A decadência final do Reino do Congo

 

A partir de 1718, rareiam os relatórios de missionários, porque estes foram cada vez mais escassos no Reino do Congo. Por isso, é possível que não conheçamos bem a exacta sucessão dos Reis entre 1718 e 1763, nem as circunstâncias da sua eleição ou da sua coroação. No entanto, pode inferir-se uma certa estabilidade do facto de apenas ter havido três reis nesse período: D. Manuel II (1718 – 1730), D. Sebastião I (1730 – 1743) e D. Garcia IV (1743 – 1763). O Reino estava em paz com os seus vizinhos e o comércio de escravos prosperava.

Quanto à falta de missionários e de padres, esta deve-se não só à natural relutância dos capuchinhos em enviar mais gente para ao “matadouro” do Congo, mas também è chegada ao poder do Marquês de Pombal (1750-1777), hostil aos religiosos e sobretudo aos não portugueses.

Em 1759, aconteceram perturbações devido a disputas na sucessão dinástica. A Rainha Violante, de Wandu, atacou S. Salvador em defesa de D. Pedro V, que havia sido coroado em 1763. Apesar desta ajuda, o Rei abandonou a cidade arruinada em 1764 e permaneceu até à morte na fortaleza de Inzundo na área de Mbamba Lovata. O seu sucessor, D. Alvaro XI (1764-1778), tinha muitos opositores em certas partes do Reino, com fundamento em que deveria ser um Kimpanzu e não um Kinlanza a estar no trono. Pouco depois, em 1765, Violante foi derrotada pelos portugueses e, como resultado dessa guerra, foi substituída no governo do Wandu por Brites Afonso da Silva.

Depois que D. Álvaro reconstruiu S. Salvador em 1766, o Reino viveu alguma estabilidade até 1778, data em que sucessivas disputas, invasões estrangeiras, a seca e a fome, levaram a várias décadas de guerras intermitentes.

José I de Água Rosada, um Kinlaza de Kibangu, foi eleito em 1778, após a morte de Álvaro XI. Este não pôde tomar posse de S. Salvador e ser coroado até 1781, quando dispôs de um exército suficientemente forte.

Nesta época, manifestou-se um certo interesse do lado português em ocupar o Congo e foi enviada uma missão de quatro missionários portugueses que partiram de Luanda em 2 de Agosto de 1780: Padre Mestre Fr. Libório da Graça, religioso de S. Bento, Padre Mestre Fr. Rafael Castello de Vide, religioso reformado do Nosso Padre S. Francisco da Província da Piedade, Padre Dr. André do Couto Godinho, presbítero do hábito de S. Pedro e o Padre Fr. João Gualberto de Miranda, religioso da Terceira Ordem da Penitência do Nosso Padre S. Francisco. Os últimos três subscrevem um relato da viagem publicado nos Anais do Conselho Ultramarino, mas certamente redigido por Fr. Rafael Castello de Vide; Fr. Libório faleceu na viagem. Fr. Rafael escreveu mais tarde um livrinho com a descrição de toda a missão que durou oito anos (1780-1788), manuscrito com o título “Viagem do Congo do Missionário Fr. Rafael de Castello de Vide, Hoje Bispo de S. Tomé (1788)” que se encontrava inédito em português na Biblioteca da Academia das Ciências e foi publicado neste site; havia sido traduzido para italiano e publicado por Marcellino da Civezza com o título “O Congo” na Storia Universale delle Missioni Francescane, 7, 4 (1894), 349. Foram publicadas por Luis Silveira algumas cartas de Fr. João Gualberto de Miranda que não têm tanto interesse.

Fr. Rafael deveria ser um optimista nato, pois escrevia em carta remetida do Congo, em 4 de Abril de 1785: “Em todo este Reino do Congo, não há Príncipe ou povo propriamente gentio. E só lhe faltam os Padres há muitos anos; só da outra parte do Zaire há muito gentelismo, mas distante daqui muitas léguas”.

Os missionários deste grupo chegaram à presença do Rei D. José em 30 de Junho de 1781. Há 18 anos que não havia padres em S. Salvador. Esta equipa , nos oito anos que ali esteve, ministrou 380 000 baptismos!

Também o Padre Dr. André do Couto Godinho acabou por falecer no Congo.

Em 1790, partiram por sua vez de Luanda os capuchinhos italianos Fr. Giuseppe Maria da Firenze e Fr. Raimondo da Dicomano. Fr. Raimondo será enviado em Agosto de 1792 para coroar o Rei Aleixo I, ali ficando como refém até à morte do Rei, para depois proceder à coroação do sucessor, D. Henrique I. Fr. Raimondo escreveu um relato da sua missão, que foi publicado em português, pelo P.e António Brásio. Como referiu Susan H. Broadhead, ao contrário do que afirmam o P.e António Brásio e T. Filesi, o original está em italiano, encontrando-se no Arquivo Histórico Ultramarino, onde foi descoberto em 1977. É um relato muito pessimista, quer sob o ponto de vista material, quer sob o ponto de vista religioso. Falhando na sua autoridade sobre as províncias, o Rei quase não tinha para comer.

O Rei Garcia V (1803 – 1830) insistia para Luanda com o Governador, para que este lhe enviasse um missionário para o coroar. Em 20 de Novembro de 1804, partiu um, mas foi assaltado no caminho, assassinado e as suas bagagens roubadas. Só em 1814 é que o Governador conseguiu convencer o prefeito dos capuchinhos Fr. Luigi-Maria d’Assisi a ir a S. Salvador. A 17 de Março de 1814, finalmente, presidiu aquele padre ao casamento religioso do Rei e à sua coroação. Regressou a Luanda em Novembro de 1814. Durante a sua estadia, ministrara 25 000 baptismos e ouvira 6 000 confissões (com intérprete, claro).

Fr. Luigi-Maria d’Assisi não sobreviveu muito depois da sua viagem: morreu em Luanda em Julho de 1815.

Em 1835, havia ainda dois missionários em Luanda, Fr. Pietro Paolo da Bene e Fr. Bernardo da Burgio; foram expulsos em 1835, na sequência do decreto de 28 de Maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar, o “mata frades”, que suprimiu todas as ordens religiosas.

Um sobrinho de Garcia V, D. Afonso, que, em 1803, com a idade de nove anos, tinha sido enviado para Luanda, foi ali ordenado sacerdote em 1824; exerceu depois o apostolado na capital congolesa durante 10 anos (1826 – 1836).

A Garcia V, sucedeu André II, em cujo reinado nenhum missionário apareceu em S. Salvador e por isso, não chegou a ser coroado. Havia um padre congolês, mas aparentemente esse não servia para o efeito.

A André sucedeu Henrique II, um bom diplomata do clã dos Água Rosada.

Logo em 1843, o novo Rei enviou a Luanda seu filho D. Álvaro pedindo que um padre o fosse coroar. O Capítulo dos Cónegos do Congo, há dois séculos em Luanda, encarregou o padre africano António Francisco das Necessidades do caso e este chegou a S. Salvador em Novembro de 1843. Na ocasião da coroação, D. Henrique II entregou ao padre um manuscrito datado de 1 de Janeiro de 1782, contando a história do Congo cristão, para que ele o copiasse; este texto foi publicado no Boletim Oficial de Angola (Anexo 2) (mas nada dá a entender que seja uma tradução do kikongo, como diz F. Bontinck). Mais tarde, o mesmo padre fez diversas viagens ao interior do Reino; em 25 de Março de 1845, redigiu um relatório sobre as suas actividades durante 15 meses: ministrara 106 064 baptismos, ouvira 455 confissões e dera o hábito de Cristo a 70 fidalgos congoleses.

Em Junho de 1845, o Governador de Angola enviou como seu embaixador a S. Salvador, o capitão António Joaquim de Castro, que era portador de uma carta do Governador, datada de 31 de Maio, em que o Rei era convidado a enviar para estudar em Lisboa, o seu filho, D. Álvaro. Castro assinou com o Rei um acordo em cinco artigos. Em virtude do tratado, o Rei do Congo permitia aos portugueses fixarem-se nas terras do Ambriz e aí construir uma fortaleza. Da sua parte, os portugueses comprometiam-se a restaurar uma das igrejas da capital; a manter aí um missionário de boa conduta e um professor; e viriam em ajuda do Rei, se ele fosse atacado na sua capital.

D. Henrique II ficou satisfeito por os portugueses irem ocupar Ambriz (1855). O titular de Ambriz era um rebelde que não pagava o tributo devido havia muitos anos. O tributo, ainda que nominal, era importante; o Soyo pagava tributo ainda no reinado de Garcia V.

Ainda em 1845, o Rei enviou um seu filho para estudar em Lisboa. Mas não foi D. Álvaro, mas o irmão mais novo, D. Nicolau de Água Rosada de Sardónia. Este estudou em Coimbra durante um ano e depois, em 1847, regressou a Luanda para aí prosseguir os seus estudos. D. Nicolau não regressou ao Congo. Em 1850, foi-lhe dado um lugar escrivão da Fazenda em Luanda, tendo sido transferido para o Ambriz em 1857.

A morte de D. Henrique II em 23 de Janeiro de 1857 marcou um ponto de viragem na vida política e económica do Congo. Em 1840, haviam aparecido na costa navios anti-escravatura. Finalmente, ia acabar a indústria da venda de pessoas, como se fossem animais. Foi iniciada a exploração do cobre nas minas do Bembe (1856).

Desde os primeiros dias após a morte do Rei, o povo elegeu como sucessor D. Alvaro Makadolo, marquês do Dongo, filho de uma irmã falecida do Rei Henrique. Segundo os costumes do Reino, o Rei eleito só poderia subir ao trono após a morte do seu predecessor, cujo cadáver, embrulhado em muitos panos e “fumado”, era mantido durante muito tempo, um ano ou mais. O governo interino foi confiado a D. Isabel, outra irmã do rei defunto, mãe de três filhos, D. Afonso, D. Pedro Lefula e D. Henrique Nuzanga, e de duas filhas. D. Pedro Lefula (marquês de Katende) e D. Henrique Nuzanga, assinaram em Junho de 1857, um acto de vassalagem à coroa portuguesa, pelo que agradaria ao Governador a candidatura real de D. Pedro Lefula.

Surgiu um terceiro pretendente: um certo Kiambu, chefe de Nkunga, localidade a uma hora de caminho, a sudoeste de S. Salvador. Em Junho de 1857, Kiambu atacou a capital que incendiou (com excepção das casas do Rei), mas foi rechaçado pelos filhos da Regente.

Entretanto, o Governo português deu ordem ao Governador de Angola para que um ou mais padres se dirigissem a S. Salvador para fazerem o funeral do rei falecido e coroarem o seu sucessor. Com toda a evidência, não se aceitava a eleição de D. Álvaro Dongo e esperava-se que uma nova eleição desse o trono a D. Pedro Lefula. Mas não havia na altura padres disponíveis.

Ainda antes da coroação, houve duas tentativas falhadas. Em meados de 1858, D. Pedro, marquês de Katende, veio visitar as minas de Bembe e pediu aos portugueses para enviarem padres a S. Salvador para o coroar. Algum tempo depois da sua partida, o pároco de Ambriz, José Agostinho Ferreira , juntou-se ao pároco de Bembe, José Maria de Morais Gavião e, a 7 de Outubro de 1858, dirigiram-se ambos a S. Salvador para coroar D. Pedro. Prevendo oposição por parte de D. Álvaro Dongo, eram escoltados por uns trinta soldados, sob as ordens de Zacarias da Silva Cruz, administrador do concelho de D. Pedro V. No caminho, pararam em Kinilasa, onde residia D. Pedro. Este, porém, não ousou acompanhá-los à capital. Chegaram, porém, mensageiros com uma carta escrita em nome da Rainha-viúva D. Ana, do duque de Mbamba e de D. Álvaro Dongo, pedindo que os padres se apressassem a ir para S. Salvador para enterrar o rei defunto.

Os padres partiram para a capital e aí permaneceram de 1 a 22 de Outubro, ministrando um grande número de baptismos. Fizeram o funeral do Rei D. Henrique II, mas recusaram-se a coroar D. Álvaro Dongo, que estava senhor da cidade. A população virou-se contra Zacarias da Silva Cruz, considerado responsável por esta recusa. Com uma escolta reduzida, este abandonou rapidamente a cidade, acompanhado pelos padres.

Zacarias da Silva Cruz escreveu uma viva descrição desta viagem que foi publicada no Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola (ver aqui); não ousou, porém, falar da hostilidade da população.

Em Bembe, Zacarias da Silva Cruz preparou uma nova expedição, levando desta vez cem soldados. Os padres foram bem acolhidos, mas a presença dos soldados não conseguiu intimidar a população e o Capitão Zacarias da Silva Cruz regressou a Bembe o mais depressa possível. A coroação de D. Pedro provocaria certamente a resistência armada da população. Esta esperava que D. Álvaro conseguisse recuperar as minas de Bembe. Antes da ocupação portuguesa, 200 a 300 toneladas de malaquite eram extraídas anualmente das minas por métodos rudimentares e vendidas pelo povo, desprovido de recursos materiais. Diga-se de passagem que a exploração das minas por uma companhia inglesa tinha redundado em fracasso: nove meses após a chegada dos mineiros ingleses, oito tinham sucumbido ao clima assassino e os restantes foram repatriados.

O Governo de Luanda decidiu então impor D. Pedro Lefula pela força. Em meados de 1859, o capitão de artilharia, Joaquim Militão de Gusmão, foi destacado para o efeito para Bembe. Acompanhado pelo capitão Zacarias da Silva Cruz e pelos párocos de Ambriz e de Bembe, dirigiu-se com D. Pedro Lefula para a capital, mas não ousou atacá-la. D. Pedro V foi coroado no lugar de Mbanza Puto em 7 de Agosto de 1859. Na ocasião, o Rei assinou um acto de homenagem e vassalagem à coroa de Portugal, confirmado por juramento. Este acto foi redigido em quatro exemplares, dos quais um foi entregue ao novo rei e depois publicado no Boletim Oficial de Angola, de 17 de Setembro de 1859. O acto foi assinado por D. Pedro V, pelos dois comandantes militares e pelos dois padres; por D. Álvaro, duque de Mbamba e irmão do novo rei; por D. Álvaro de Água Rosada, chefe de Mbanza Puto; por D. António, irmão da Rainha viúva e por três funcionários do rei: o primeiro e o segundo secretários e o escrivão do Estado, D. José Pedro, originário de Massangano, mas residente há nove anos no Congo. Cinco sobas analfabetos (de Sekueda, de Kimpesi, de Kintunu e de Sambu) deram o seu acordo com uma cruz.

Entre os signatários, alguns trânsfugas do partido de D. Álvaro Dongo: o chefe de Mbanza Puto, D. Álvaro de Água Rosada, que era tio de D. Álvaro Dongo, mas também sobrinho de D. Pedro V (a quem sucederia em 1891); D. António, irmão da Rainha viúva. Os filhos do Rei Henrique II, D. Domingos e D. Álvaro, não estiveram presentes.

Agora, D. Pedro V teria de ficar à espera que os militares portugueses lhe abrissem o caminho para S. Salvador. O capitão de artilharia, Joaquim Militão de Gusmão, não se atrevia a atacar S. Salvador, apesar das ordens reiteradas do Governador-Geral de Angola, Coelho do Amaral. No mês de Outubro (de 1859), o governador do Ambriz, Sousa Menezes, dirigiu-se pessoalmente a Banza Puto e ordenou ao Capitão Militão que atacasse. Este, obrigado a obedecer, passou à acção a 12 de Novembro, à frente de 75 soldados. Mas, como ele mesmo havia previsto, as forças de D. Álvaro Dongo, mais numerosas e mais aguerridas, puseram os portugueses em debandada. O capitão foi morto, Sousa Menezes foi ferido na cabeça, ao mesmo tempo que os soldados retiravam em desordem, deixando no terreno uma peça de artilharia. Os africanos levaram o cadáver do Capitão Militão. Diz-se que D. Álvaro Dongo lhe arrancou e comeu um pedaço de coração, enquanto utilizava o crâneo como taça para beber o vinho de palma.

Em Luanda ou no Ambriz, D. Nicolau de Água Rosada de Sardónia, leu no Boletim Oficial o documento assinado pelo seu primo e não gostou do que leu. Escreveu duas cartas de protesto, uma dirigida a D. Pedro V, Rei de Portugal e outra a D. Pedro II, Imperador do Brasil. Mais importante que essas cartas, enviou para publicação no Jornal do Comércio, onde saiu em 1 de Dezembro de 1859, um artigo que a seguir se reproduz:

Jornal do Commércio, 1 de Dezembro de 1859, pag. 2

Sr. Redactor, Rogo a v. o especial obséquio de publicar no seu mais próximo jornal, o protesto que junto lhe remeto, e cuja publicação já de antemão lhe agradece quem é

De v. etc.

D. Nicolao d’Água Rosada

Tendo publicado no boletim oficial do governo geral d’esta província de Angola n.º 728, de 17 do corrente mez, o seguinte

Auto de acclamação e coroação

“Anno de nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e cincoenta e nove, aos sete dias do mês de Agosto, n’esta povoação de Banza a Putu, de que é soba e príncipe D. Álvaro de Água Rosada, onde se achava o capitão da batteria de artilheria de Loanda, Joaquim Militão de Gusmão, o capitão do batalhão de caçadores número dois d’esta província e chefe do concelho de D. Pedro V, Zacharias da Silva Cruz, e os mais officiaes da expedição abaixo assgnados, com os reverendos párochos, do Ambriz, José Agostinho Ferreira, e do Bembe, José Maria de Moraes Gavião, e o Marquez de Catendi, D. Pedro, os fidalgos do Congo abaixo assignados, e o povo, se procedeu se procedeu ao solemne acto de acclamação e coroação do novo rei do Congo, na pessoa do mencionado Marquez de Catendi, D. Pedro, o qual, depois de ser pelo povo e fidalgos presentes, proclamado e reconhecido rei do Congo, foi pelos reverendos párochos, José Agostinho Ferreira e José Maria de Moraes Gavião, coroado com as formalidades religiosas de estylo n’este reino; e na mesma occasião prestou o dito novo rei o juramento de preito e homenagem a S. M. el-rei de Portugal o senhor D. Pedro V, obrigando-se a seguir o exemplo de seus antecessores na obediência devida ao mesmo augusto senhor, quer por si, quer pelos seus povos; esperando de S.M. el-rei de Portugal a continuação de auxílio para manter em socego o seu reino e civilisal-o. O dito juramento prestado perante todos foi acceito pelo chefe do concelho de D. Pedro V, em nome de sua ex.ª o governador-geral da província, como delegado do soberano. E para firmesa se lavraram quatro autos de egual theor, assignados pelo rei e mais pessoas principaes presentes sendo de cruz as assignaturas dos fidalgos que não sabem escrever, e um dos ditos autos foi entregue ao mesmo rei. Eu, Miguel Correia de Freitas, que servi de secretário, o escrevi e assignei. – D. Pedro V, rei do Congo – Zacharias da Silva Cruz, capitão, chefe. – Joaquim Militão de Gusmão, capitão – José Maria de Moraes Gavião – parocho do Bembe – José Agostinho Ferreira, parocho do Ambriz – Francisco Mendes dos Santos, alferes – D. Álvaro, Duque de Bamba – D. Álvaro de Água Rosada, príncipe de Banza a Putu – D. António, irmão da rainha viúva – D. Álvaro Bubuzi, primeiro secretário – D. Garcia de Água Rosada, segundo secretário – D. José Pedro, escrivão do Estado –De D. António Bondiongo, soba de Sucanda, uma cruz – De D. Pedro Tambica, soba de Quinpeci, uma cruz – De D. João, soba de Quintinu, uma cruz – De D. João, soba de Samba, uma cruz – De D. Álvaro Panza, soba de Quintinu, uma cruz – Miguel Correia de Freitas”.

Importando este auto, pelo juramento de preito e homenagem que se diz prestado pelo Marquez de Catendi, meu primo co-irmão, na qualidade de rei do Congo, ao rei de Portugal, uma infracção da independência nacional, aliaz reconhecida pela historia e pelo próprio governo de S.M.F. e por todos os seus delegados n’esta província, em diversos documentos officiaes, alguns dos quaes têm sido publicados no mesmo boletim official, como, por exemplo, a carta do ex-governador-geral, visconde do Pinheiro, no n.º 423, de 5 de Novembro de 1853, ao fallecido rei D. Henrique II, meu pae;

E não possuindo o reino do Congo pessoa alguma com tanta instrucção, quanta é precisa para fazer um publica e solemne declaração a este respeito, senão eu que sou um de seus príncipes;

É de meu dever, como tal, protestar, como protesto, contra o referido auto, na parte que sujeita o mesmo reino ao de Portugal:

1.º Porque S.M. El-rei catholico do Congo, e amigo e fiel alliado , mas não vassalo, de S.M.F. El-rei de Portugal, para que lhe deva obediência, sendo n’aquella qualidade que o dito meu primo pediu ao governo geral d’esta província o auxílio da força militar, que ali se acha, para subir ao throno que lhe disputava ou ainda disputa um competidor não descendente da família real;

2.º Porque El-rei do Congo, D. Pedro VI, e não V, como diz o auto, bem como o duque de Bamba, o príncipe de Banza a Putu e o irmão da rainha viúva, que todos se dão no referido auto como sabendo ler e escrever, ignoram completamente não só ambas as coisas, mas também a língua portugueza, sendo, portanto, falsa a declaração que o mesmo auto está por elles assignado;

3.º Porque os secretários e o chamado escrivão do Estado comprehendem tão mal o idioma portuguez, que tomaram a phrase juramento de preito e homenagem por rectificação de aliança e amizade, tendo, por conseguinte, os dois primeiros, os únicos que escrevem e bem mal os seus nomes (porque o último, com quanto tenha sido classificado de escrivão do Estado, não sabe comtudo escrever), assignado tal auto, se é que o assignaram – tão de cruz como os sobas de Secueda, de Quinpeci, de Quintinu e de Samba.

Outrosim protesto desde já contra todos e quaesquer actos que se estiverem praticando, ou se praticarem de futuro, no reino do Congo, em seguimento ao que acima me refiro, por abuso da falta de instrucção do respectivo rei e do povo.

S. Paulo de Assumpção de Loanda, 28 de Setembro de 1859

D. Nicolao d’Água Rosada

Príncipe do Congo

Embora a publicação deste artigo tivesse tido pequena repercussão em Portugal, fez franzir alguns sobrolhos em Angola. Para além do resto, D. Nicolau era funcionário e, como tal, poderia ser responsabilizado pelas posições políticas tomadas publicamente. Em 17 de Abril e 1860, é-lhe transmitida uma ordem de transferência para a nova cidade de Moçâmedes.

Mas em 13 de Fevereiro de 1860, D. Nicolau abandonou o Ambriz, com a ajuda do cônsul brasileiro, Saturnino de Sousa e Oliveira. Este estava disposto a ajudá-lo a sair de Angola e foi ter com o cônsul inglês, Edmund Gabriel, a fim de que este procurasse um navio inglês, que o pudesse levar até ao Brasil, partindo de um porto a norte de Ambriz.

O cônsul planeava uma vaga aliança com o Brasil, enquanto D. Nicolau pensava ir para o Brasil a fim de completar a sua educação. Mais tarde, Sousa e Oliveira falou de um plano de D. Nicolau de embarcar 200 a 400 escravos, figurando como seus criados, que venderia a um agente francês na costa.

De Ambriz, D. Nicolau foi para Kissembo, munido de uma carta de apresentação do cônsul inglês para qualquer navio da mesma nacionalidade. Quando chegou a Kissembo, entrou na casa de um negociante inglês, Mr. Morgan. A casa foi logo cercada por um enorme grupo de africanos hostis, gritando por Nicolau. Morgan recusou-se a entregar Nicolau, mas os africanos forçaram a entrada, arrastaram Nicolau e assassinaram-no.

Porque mataram os pretos D. Nicolau? Como diz F. Bontinck, os pretos do Ambriz viam nele o filho do Rei Henrique, que havia apoiado os portugueses conquistadores do Ambriz e havia entregue as minas de malaquite; o primo direito de D. Pedro V (a quem ele apoiava) que por duas vezes havia feito acto de vassalagem aos portugueses e, também um branco-negro, um mundele-ndombe, colaborador no Ambriz dos portugueses odiados, que queriam estender o seu domínio nas costas deles, de Kissembo até além do Zaire.

Entretanto, D. Pedro V ainda não tinha entrado em S. Salvador. Só em 16 de Setembro de 1860, é que uma força, comandada pelo tenente de marinha Baptista de Andrade, parte de uma força expedicionária de 750 homens que chegara da Metrópole, avançou para S. Salvador e expulsou D. Álvaro Dongo que fugiu para casa de seu irmão D. Rafael, soba de Nkunga, a duas horas de caminho da capital. Três semanas mais tarde, a 9 de Outubro, com mais de 2 000 guerreiros, D. Álvaro lançou um contra-ataque contra a residência de Pedro V, em S. Salvador. Foi rechaçado pelos soldados portugueses, que, em represália, queimaram treze aldeias dos seus apoiantes.

Em 1898, muito depois da morte (natural) de D. Álvaro Dongo (terá morrido em 1875), ainda ele não estava sepultado, por vontade dos seus parentes e partidários que diziam que havia de ser sepultado em S. Salvador, sobre o cadáver de D. Pedro V. O residente português, José Heliodoro Corte Real de Faria Leal, autoridade administrativa, após a reocupação militar em 1888, conseguiu reatar as relações entre os partidários de Dongo e as gentes de S. Salvador. Assim, em Abril desse ano, fazia-se o funeral definitivo do rei destronado, cujos restos mortais jaziam num chimbeque, ao fumeiro, embrulhado num grande rolo de panos.

O crânio do Capitão Militão estava na posse do irmão, D. Rafael, que por ele ainda bebia o vinho de palma. Faria Leal conseguiu que ele D. Rafael lhe entregasse o lúgubre troféu e deu-lhe também sepultura.

Os militares enviados da Metrópole sofreram uma autêntica razia no Congo, ainda pior que a guerra: do verão de 1860 até finais de 1861, as guarnições de Ambriz, Bembe e S. Salvador perderam 304 soldados e 16 oficiais, ceifados pela febre amarela e outras doenças tropicais.

Em 1868, desistiu-se da ocupação militar e a tropa abandonou S. Salvador. Não se concretizou, porém a previsão do Governador Gonçalves Cardoso, de que D. Pedro V seria morto após a retirada da tropa portuguesa.

Em 13 de Fevereiro de 1881, chegou a S. Salvador uma missão de três padres, António José de Sousa Barroso, Sebastião José Pereira e Joaquim Folga, com quem vinham quatro operários. D. António Barroso (1854-1918) tinha por missão fazer frente à Igreja Evangélica Baptista, vigiar Stanley e outros estrangeiros no Congo e, de certo modo, reimplantar a presença portuguesa. Na falta de tropas, ele e os companheiros foram, de 1881 a 1888, a sentinela de Portugal no Congo. Foi mais tarde Bispo do Porto.

A tarefa era difícil, pois os protestantes dispunham de muito mais fundos que a missão católica e davam mesmo presentes valiosos ao Rei.

Em Julho de 1888, voltou-se a ocupar S. Salvador com uma pequena força militar, sendo nomeado Residente, o Capitão João Rogado de Oliveira Leitão. O Rei deixou de poder cobrar impostos, e de condenar à morte, passando a receber do Governo 30$000 réis mensais.

O novo residente Faria Leal chegou em Fevereiro de 1896, permanecendo no cargo até 1910, regressando depois em 1911 até Março ou Junho de 1912.

D. Pedro V faleceu em 14 de Fevereiro de 1891, sucedendo-lhe no trono, D. Álvaro de Água Rosada, bastante doente, tendo mesmo sido enviado a Lisboa para ser tratado.

Acabou por falecer em 18 de Novembro de 1896.

Por morte de D. Álvaro, não ficou herdeiro directo, isto é sobrinho seu, filho de irmã uterina.

O trono pertencia assim a Pedro de Água Rosada Lelo, menor de 7 anos, neto de D. Pedro V e também sobrinho, por ser filho de D. Nicolau, filho de uma irmã uterina de D. Pedro V e de uma filha de D. Pedro, de nome Isabel Buene (Faria Leal).

Alguns dos conselheiros apresentaram o menino Lelo ao Residente português, pedindo que fosse mandado educar em Lisboa, a fim de ocupar o trono quando fosse de maior idade.

Uma parte do povo apresentou para rei, D. Henrique Teiéquengue, parente próximo de D. Álvaro. A 9 de Julho de 1897, seguia para Luanda, para ser educado, o menor Pedro de Água Rosada Lelo e D. Henrique foi reconhecido como Regente.

O Governador Geral, Guilherme Capelo, decidiu mandá-lo para a missão dos padres do Espírito Santo, na Huíla , e não para Lisboa, como se tinha pedido, o que desagradou a vários elementos e ao Residente.

D. Henrique pouco tempo viveu, pois veio a morrer de uma angina em 23 de Abril de 1901.

Por morte de D. Henrique, apareceram vários pretendentes, entre eles D. Álvaro de Água Rosada (Tangue) e D. Garcia Quibilongo, soba do Quimiala, na Madumba, que acompanhara o Rei a Lisboa, que eram os de maior partido. Como não havia qualquer possibilidade de entendimento entre os apoiantes de um e do outro, o Residente indicou como Regente um terceiro, de nome Pedro Bemba, parente do rei e soba do Tuco, continuando a contar-se com Lelo, o educando da missão de Huíla, para Rei. Era o dia 8 de Maio de 1901.

Pedro Bemba veio a falecer em 24 de Junho de 1910. Quando se levantou o problema da sucessão, tinha já sido proclamada a República em Portugal e o Residente comunicou à população que não tinha sentido manter a monarquia de S. Salvador.

Sendo conveniente haver uma autoridade indígena, foi nomeado Juiz Popular, Manuel Martins Quedito, arbitrando-se-lhe uma pensão de 15$000 réis mensais em vez dos 30$000 réis que ganhava o antigo rei.

O descendente real Pedro de Água Rosada Lelo tinha sido esquecido; fora, entretanto, nomeado funcionário dos Correios.

Alguns autores voltam a falar de Reis do Congo no sec. XX, por exemplo: D. Manuel III (1910 – 1914), D. Álvaro Nzinga (1914 – 1923), D. Pedro VII (1923 – 1953) e D. António III (1953 – 1957), mas ao nome não correspondia praticamente qualquer poder. Anota Francisco Castelbranco, em 1932: “O actual rei do Congo é D. Pedro VII. Subiu ao poder, se não estamos em erro, em 1923, contra a opinião de alguns príncipes. Em 10 de Janeiro de 1931, casou com Izabel Tusamba, descendente dos antigos reis do Congo, tendo paraninfado este acto, que foi religioso, o então administrador da circunscrição de S. Salvador, Hermínio Castelbranco e sua esposa D. Clementina dos Santos Castelbranco. O poder de D. Pedro VII é hoje muito restrito. Pouco além vai da autoridade dum soba da actualidade.

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Fonte:arlindo-correia.com

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