridades portuguesas, e publicada CUNHA, J. M. da Silva. Missão de estudos dos movimentos associativos em África. 1958. p. 143.
356 Relatório do Distrito do Congo (?) 1957(?). Ordem pública e tranquilidade social. PT-AHD-MU-GMGNP-135-Pt.35.

Fonte: mbanzakongo.com

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