Os Bakongo em Luanda: – “Um dia no Mercado do Imbondeiro”

Imagem da rededeangola.com

Por Luena Nascimento Nunes Pereira(*)

O mercado do Imbondeiro (ou Embondeiro66) fica num grande largo próximo à estrada do Sanatório, também bem perto da já citada estrada nova que corta o Palanca. Entrando de carro com alguma dificuldade no imenso areal à volta, estacionamos próximos às barracas de bebida e de venda de CDs e vídeos cassetes de musica zairense. A música zairense/congolesa que toca nos mercados pode ser tanto aquela agitada e dançante que ouvimos nas festas e candongueiros, como a música religiosa, não menos agitada nem menos dançante das igrejas. Entre os cassetes também estão disponíveis alguns programas religiosos gravados da televisão congolesa, chamados “episódios”. São pequenas novelas que encenam situações de feitiçaria, exorcismo, milagres e conversão. Também à volta do estacionamento ficam os rapazes que trocam dólares por kwanzas, moeda angolana, e os indefectíveis lavadores e guardadores de carros.

Adentrando o mercado, vemos que este, como os outros mercados de médio porte, é subdividido por seções. Dando a volta do lado de fora do mercado, encontramos a venda de roupas, mas poucos panos africanos. Ao fundo ficam as barracas de peixes, frangos, carnes, etc. De um modo geral, este mercado, que atende a demanda do bairro, vende basicamente alimentícios: verduras, legumes, fuba, farinha, óleos, peixe seco, peixe fresco, carnes, miúdos, jinguba (amendoim), jindungo (pimenta). Há também os alimentos não perecíveis, enlatados, especialmente leite em pó, temperos, além de carvão e produtos de limpeza doméstica e higiene pessoal. Não se encontra, por exemplo, móveis, eletrodomésticos, serviços de alfaiataria, grande quantidade de panos africanos e maior variedade de produtos, como no grande mercado do Roque Santeiro. O forte das vendas são os produtos para a preparação das refeições do dia-a-dia, embora no fim de semana haja uma movimentação maior nas barracas que servem refeições prontas e bebidas geladas.

As cerca de cem barracas são feitas de uma estrutura precária de madeira com cobertura de zinco. Muitos panos também são utilizados para a cobertura e, junto com os panos vestidos pelas vendedoras, dão ao mercado um colorido especial.

As manhãs em geral são mais morosas (boas para conversar com as senhoras) melhorando um pouco o movimento no fim da manhã. A hora mais movimentada é ao fim da tarde, quando é grande a busca de ingredientes para a preparação do jantar, que é considerada a refeição mais importante do dia(67).
Uma visita ao mercado nos permite, evidentemente, conhecer melhor a dieta de uma comunidade, complementando o observado nas residências. A base da alimentação da comunidade bakongo em Luanda continua a ser o funge, um pirão espesso feito da fina farinha de mandioca, a fuba. A fuba prepara-se com a mandioca amolecida na água e seca no sol. Depois ela é posta a moer. O funge é preparado com a fuba cozida na água fervente, mexida vigorosamente com uma colher de pau específica para desfazer os caroços do cozimento(68). Come-se com qualquer comida com bastante molho, seja peixe, frango, carne, miúdos ou mesmo uma verdura, como a couve ou a kizaca (folha de mandioca) picadas e cozidas no óleo de palma. O óleo de palma, conhecido entre nós como azeite de dendê, é também a gordura básica da cozinha kongo, apesar do uso crescente do óleo de soja, mais usado para as comidas introduzidas depois, como macarrão, arroz, cozidos e frituras em geral.

É rotineiro o uso de folhas como a couve, a kizaca e a fûmbua, sempre cozidas. Outro produto muito apreciado, embora caro e servido em dias especiais, é a semente de abóbora, mbika com a qual se faz um bolinho cozido, que acompanha outros pratos com molho. Pouco se come vegetais crus na forma de salada. Paulatinamente, vai se acrescentando na dieta dos bakongo de Luanda, as comidas ditas ocidentais, como massas, batatas fritas, cozidos, enlatados, embora com muito menos freqüência do que a população luandense em geral(69).

Uma característica destas praças de bairro é a venda a retalho, em unidades bem pequenas. As mulheres compram os ingredientes para fazerem o jantar a cada dia, pois não têm dinheiro suficiente para compras semanais e também não têm formas seguras de armazenamento, pois ainda que possuam geladeira, não há garantia de que haverá energia para mantê-las ligadas. Assim, é comum a venda de óleo em pequenos saquinhos amarrados na ponta, um ou dois tabletes de caldo de galinha, montinhos com quatro ou cinco dentes de alho e metade de uma pequena latinha de extrato de tomate fechada com um pedaço de plástico.

O mercado é, sobretudo, um lugar de mulheres, tanto as que vendem, como as que compram, especialmente no caso de um mercado mais voltado para as necessidades domésticas. Os jovens se restringem à venda de equipamentos eletrônicos, fitas de música e vídeo, à guarda e conserto de carros e mais recentemente à troca de dinheiro (que antes era uma atividade quase que exclusivamente feminina). As crianças e adolescentes de ambos os sexos ajudam as mães. A presença de homens geralmente é minoritária na clientela, mas presente entre os indesejáveis agentes da administração, que cobram pela licença das vendedoras (sem oferecer qualquer serviço como limpeza e manutenção do largo), além de (poucos) policiais.

Há mercados de vários tipos e tamanhos em Luanda. Temos os grandes mercados, onde o Roque Santeiro, considerado um dos maiores mercados ao ar livre de África, aparece como o mais emblemático. O “Roque”(70) está localizado contíguo ao porto de Luanda, lugar estratégico, pois originalmente era abastecido pelo contrabando e roubos da carga chegada ao porto. Atualmente o Roque se alimenta também de parte das mercadorias desviadas do porto e de armazéns, fugindo do pagamento de impostos, lembrando que Angola, cuja economia é movida pela produção de petróleo, ainda importa a maior parte de seus bens de consumo, inclusive alimentos(71).

O Roque Santeiro, junto com grandes armazéns e entrepostos comerciais abastecem os mercados menores da cidade, embora também venda mercadorias a retalho. O Mercado dos Kwanzas, no bairro da Mabor, outro mercado importante, porém bem menor que o Roque, também é suprido pela carga chegada aos portos e dos entrepostos e alimenta os pequenos mercados.

Dentro dos bairros encontramos os mercados ou praças locais, que atendem basicamente a população ali residente, como o mercado do Imbondeiro. Um mercado deste tipo é dividido por várias seções: carnes, horti-fruti, não perecíveis, produtos de higiene, de limpeza doméstica, roupas, farmacêuticos, bebidas, equipamentos e produtos eletrônicos além de material de som e vídeo.

Há espaço também para as pequenas praças, bem menores que os mercados de bairro, que atendem as vizinhanças das ruas em torno e contam com produtos alimentícios e de higiene e limpeza doméstica básica.

As mulheres contam ainda com produtos vendidos na porta da casa de algumas vizinhas, como a fuba e óleo de palma e produtos de consumo imediato como o micate (bolinho frito), biscoitos, pedaços de fruta, grelhados, kikwanga(72), etc.

As vendedoras recorrem aos mercados maiores para a compra dos produtos que vendem nos mercados menores. Sendo muito baixa a capacidade de investimento, pouca oportunidade elas têm de obter descontos maiores para a compra. O prazo e o crédito praticamente inexistem. Assim, elas não conseguem formar um estoque que lhes garanta uma maior produtividade e baixos também se tornam seus lucros. Provavelmente quanto menor é o mercado ou praça, menor é o lucro destas mulheres, apesar delas estarem mais próximas de casa e com mais facilidade para dividir seus afazeres do lar com a atividade de comércio.

Há algumas associações informais de comerciantes que em grupo cotizam pequenas somas para que uma participante, a cada vez, consiga capital para formar um pequeno negócio. Os relatos de algumas mulheres, alguns relatórios de organizações (DW, s/d B) e poucos estudos (entre os quais Winden, 1996) indicam que o baixo investimento e a baixa organização das mulheres (do ponto de vista de ausência de organizações formais e financiamento regular) é a tônica, mas o pequeno lucro obtido com a venda cotidiana de produtos a retalho nas praças garante o sustento de cada dia.

Para montar um negócio, muitas mulheres começam com pequenas vendas dentro ou na porta de casa. A ajuda de outras mulheres, parentes ou grupo de igreja também possibilita a formação de um pequeno capital para a compra de algum produto para a revenda nos mercados. Há muitas mulheres que negociam permanentemente nos mercados. Porém, muitas outras vendem como forma de conseguir algum dinheiro num momento de “aperto” familiar ou ajudando outras mulheres ou mesmo as substituindo em caso de viagem ou doença (caso de parentes próximas, irmãs, sobrinhas, filhas). A esposa do meu guia muitas vezes fazia sorvetes da polpa da múcua (a fruta do imbondeiro) em saquinhos compridos (tipo sacolé), para a revenda. Vendia na porta de casa, pois o sorvete dependia de conservação no congelador, não sendo possível vendê-lo no mercado. Os próprios filhos e crianças vizinhas espalhavam a notícia da disponibilidade do sorvete, vendido a dois kwanzas (cerca de 8 centavos de dólar). Por outro lado, cabe lembrar que nem sempre havia energia para fazer funcionar o congelador, e muitas vezes se perdia o sorvete preparado quando faltava luz de uma hora para outra.
Se hoje o comércio informal se generalizou por toda a cidade de Luanda e tem uma estruturação mais complexa controlada por grandes empresários e agentes econômicos poderosos, com braços dentro do aparelho de Estado, isso nem sempre foi assim. Foram os regressados do Congo/Zaire, sobretudo aqueles originários da província do Uíge, área de Maquela do Zombo, os responsáveis pela articulação do comércio, naquela altura ilegal, tendo em vista a economia de tipo socialista que se estava implantando nos primeiros anos do regime do MPLA. A experiência dos anos de exílio em Kinshasa, capital do Congo, mas também a existência de uma “cultura comerciante” antiga entre os Bakongo (principalmente entre os Bazombo) explica este dinamismo que permitiu a articulação de redes de comércio espalhada por diversos países. O empreendedorismo dos Bakongo e a vocação para o comércio são qualidades valorizadas e estimuladas, que permitiram a ascensão social de parte significativa destes imigrantes retornados e têm garantido a sobrevivência com tenacidade das famílias não tão bem sucedidas.

 

(68) – Na área centro e sul de Angola faz-se o funge partir da farinha de milho branco (fuba de milho). Na parte norte, incluindo a região de Luanda usa-se a farinha de mandioca (também chamada de bombô). O funge da área Congo parece ser mais espesso que o da área de Luanda. Atualmente, com a crise econômica, costuma-se misturar a fuba de milho, mais barata e mais rentável, ao funge de bombô.

(69) – Estas comidas, mais ligeiras e rápidas de fazer, são consumidas geralmente no almoço.

(70) – O mercado Roque Santeiro foi criado na altura em que passava em Angola a famosa novela brasileira. Era altura do racionamento de produtos e do controle da sua distribuição pelo governo. O mercado, feito à margem do controle do governo, era constantemente reprimido, ressurgindo “milagrosamente” no dia seguinte (Gonçalves, 1994: 27). Daí o nome do santo ter “pegado”.

(71) – A guerra é um dos fatores que explicam a baixíssima produtividade agrícola de Angola. O desmantelamento do parque industrial, atualmente em recomposição, tem causas mais complexas, entre as quais a saída da maioria dos quadros capacitados do país, com a independência, e a má administração dos primeiros anos de governo independente (Morice, 1985).

(72) – Kikwanga é um tipo de bolo feito de fuba embrulhada numa folha e cozida no vapor. É uma comida feita originalmente para ser levada em viagens, pois é prática e demora a estragar. Hoje, é consumida em lanches rápidos, acompanhadas de grelhados, ou seja, produtos mais secos que não sujam louça. É perfeita para ocasiões de improviso como durante o trabalho, no mercado, na rua, ou na permanência prolongada em óbitos, por exemplo. É o fast-food bakongo. A kikwanga originalmente é feita de massa de mandioca fermentada.

(*)Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

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