Do meu Bornal de recordações – O serviço judicial

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).

 

Tenho-me detido, até agora, na recordação dos meus contactos com as populações rurais da Damba, no seu próprio meio, e que me foram conduzindo a um sofrível conhecimento da sua forma de vida, da sua organização social e também da sua personalidade básica19 ou personalidade modal, que não era idêntica em todos os grupos, apresentando algumas variações, nem sempre muito nítidas, e que atribuo à influência do meio ambiente, a esta ou àquela divisão étnica (sossos e bacongos) e também a condicionalismos de ordem religiosa, sobretudo entre os cristianizados por acção de missionários católicos ou protestantes.

Mas também através da actividade burocrática, sem sair do meu gabinete, tanto no período de três anos em que servi na Damba como secretário de circunscrição, como nos restantes cinco anos em que exerci as funções de administrador, fui também aprofundando o indispensável conhecimento pormenorizado dos padrões culturais da população africana, mormente através da resolução dos mambos20, desde os mais triviais até aos mais complexos, e da instauração de processos-crime que enquanto secretário instruía, no exercício da função de escrivão do Tribunal Privativo dos Indígenas e que depois de ser administrador julgava, como presidente do mesmo Tribunal. Em ambos os casos era assessorado por autoridades tradicionais.

Quando se tratava de questões relacionadas com o direito de propriedade, desavenças familiares, muitas vezes provenientes de adultério, e de feitiçaria maléfica, ouvia sempre os assessores para averiguar como cada um dos casos seria resolvido de acordo com os costumes jurídicos do grupo. Mas deve ser chamada a atenção para o facto de apenas serem apresentadas à minha apreciação as questões já julgadas pela autoridade tradicional e cuja decisão não tinha acolhido a aceitação plena de alguma das partes. A desagregação que já se ia notando na sociedade era motivada, em grande parte, pela investidura em funções de chefia de indivíduos que, pela ascendência, não tinham direito à ocupação de tais cargos. As sentenças proferidas em casos julgados pelos verdadeiros e incontestados chefes tradicionais, quer chefes territoriais ( mfumu a txi ) quer por chefes de aldeia ( mfumu a bata ) e cuja autoridade advinha da sua posição como os mais velhos do clã ou da linhagem, eram sempre acatadas pelas partes.

Casos julgados no Tribunal Privativo dos Indígenas eram quase só os que configuravam crimes de homicídio, de ofensas corporais graves ou furtos. As penas aplicáveis eram as do Código Penal português, havendo recurso obrigatório para o Tribunal da Relação de Luanda sempre que ao crime correspondesse pena maior.

O insólito do desfecho, leva-me a recordar aqui um caso de suspeita de morte, por envenenamento de uma mulher. O acontecimento não foi levado ao conhecimento da Administração por qualquer familiar ou chefe tradicional, mas por denúncia de um antigo funcionário dos Serviços de Fazenda que residia na Damba. Tratava-se do meu compadre Mateus Paquete Neto, da família Vandunem, uma das mais prestigiadas de Angola. A sua intervenção deveu-se à circunstância de estar casado com uma parente da vítima. Estava eu a desempenhar as funções de administrador e, por inerência, as de presidente do Tribunal Privativo dos Indígenas, por estar ausente em Luanda o titular do cargo.

A morte da mulher foi-me apresentada como tendo sido provocada pela submissão da vítima a um ordálio, uma prova jurídica também designada por juizo de Deus, utilizada na Europa até ao século XVIII e que ainda é comum em muitos povos do Terceiro Mundo. Trata-se de um processo judicial em que a inocência ou culpabilidade dos suspeitos são determinadas através de diversas provas. Em Angola o ordálio mais corrente era a prova do veneno e só utilizado em casos que afectavam directamente um clã ou uma sua linhagem, como doenças, abortos, más colheitas e outros, e cujas causas eram atribuídas a forcas mágicas postas em acção por algum ou alguns membros do grupo. Consistia na ingestão, pelos suspeitos, de uma poção que tinha como principal ingrediente o pó obtido pela trituração e pulverização da casca de uma árvore altamente venenosa, conhecida no norte de Angola pela designação de nkasa e cujo nome científico é Eryfhrophleum guineense Don, Jeg.. Os que vomitavam a mistela eram considerados inocentes e culpados os que morriam. Este ordálio funcionava, assim, simultaneamente, como meio de prova e de punição inapelável.

No caso em apreço, a autoridade tradicional da área de residência da vítima afirmava, com veemência, que a morte tinha sido inteiramente natural e era apenas o denunciante a alvitrar a existência do ordálio por envenenamento. Havia que implementar diligências conducentes à averiguação da verdade. Feita a autópsia pelo delegado de saúde, este apenas encontrou no estômago da vítima restos da última ingestão e que apresentavam uma suspeita coloração verde .  Concluiu o seu relatório apontando a necessidade de ser feito um exame toxicológico das vísceras que entretanto colhera. A primeira coisa a fazer era embalá-las convenientemente para, sem dano, poderem ser remetidas para Luanda. Nos livros de que dispunha lá encontrei as necessárias indicações, tendo sido metidas em frasco de vidro com formol e com tampa esmerilada e que depois encerrei em embalagem de lata contendo serradura. Para maior segurança, mandei soldá-la.  A lata foi metida em caixa expressamente feita na oficina de carpintaria da Administração. Mas a que entidade devia requisitar o exame? A única indicação que o delegado de saúde e eu encontrámos, foi a que apontava para o laboratório do Instituto de Medicina Legal de Lisboa ou o da Policia Judiciária da mesma cidade, uma vez que em Angola ainda não existia este organismo policial. Mas como enviar o material a analisar, se o posto dos Correios da Damba não tinha o serviço de expedição de encomendas e a estação de Maquela do Zombo não a podia remeter para o exterior da colónia? Valendo-me do preceito do Regulamento dos Tribunais Privativos dos Indígenas que dava a faculdade aos seus presidentes de, em caso de dúvidas ou de dificuldades localmente insanáveis, poderem solicitar o apoio do Tribunal da Relação, para ali remeti um minucioso ofício em que pedia o encaminhamento das vísceras para o laboratório competente.

Do transporte se encarregou um motorista, residente na Damba e que assegurava o carreto de mercadorias de e para Luanda. Não lhe agradou muito a incumbência mas, embora contrariado, lá levou o caixote. À chegada a Luanda logo se encaminhou para o Tribunal da Relação onde não quiseram receber a encomenda e o encaminharam para o Laboratório de Análises do Hospital Central D. Maria II. Ali não faziam análises toxicológicas e aconselharam o portador a levar o caixote para o Laboratório dos Serviços de Agricultura,  onde não teve melhor acolhimento.  O respectivo responsável negou-se a tomar conta do caso, alegando, igualmente, a inexistência de meios adequados.

Sem saber o que fazer da tétrica encomenda, foi procurar o administrador Bicudo Costa ao hotel onde sabia que se encontrava hospedado e lá lhe deu conta das suas malfadadas andanças.

Perante o impasse em que se havia caído, logo convidou o motorista Machado a colocar o caixote na carrinha da Administração, acrescentando que ele próprio trataria pessoalmente do caso.

Pouco tempo depois arrancou em direcção à ilha de Luanda e, em local apropriado, lá foi o caixote e o seu conteúdo parar às águas do Atlântico.

Quando o administrador regressou a Damba deu-me conta da decisão que fora obrigado a tomar perante o impasse intransponível, e o processo ficou a aguardar a produção de melhor prova.

Anos mais tarde, quando administrei o concelho de Malanje, fui confrontado com mais casos de ordálio, cujo julgamento consegui ultimar e me proporcionaram o conhecimento pormenorizado das circunstâncias que levavam à sua implementação e das práticas que o enformavam.

Os casos que maiores dificuldades me traziam eram os ligados à alegada intervenção de feitiços, mas deter-me-ei apenas na descrição de alguns em que era apontada a transformação dos culpados em animais.

O mais importante deles, dado o número de vítimas envolvido, ocorreu no sobado Macoxambua, do posto de 31 de Janeiro. Com poucos dias de intervalo, o soba respectivo foi noticiar ao chefe do posto o aparecimento de restos de cadáveres de mulheres que nas suas lavras tinham sido assaltadas por algum inimigo que, possuidor dos poderes dos ndoki21operara transformado em leopardo. Toda a população da região entrou em pânico. Eu sabia da existência, em várias zonas de África, de seitas de homens-leopardos que se cobriam com pele daqueles felinos e usavam um  utensílio com aceradas pontas, que simulava, ao ser utilizado, a acção de garras. Como nunca lera ou ouvira qualquer referência à acção de qualquer seita desta natureza em todo o Norte de Angola, inclinei-me para a presença na região de algum leopardo idoso e já sem o vigor que lhe permitisse a perseguição e abate de antílopes ou outros animais, que constituem as suas vítimas preferidas, e se transformara em comedor de seres humanos. Determinei, por isso, ao chefe do posto, que organizasse batidas na região, na tentativa de se encontrar e abater o causador das mortes.

Com centenas de homens a bater capinzais e matas e algumas dezenas de caçadores e alguns cipaios postados em portas bem localizadas, várias batidas se efectuaram e na última foi descoberto um leopardo que, fugindo aos batedores, se encaminhou para a zona em que estavam colocados os caçadores e ali foi abatido. Verificou-se que se tratava de um macho decrépito que apenas se arriscava a atacar mulheres indefesas para saciar a fome. Ao principio ainda alegaram que tinha sido abatido o feiticeiro, que não tivera tempo de se livrar do disfarce, mas depois lá se convenceram de que era mesmo um leopardo, pois não se dera pelo falta de nenhum homem em toda a área do Macoxambua e dos sobados vizinhos.

De uma outra vez, foi o meu próprio lavadeiro, o Finda, que me apresentou queixa contra alguém, não identificado que, transformado em leopardo, tinha assaltado o seu pequeno curral e levado um cabrito.

Procurei fazer-lhe ver que teria sido mesmo um verdadeiro leopardo o assaltante, e que já não era nenhum matumbo22 para acreditar naqueles feitiços. Imediatamente retorquiu que não podia haver qualquer duvida; via-se no chão, em frente do curral, o rasto de um leopardo que, metros à frente, se transformava em pegadas de homem. Quis fazer-lhe ver que era pura coincidência a sobreposição das pegadas humanas às do leopardo, mas nada o demoveu. Como não indicou nenhum suspeito, o caso ficou encerrado.

De outra vez estava eu a recensear uma povoação do Huando de Cima, do soba Vambano, à beira da picada para o Mucaba, quando veio ter comigo um miúdo que, através do cipaio a servir de intérprete, se queixou de que um parente seu, morador numa povoação do vizinho posto de 31 de Janeiro, às escondidas tinha ido à cubata em que estava a dormir, e lhe tinha ordenado que matasse a sua própria mãe e lhe levasse um pedaço do cadáver para com ele fazer um feitiço. Perguntei-lhe se alguém na aldeia tinha visto o tal parente e de pronto me asseverou: – Não, ninguém o viu porque se tinha transformado em passarinho. Lá o aconselhei a esquecer o caso que, como ocorrera de noite, não teria passado de um sonho, mas o meu argumento não o convenceu e, por certo, ficou a fazer mau juízo da minha competência.

Esta crença na capacidade de seres humanos se transformarem em animais, está  muito difundida em toda a África e em outras partes do mundo, incluindo a Europa. Quanto a este continente bastará referir a crença na existência de lobisomens.

Existiam no Congo vários feitiços que propiciavam esta metamorfose e um dos mais curiosos era o que se usava nas práticas mágicas que entravam nos ritos de iniciação dos candidatos a ndoki, individuos malfazejos a que atrás fizemos referência. Nesses ritos, entre outras provas, o iniciando tinha de imolar um parente próximo, o que se conseguia através da transformação dele próprio e do seu mestre em formigas ou aranhas que, de noite partiam para a casa da vítima escolhida pelo candidato a ndoki. Penetravam pelo nariz ou pela boca e sugavam-lhe o sangue do coração. Após terem assim « comido » a vítima, regressavam à condição de homens normais.

No decurso da minha passagem pela Damba e no âmbito das minhas funções de carácter judicial, vários episódios foram ocorrendo e que mereceriam ser agora relembrados, mas deles respigo apenas um por me parecer assaz representativo e também por estar ligado a uma campanha por mim empreendida e tendente a melhorar as condições de higiene das aldeias.

Na Damba, como nos outros concelhos que administrei, procurava que a população empreendesse, a partir de sugestões ou conselhos meus, tarefas que conduzissem à melhoria das suas condições de vida. Não impunha procedimentos mas levava os chefes e os velhos a pensarem no que eu propunha e a decidirem por si. Falo nos velhos porque eram eles, na verdade, quem tudo decidia, em regime de autêntica gerontocracia. Já fiz referência a uma destas experiências ao tratar do processo de mudança na estrutura dos mercados tradicionais.

Na Damba, como em tantos outros concelhos e circunscrições do distrito do Congo, as aldeias estavam implantadas à beira das estradas, em lugares salubres e não distantes de mananciais em que fosse fácil o aprovisionamento da água indispensável para satisfação das necessidades domésticas.

Cada aldeia comportava habitantes unidos por laços familiares de consanguinidade ou de afinidade, e era constituída por núcleos de habitações destinados a albergar as famílias que as integravam. Cada um desses núcleos, designado por lumbu no dialecto local, era composto pela casa destinada ao homem e pelas das suas diferentes mulheres e seus filhos pequenos. Duas outras abrigavam os sobrinhos e as sobrinhas da chefe da família, filhos das suas irmãs uterinas. Nesta região, como em muitas outras, vigorava o sistema do avunculado, em que as crianças de ambos os sexos quando atingiam a idade de já não carecerem dos cuidados permanentes das mães, passam a viver junto do tio materno mais velho, que funcionava como pai social e de quem viriam a herdar bens e prerrogativas sociais.

Uma das campanhas que havia lançado, contemplava a construção de chiqueiros, pocilgas e galinheiros no extremo da aldeia mais afastado da estrada, no intuito, já atrás referido, de serem melhoradas as condições higiénicas das povoações. Recomendava, também, que conservassem os porcos nas pocilgas e ali os alimentassem, pois eram estes os animais que mais poluíam o espaço em que as casas estavam implantadas.

No decurso do trabalho de rotina de um determinado dia em que tinha ficado na sede do concelho, empenhado em lides burocráticas e no atendimento dos munícipes, apareceu um habitante de uma aldeia situada à beira da estrada que se dirigia para o litoral e me disse querer apresentar queixa contra um branco, proprietário e condutor de uma camioneta que vivia na vila e assegurava o transporte de mercadorias de e para Luanda e outras localidades. Com ele estavam as indispensáveis testemunhas e o chefe da povoação. O queixoso, com verbosidade e mímica exuberantes, lá me foi pondo ao corrente da questão: « Mbuta muntu23  tenho mambu24 grande a apresentar-te. Ontem, à tarde, a camioneta do Machado, quando ia a passar na estrada em frente do nosso povo matou o meu porco. Um porco grande, já nesta idade.» E com gesto habitual da mão direita em cutelo, indicava a altura que o porco teria na região lombar. A referida posição da mão servia para indicar a altura dos animais, enquanto que em posição horizontal assinalava a altura das pessoas.

O chefe da aldeia e as testemunhas, com acenos de cabeça, confirmavam a veracidade da descrição. Eu conhecia a aldeia e sabia que ali a estrada era muito estreita e que a erosão, provocada pelas chuvas torrenciais de muitos anos, havia aprofundado as valetas, que constituíam assim sérias armadilhas para condutores que tivessem de fazer manobras de emergência.

Trocadas impressões com os velhos presentes e com o chefe da aldeia, e obtidos alguns esclarecimentos do queixoso, procurei fazer ver a este a falta de culpabilidade do motorista e aproveitei o ensejo para insistir nas recomendações já feitas sobre a construção de abrigos permanentes para os animais domésticos, dizendo:

« Foi muito aborrecido o que aconteceu, mas o Machado nada pôde fazer, porque o porco apareceu de repente na frente da camioneta e um desvio rápido, para qualquer dos lados, podia provocar um desastre muito grande. A culpa, afinal, é só vossa, porque não escutam os conselhos que vos dou. Não tenho dito, tantas vezes, que a aldeia é para as pessoas viverem e que devem construir abrigos para os animais para lá das casas, nas traseiras  do povo ? Se tivessem feito isso já o porco não tinha ido para a estrada e não tinha sido apanhado pela camioneta ”

Os assistentes mostravam sinais de aquiescência, mas o principal interessado, o queixoso, de pronto retorquiu:

« O senhor administrador já explicou isso muito bem e o mfumu a bata25 até já deu ordem para se fazerem as casas para os bichos e não os deixarmos andar no povo a fazer porcaria Essa ordem é mesmo muito boa, mas o porco não é pessoa e não entende ordens, anda por todo o lado e vai mesmo para a estrada.”

 

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