A Revolta de Tulante Álvaro Buta

Por Jelmer Vos (Tradução de Sérgio Lamarão)

O fato de a violência governamental não ter sido imposta por agentes externos – de Portugal ou de outras partes de Angola – mas sim perpetrada por indivíduos de dentro da própria comunidade constitui o drama subjacente à história da exploração colonial no início do século XX no Kongo. Em dezembro de 1913, os chefes do Kongo responderam à inesperada brutalidade da dominação colonial promovendo uma rebelião destinada a limpar a comunidade dos malfeitores, incluindo o rei Manuel Kiditu, que foi considerado como o principal responsável pela perda repentina da paz no reino. A revolta contra São Salvador representou, sobretudo, uma tentativa para afastar o rei e alguns dos seus colaboradores mais próximos, uma vez que os chefes rebeldes não reconheciam os poucos funcionários brancos que serviam na capital como alvos importantes. O levante revelou, de forma inequívoca, alguns dos aspectos fundamentais de um típico movimento de renovação do Kongo (Janzen, 2013): os chefes explicaram a desordem e a injustiça como resultados da ganância, da inveja e da maldade existentes no interior de seu próprio grupo. Acusações explícitas de “feitiçaria” (kindoki) estavam ausentes do que ficou registrado do discurso dos insurgentes, mas muito provavelmente eles viam a destruição social forjada pela tributação e pelo recrutamento da força de trabalho como obra de feiticeiros, pessoas que lançavam mão de poderes ocultos com objetivos egoístas. Na verdade, ficou evidente para a maioria dos chefes que a violência do colonialismo fora provocada pelo egoísmo dos agentes locais do governo, razão pela qual o seu porta-voz, Tulante Álvaro Buta, enfatizou a questão da mudança política em termos de regeneração moral. Sua prédica após o ataque a São Salvador revelou uma notável semelhança com um ritual de cura coletiva do século XVII, conhecido como mbumba kindonga, no qual, segundo John Thornton (1998), “ciúmes antigos eram arejados e uma raiva silenciosa liberada”, antes das dissensões existentes serem enterradas e de a comunidade poder se recuperar (p. 55). Mas nessa ocasião, os rebeldes do Kongo fizeram mais do que apenas agitar o ar. A purificação também consistiu na expulsão de malfeitores do reino, para que a justiça e a harmonia pudessem ser restauradas.

A grande revolta de 1913 veio na esteira de uma tentativa oficial dos portugueses para fazer com que o reino do Kongo se tornasse de novo um importante centro fornecedor de mão de obra para São Tomé e Príncipe, quatro séculos depois de escravos kongo terem sido os primeiros povoadores do arquipélago produtor de açúcar no golfo da Guiné. De modo geral, o Kongo ficou fora das redes de escravização da África Central que, desde a década de 1870, abasteceram essas pequenas, mas férteis ilhas com a maioria dos trabalhadores para as suas plantações de cacau em expansão (Clarence-Smith, 1990, 1993). Em 1913, no entanto, o governo português estendeu oficialmente o recrutamento para as ilhas ao distrito angolano do Congo, na expectativa de diminuir sua dependência da “nova escravização” que assegurava o fornecimento de mão de obra de outras partes de Angola e que tinha colocado o regime colonial sob escrutínio britânico (Grant, 2005). Embora esse recrutamento planejado nunca tenha se materializado, as negociações fracassadas entre a administração colonial, o rei, e cerca de 50 chefes do Kongo a respeito dos trabalhadores migrantes em outubro de 1913 constituíram uma etapa crucial na preparação para a revolta em dezembro.

Em setembro de 1913, Portugal designou pela primeira vez o distrito do Congo como uma área de recrutamento na qual os agentes oficialmente reconhecidos receberam autorização para arregimentar até 1.500 trabalhadores para as plantações na ilha de Príncipe até o final do ano. Tratava-se de um número considerável, levando-se em conta que durante o ano de 1913, um total de cerca de mil “serviçais” tinham sido enviados de Angola para São Tomé e Príncipe. O distrito foi escolhido para abastecer a ilha menor, Príncipe, porque os funcionários consideravam a região do Kongo uma área de baixo risco para a disseminação da doença do sono, que estava afetando duramente outras partes de Angola, de onde os migrantes tinham espalhado a doença por toda a ilha de São Tomé (Diniz, 1914, pp. 87-88). Mas o fato de o rei ter sido sensível às demandas de Cabinda por mão de obra sem dúvida também influenciou a decisão de Portugal de buscar trabalhadores das plantações no Kongo.Em meados de outubro, um agente português chamado Godinho chegou a São Salvador com o objetivo de arregimentar tantos trabalhadores quantos a lei permitisse. Em nome do chefe de posto Paulo Moreira, Manuel Kiditu convocou cerca de 50 chefes de todo o reino, que, no ano anterior, haviam sido reconhecidos oficialmente como “primeiro chefe” (mfumu antete) para auxiliar o governo na cobrança de impostos e na mobilização da força de trabalho. Porém, depois que os termos do contrato foram explicados a eles, os chefes recusaram-se a cooperar. Através de seus porta-vozes, Afonso Kalanfwa e Tulante Álvaro Buta – o primeiro, um protestante da região de Nkanda, e o outro um católico de Madimba –, os chefes deixaram claro que a recusa nada tinha a ver com os termos do contrato. E nem que, é preciso acrescentar, eles tinham sido influenciados pela campanha humanitária lançada contra o regime de trabalho implantado por Portugal em São Tomé e Príncipe. Como o missionário George Claridge explicou mais tarde:

a solicitação de trabalhadores para [São Tomé e Príncipe] não incutiu nos chefes esse medo que nós temos […] associado a ela. Eles não conheciam o significado do trabalho em [São Tomé] como nós o conhecemos. Quando disseram não, assim o fizeram à luz de sua experiência imediata, sobretudo daquela relacionada a Cabinda.No espaço de poucos anos, o governo colonial tinha levado os chefes do Kongo e suas comunidades aos limites de sua resistência. Chegou-se a um ponto em que os camponeses tiveram de vender seus pertences básicos para poderem pagar o imposto de palhota. Para escapar a essa privação muitas famílias deixaram de atender às suas obrigações fiscais ou decidiam se mudar para o Congo Belga29. Nessas circunstâncias, os chefes resolveram, praticamente por unanimidade, opor-se às demandas posteriores de força de trabalho vindas do governo.

Quando a administração colonial tentou retomar o recrutamento para Cabinda em novembro de 1913, a recusa se transformou em revolta. Moreira recebera uma ordem para alistar 75 trabalhadores para uma fazenda portuguesa no enclave. Só conseguiu trazer 39 para São Salvador, pois 40 homens escaparam no caminho., em manifesto desafio à autoridade colonial. Ao fazer a mediação entre o chefe de posto e os chefes, o rei contava com Álvaro Buta para fornecer trabalhadores, serviço que ele já havia prestado antes. Dessa vez, porém, Buta recusou-se e ao invés de colaborar com Kiditu despachou mensageiros para orientar os chefes a preparar um ataque contra São Salvador. Com milhares de rebeldes armados agrupados ao sul da capital no início de dezembro, Moreira fez uma última e desesperada tentativa para restaurar a paz, mas não foi bem-sucedido. Na manhã do dia 10 de dezembro, Buta e seus aliados lançaram o primeiro ataque em grande escala à cidade sagrada do Kongo em mais de meio século. Embora não tenham chegado à sede da administração, eles saquearam e queimaram os arredores da cidade habitados por católicos, incluindo o bairro real. As motivações por detrás do levante e as razões de Buta para visar apenas uma parte da cidade foram tornadas públicas nos dias que se seguiram.

Em 11 de dezembro, houve um encontro em São Salvador entre os rebeldes e o administrador local, Paulo Moreira, que teve prosseguimento no dia seguinte em Zamba, algumas milhas ao sul da capital. Aproximadamente mil homens vieram a São Salvador naquela manhã, muitos armados com espingardas, os rostos cobertos com pinturas de guerra; durante o dia, juntaram-se-lhes mais mil homens. Os rebeldes eram liderados por seu porta-voz, Tulante Álvaro Buta, ladeado durante toda a conversação por Afonso Nkongolo, seu “lugar-tenente militar”, e por Afonso Kalanfwa, representante oficial da princesa Noso, de Mbanza Mputu, uma das vilas mais importantes no reino. Delegações das missões batistas e católicas também estavam presentes. Um dos padres portugueses, Manuel Rebello, tomou notas da reunião com a ajuda de um notável intérprete, António Moreira Cardoso Nensuka, filho do falecido Álvaro XIV, que trabalhava como amanuense na administração colonial. Os missionários batistas tinham sido convidados por solicitação de Buta para servirem como observadores imparciais. Embora Buta fosse católico durante toda a vida, perdera a confiança nos padres ao longo dos acontecimentos que levaram à revolta. O catequista Miguel Nekaka fez a tradução para os missionários ingleses.

Buta dirigiu seu discurso especificamente para os missionários, iniciando sua fala com uma repreensão moral:

Viemos perante vocês, professores da Missão Católica e da Sociedade Missionária Batista, porque sabemos que vocês estão aqui para o nosso bem. Vocês nos ensinam a não matar, a não sermos gananciosos, a não cometermos adultério, a não roubar… Alguns de nós… mesmo alguns de nós que não sabem ler nem escrever tentam preservar o que vocês ensinam, mas alguns nos envergonham e é sobre isso que vou falar agora. Eles assaltam, eles destroem, eles obrigam nossas mulheres a cometer adultério com eles, e são essas coisas que queremos falar perante os padres e os missionários ingleses.

Essa declaração introdutória expressava o valor que as elites do Kongo atribuíam aos ensinamentos cristãos, tanto em termos morais quanto em termos do aprendizado prático, ele mesmo um símbolo de autoridade moral. Buta enfatizava, assim, que a exploração do Kongo nas mãos dos agentes coloniais – aos quais designaria pelo nome – constituía um ataque à própria moralidade que a cristandade representava no reino. Aqueles que “nos envergonham” eram os policiais, os mensageiros da corte e os funcionários alistados localmente, que tinham auxiliado o rei e o administrador – sempre referido como “Senhor Paulo” – na extorsão de impostos e mão de obra. Enquanto isso, os missionários despontavam como os guardiões dos padrões morais cristãos pelos quais os chefes julgavam o comportamento amoral de alguns membros da comunidade.

Para indicar o início da corrupção moral no reino, Buta chamou atenção para os últimos reis Kivuzi e Água Rosada, argumentando que sob o governo de Henrique II (1842-1857), Pedro V (1860-1891) e Álvaro XIV (1891-1896) “as pessoas eram governadas por amor”. Mas depois que Henrique Teyekenge havia chegado ao poder em 1896, as relações entre São Salvador e os distritos mais distantes tornaram-se tensas. Ao contrário dos seus antecessores, Teyekenge era um “homem jovem” no momento de sua indicação e tendeu a governar de forma arbitrária, abusando da aliança entre o Kongo e o governo português em seu próprio benefício. Seu sucessor, Dom Pedro Mbemba (1901-1910) foi associado especificamente à introdução do imposto de palhota. No início, a maioria dos chefes resistiu aos impostos coloniais, mas “eles acabaram sendo convencidos de que era bom e justo pagá-los”. O poderio militar do governo os havia influenciado naquela altura, é claro, mas como nessa ocasião tinham a faca na mão, exigiram a redução do imposto de palhota ao seu nível original.

Buta lembrou que após a morte de Mbemba, os Kongo queriam um rei que governasse o país “para a satisfação das pessoas”. O rei tinha de ser um bom negociador com o governo português, alguém que fosse “capaz de ler e escrever” e que representasse fielmente os desejos de seus súditos. Com esse fim, eles colocaram no trono Manuel Kiditu, que tinha sido educado na missão católica. Entretanto, sob o governo de Kiditu as condições no reino e a relação do Kongo com Portugal pioraram, sobretudo depois que o imposto de palhota se ligou às campanhas coloniais de mobilização de força de trabalho. No segundo dia de sua prédica, Buta relacionou esses acontecimentos diretamente às mudanças que tiveram lugar na administração colonial por volta de 1912. O residente que deixava o posto, Faria Leal, era conhecido e respeitado localmente como um lemba nsi, alguém que mantém a paz na terra. Já sob seu sucessor, começou o recrutamento de trabalhadores e as pessoas “não bebiam água nem comiam mais em paz”.

Para fundamentar as suas queixas contra o rei e outros funcionários corruptos na corte real, Buta narrou com detalhes meticulosos a história do recrutamento de trabalhadores em São Salvador em 1912 e 1913. Em primeiro lugar, lembrou a decepção que ele e outros sentiram quando Kiditu retornou de suas negociações com o governador distrital em Cabinda, em meados de 1912, com nada além de um pedido de trabalhadores, coerentemente chamados de “carregadores”, em referência ao tipo principal de trabalho realizado na economia colonial. Como a maioria dos chefes com influência no reino, Buta costumava fornecer carregadores para os empregadores locais, bem como homens para Cabinda quando Kiditu lhe solicitava. Lealdade ao rei, pequenas recompensas materiais e o medo de sanções levavam chefes como Buta a colaborar com o governo. Em pouco tempo, porém, os efeitos desastrosos do contrato de trabalho imposto pelo governo tornaram-se evidentes: os chefes de aldeia eram tomados como reféns enquanto os policiais dedicavam-se à extorsão e ao estupro; trabalhadores eram acorrentados e espancados; os salários não eram pagos no tempo devido ou não integralmente; e havia incerteza sobre o retorno dos migrantes do enclave de Cabinda.

Com o passar do tempo, o desapontamento de Buta em relação às políticas do rei tornou-se mais pessoal, na medida em que o comportamento do próprio Kiditu era cada vez mais errático. Por exemplo, quando Godinho veio a São Salvador, em outubro de 1913, para contratar 1.500 trabalhadores para São Tomé e Príncipe, o próprio rei instruiu seus chefes para não atenderem às demandas do “homem branco” – que não era lembrado pelo nome – e manterem-se firmes (nutoma kanga mpondaku, “apertem seus cintos”), que foi o que fizeram. Um mês mais tarde, contudo, o rei enviou mensageiros a Buta informando-lhe que ele seria preso e deportado para “Ponta” – palavra kongo para designar um ponto de comércio no litoral –, caso se recusasse a fornecer mais trabalhadores para Cabinda. De acordo com um relatório português, Buta disse a esses mensageiros que apenas porque eram seus parentes, não tiveram suas cabeças cortadas. Outros registros oficiais indicam que, por essa época, o governo havia reforçado seus postos militares na região de Madimba e autorizado Paulo Moreira a deter Álvaro Buta por não obedecer às ordens coloniais. Ciente da ameaça iminente, Buta escapou por pouco de ser preso em Kinganga (Belém), sede de uma missão católica em Madimba, onde achava que estariam, ele e os outros chefes, em segurança. Porém, um dos seus seguidores foi morto na briga que então ocorreu e foi isso, segundo o missionário Claridge, que “realmente precipitou o conflito”. A perda de um dos seus homens nas mãos de soldados de São Salvador acabou com o último resquício de confiança que Buta ainda tinha na integridade de seu parente, o rei. Com o rompimento das relações políticas normais com o rei e sua corte, Buta tomou a decisão de partir para a ação militar.

Numa declaração feita posteriormente, Kiditu transferiu a responsabilidade por essa crise política para Paulo Midosi Moreira, retratando-se sobretudo como um mediador entre o governo e os chefes. Kiditu afirmou que sabia que a Sociedade Missionária Batista estava investigando o seu envolvimento no recrutamento então em curso e que Buta tinha ameaçado matá-lo se ele e Midosi continuassem a lhe exigir trabalhadores. Assim, quando Midosi informou Kiditu sobre seus planos para capturar Buta, o rei o advertiu de que isso provocaria uma guerra, o que veio a acontecer posteriormente. Ademais, depois que Buta anunciou suas intenções de atacar São Salvador, Kiditu e muitos outros queriam que o missionário batista Joseph Sidney Bowskill negociasse uma trégua entre o governo e o exército rebelde de Buta, o que foi terminantemente recusado por Midosi. Aos olhos de muitos, porém, Kiditu não era um mediador, mas um ator central na política do Kongo e em última instância o responsável pela instabilidade existente no reino.

No entardecer de 11 de dezembro, Buta explicou seus motivos para atacar São Salvador, e por que seu grupo rebelde deixara incólume o odiado chefe de posto Paulo Moreira. Enquanto Buta e seus aliados reuniam milhares de guerreiros a algumas milhas ao sul da capital, Moreira sinalizou, por intermédio dos padres, que queria evitar um confronto em grande escala com os rebeldes, que excediam em muito o número de soldados coloniais à sua disposição. Buta, contudo, já havia perdido a fé nos padres, visto que eles haviam sido incapazes de protegê-lo anteriormente. Ele respondeu que “devia ir para o Kongo e ver o que estava acontecendo. Nós colocamos o Rei no trono para proteger o povo e como ele não faz isso, então devo ir lá e combatê-lo”, ao mesmo tempo em que se mostrava disposto a deixar Moreira e os padres fora do seu embate com Kiditu, se estes assim o desejassem. Assim, Buta assegurou às delegações que vieram posteriormente da capital que seu exército teria como alvo apenas Kiditu e seus seguidores. O fato de o chefe de posto ter sido tão prontamente descartado como um alvo irrelevante na insurreição demonstra o quanto os chefes do Kongo julgavam seu rei – e não Portugal – responsável pelas consequências nefastas da dominação colonial.

37No segundo dia da predicação, Buta apresentou as queixas e demandas específicas da sua coalizão rebelde. O primeiro homem acusado foi o secretário e conselheiro do rei, Manuel Lopes de Almeida, 50 anos de idade, descrito por Buta para os missionários como alguém que sabia ler e escrever, mas que não “respeita o que lhe foi ensinado”. Almeida foi acusado de abuso físico, extorsão, sequestro e outros crimes cometidos durante a cobrança de impostos. Devido a seus crimes, Almeida teve de deixar o país para ser julgado pelo governador português em Cabinda; caso contrário seria assassinado. O segundo principal acusado foi Afonso Kapitau, um velho conselheiro real e pai do igualmente odiado funcionário colonial Ambrósio Divengele. Na avaliação de Buta, que expressou especial decepção em relação à falta de orientação do ancião, ele era “o homem que havia arruinado o Rei […]. Ao invés de orientá-lo [o rei] no bom caminho, ele o enganou”. Kapitau parecia representar o clã de Buta no governo do Kongo, pois Buta disse que “ele tem comido o meu trono” (umdidi’e kiandu), expressão que significa a destruição da honra de alguém. Ele, que estava escondido, teve três dias para deixar o país. Sob gritos de aprovação, Buta também acusou um dos conselheiros protestantes, Pedro Talanga Nefwane, de comportamento desonesto. Embora seus crimes não tenham sido especificados, Talanga foi descrito como uma pessoa cruel (kimpumbulu), que “carrega intestinos de porco no bolso”, expressão kongo que denota avareza e ganância, ou seja, feitiçaria. Talanga teve de deixar sua função pública, mas foi permitido que retornasse para sua casa no interior do país.

O filho de Kapitau, Ambrósio Augusto Divengele, era o melhor exemplo da crise moral que afetara o reino nos últimos anos. Natural de São Salvador, Divengele cresceu sob a proteção de padres portugueses e tornou-se motivo de orgulho da missão. Entrou na escola católica em 1890, quando tinha sete anos e ainda estava com os padres em 1899, época em que aprendeu a ler, a escrever e a fazer contas básicas. Por ocasião do primeiro aniversário de sua igreja, em 1905, Divengele escreveu que os missionários “ensinam as regras do bem viver, não ensinam a soberba nem os ricos a andar em soberba”, citando o versículo 1 Timóteo 6:17, Palavra final de Paulo aos ricos. Quando escreveu essas palavras, estava trabalhando como pedreiro em São Salvador, profissão respeitada no Kongo colonial. Mais tarde, tornou-se amanuense na administração colonial, ajudando o governo na compilação de registros fiscais. Ele foi acusado de extorsão, diversos atos de violência e estupro. Casos como esse fornecem uma poderosa lembrança de como a militarização do poder no início da dominação colonial perturbou as relações comunitárias tradicionais e as ideias correspondentes de virtude cívica.

O “grande nó” (ejita diampwena) no relato de Buta diz respeito à derrubada de Kiditu. O rei, que estava escondido na missão católica durante a prédica, foi acusado de fraqueza política, traição e ganância. Conforme a explanação de Buta, desde quando assumiu o poder Kiditu nada fizera pelo seu povo; tudo que fez foi em benefício do administrador. Para ilustrar esse ponto, Buta explicou que quando os chefes forneciam trabalhadores por solicitação de São Salvador, “eles eram enviados em nome do Rei, mas quando eles vinham não era o Rei quem os queria, mas o Sr. Paulo”. Essa afirmação é reveladora de como o recrutamento de força de trabalho era um negócio obscuro, visto que as demandas coloniais por trabalhadores eram atendidas não através de contratos transparentes, mas da capacidade do rei de controlar o fornecimento com base na coerção, na lealdade e nas recompensas materiais. O comportamento errático de Kiditu durante seus dois anos no governo sugere que o próprio rei ficou dividido entre seu papel como representante do povo e sua posição de intermediário no sistema colonial. Por conseguinte, Buta reprovava-o diretamente por abastecer o governo com trabalhadores para São Tomé e Príncipe, depois de ter dito primeiro para os chefes se manterem firmes em relação às novas demandas portuguesas por mão de obra. Porém, a mais enérgica condenação do comportamento de Kiditu referiu-se à sua cumplicidade com a violência dos agentes locais do governo, que atuavam em nome do rei.

Conclusão

A revolta do Kongo nos traz de volta à eleição de Manuel Martins Kiditu em 1911. Seu reinado foi condicionado por um conjunto de regras que combinou um olhar tradicional em relação às obrigações de proteção do rei para com seus súditos com um reconhecimento moderno de que ele precisava ser um negociador efetivo com o mandatário colonial do Kongo (Vos, 2015, pp. 101-106). Pode-se argumentar que o governo de Kiditu foi problemático desde o início, visto que se esperava que ele viesse a proteger a comunidade do Kongo de forças políticas muito acima do seu controle. Esse argumento, porém, ignora o significado da participação dos africanos no sistema colonial. Em primeiro lugar, o caso do Kongo dá substância à afirmação de Achille Mbembe de que as estruturas emergentes do Estado colonial permitiram que alguns africanos poderosos atuassem sob seus “impulsos obscuros” de modo a humilhar e explorar os destituídos de poder (2001, p. 14). O nível de envolvimento de Kiditu na violência patrocinada pelo Estado pode ser um assunto controverso, mas de uma perspectiva contemporânea do Kongo essa questão é irrelevante. Kiditu foi colocado no trono para amortecer o impacto da tributação colonial, promovendo o bem-estar econômico e sustando a corrupção que havia manchado o governo de seus antecessores, mas ele falhou em todos os sentidos. No seu reinado, São Salvador entrou em um período de declínio econômico e a dominação colonial tornou-se mais abusiva, na medida em que a cobrança de impostos foi relacionada ao recrutamento de trabalhadores migrantes. Ademais, Kiditu demonstrou ser tão desonesto quanto os reis que o antecederam.

41A instalação de Kiditu no trono em 1911 e o seu derrube em 1913 revelaram ainda um outro lado da tradição monárquica do Kongo. A despeito de sua cooptação pelo império colonial português, o reino continuou a existir como comunidade política, baseada em noções específicas de respeitabilidade e centrada no rei como o mais elevado poder espiritual na terra. O rei era uma fonte e um símbolo de harmonia social, embora também se esperasse que ele viesse a usar suas habilidades seculares, seu conhecimento do modo de ser do homem branco, para negociar de modo eficaz com seus parceiros europeus. Em 1913, uma crise envolvendo a organização dessa comunidade culminou em revolta. Essa crise foi moral em mais de um sentido. O abuso do poder político por parte do rei e de seus associados representou não apenas uma transgressão das regras de legitimidade política no reino, mas também uma violação dos códigos de conduta social adequada no Kongo. De fato, do ponto de vista local, o social e o político estavam conectados, na medida em que uma turbulência política era normalmente explicada como resultante da malevolência de determinados indivíduos na comunidade. Restaurar a ordem no reino era algo mais do que substituir o rei e renegociar o domínio colonial com Portugal; significava, fundamentalmente, restabelecer a paz na comunidade.

Finalmente, deve ser enfatizado que o levante do Kongo em 1913 não ocorreu simplesmente porque o Estado colonial tornou-se ainda mais invasivo e opressor, como se a resistência fosse o resultado inevitável do aumento da exploração. O impacto político da dominação colonial na sociedade do Kongo foi moldado pela economia moral e pelas contingências locais. Uma microanálise das origens da revolta revela a importância das relações interpessoais na política local no início do período colonial. Rebeldes e acusados relacionavam-se muitas vezes através do parentesco, dos laços da igreja e de outras redes sociais. Por conseguinte, é difícil que emoções humanas que afetam a vida da comunidade não tenham estimulado os rebeldes quase tanto quanto os princípios políticos. O relato da crise feito por Álvaro Buta revela, sobretudo, que as experiências de traição e engano não só tenham definido as memórias pós-coloniais da dominação europeia na África, como Johannes Fabian (1996) sugeriu, mas tenham sido também emoções vividas na época e fortes motivadores da ação política. Será que a revolta poderia ter sido evitada, como sugeriu uma testemunha, se Kiditu tivesse simplesmente pedido perdão a Buta por suas ações?

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