Política e Religião nos Bakongo de Angola

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Por Luena Nascimento Nunes Pereira(*)

Esta perspectiva nos insere assim no já clássico tema das relações entre política e religião, extensamente abordado por autores como Balandier (1965, 1977, 1980, 1982), Geertz (1997), Augé (1978), tanto no que toca às relações entre política e sagrado, como nos estudos sobre os movimentos messiânicos.
Parte dos estudos sobre as relações entre política e religião dá conta do fundamento sagrado do poder que, como demonstram as etnografias em sociedades africanas tradicionais, por exemplo, confere o suporte ideológico que legitima o chefe, visto como mediador ou homólogo dos deuses ou dos antepassados, bem como fornece um vocabulário ordenador da sociedade e garantidor da ordem estabelecida e da hierarquia social (Balandier, 1969).

Em outras abordagens, certos autores analisam as relações entre religião e poder, através do papel e da construção do soberano (rei, chefe) visto ao mesmo tempo como divino e como humano, percebendo a dualidade entre o cargo ocupado e a pessoa ocupante deste cargo. O cargo visto como sagrado ou eterno sintetiza e idealiza a própria sociedade representada. Já a pessoa do soberano, ambiguamente vista como perecível e humana é assim destacada do cargo que temporariamente ocupa, mas por vezes se apropria desta aura e confunde-se com ele adquirindo uma dimensão sagrada e intocável (Geertz, 1997; Kantorowics, 1998). Assume importância também a corte e os símbolos de poder que rodeiam o soberano numa dimensão performativa, tomando a linguagem religiosa como um mecanismo de ordenação social e garantidora da separação fundamental entre governantes e governados.

Num aspecto menos centrado na figura do soberano ou chefe, algumas análises não se esquecem do aspecto dinâmico da religião como linguagem para expressar a competição política, ora buscando a legitimação da ordem estabelecida, ora buscando subverte-la e recriar uma nova ordem social através de um novo pacto entre o mundo dos vivos e o mundo habitado pelos antepassados, espíritos e deuses. Os estudos que envolvem religião e política passaram a abordar menos o aspecto ideológico de coerção da religião e mais seu aspecto de linguagem ou como uma instância de reordenação social, que dá sentido às transformações e permite compreender, organizar e expressar conflitos, competições e crises.

Os inúmeros estudos e análises sobre movimentos messiânicos48 foram muito eloqüentes na elucidação da religião como fenômeno político, como resposta global à situação global de crise colocada pela dominação colonial ou por outros processos de conflito, disputa política e ruptura social (ver nesta abordagem Comaroff, 1985 e Geschiere, 1997).

O olhar sobre os Bakongo na Angola contemporânea, dentro de uma perspectiva que assume a crise49 como elemento determinante em seu processo de inserção, sugere que a religião prossegue como uma possibilidade de resposta a esta crise, na medida em que consegue convergir necessidades de reorganização interna do grupo frente às transformações impostas com demandas identitárias de reconhecimento social num novo contexto político.
Os estudos sobre os movimentos messiânicos buscaram analisar a dinâmica entre a cosmologia africana e os elementos incorporados do cristianismo. Estas sínteses, analisadas por vezes através da categoria genérica de “sincréticas”, indicaram um processo de incorporação de estruturas externas ao sistema de representações local, que responde às diversas necessidades do grupo confrontado com um sistema segregador ou ameaçador a seu modo de vida, tanto material como simbolicamente. O processo fundamental empreendido pelos movimentos messiânicos na África Central não eram de uma escapatória “simbólica” à opressão, mas sim a tentativa de retomada da iniciativa política e de empreender uma resposta coletiva à ameaça de marginalização e submissão. Esta resposta incluiu também a necessidade de uma recomposição da sociedade em questão. Isto implicou, no universo bakongo, na retomada da dimensão pública ou coletiva (vamos discutir estes termos adiante) original da religião tradicional, que só encontra seu sentido profundo quando se volta para a ação coletiva (para o bem comum) e a qual se adere de forma coletiva, diferentemente da expectativa missionária cristã, que supõe a conversão e a adesão religiosa de forma individual (MacGaffey, 1986: passim; Thornton, 1983: 56-68).
Na sociedade angolana atual, o desafio não é mais o enfrentamento da situação colonial, mas sim de transformações dadas pela urbanização acelerada, pela conjuntura crítica nos aspectos econômico e social e uma integração incipiente no sistema nacional.

Há quem considere que as igrejas assumiriam o lugar deixado pelas estruturas tradicionais em decomposição. Nada mais distante do que acontece entre os Bakongo de Angola, firmemente ancorados em suas instituições tradicionais, ainda que haja a percepção de que as relações de parentesco tenham sofrido um certo esvaziamento no meio urbano. As instituições baseadas no parentesco, cujo suposto esvaziamento não esconde uma intensa vitalidade, devem ser vistas associadas ao dinamismo das igrejas redesenhando, reforçando e disputando formas de sociabilidade, solidariedade e articulação política.
Como já foi dito, a multiplicação de igrejas, sobretudo o elevado número de igrejas pentecostais é um fenômeno percebido em quase todo o mundo cristão. Entretanto, em Angola, os Bakongo são os grandes protagonistas da proliferação de igrejas. Quais condições – históricas, sociais, culturais – explicam este protagonismo? Que elementos da estrutura social Kongo favorecem ou impelem este dinamismo?

Historicamente, os Bakongo foram elemento ativo dos movimentos religiosos ocorridos na África Central. Alguns estudos indicam certos aspectos da cultura kongo que encontraram espaço na estrutura dos movimentos messiânicos, tal como seu sistema social hierarquizado (propenso à organização social das comunidades messiânicas) e a valorização dos antigos chefes político-religiosos, atualizados na figura do messias ou do profeta. A estrutura hierárquica das sociedades kongo tampouco é estranha à estrutura da maior parte das igrejas cristãs.

O sistema político fragmentado peculiar ao grupo bakongo – contrabalançado por uma identidade cultural coesa – parece homólogo a um campo religioso também fragmentado, mas unificado no cristianismo, seja ele de caráter mais convencional ou heterodoxo.

A fragmentação é também uma característica fundamental do protestantismo, que dividiu com a igreja católica a adesão entre os Bakongo. A sua profissão de fé é baseada no conhecimento e na livre interpretação da Bíblia, ao contrário da igreja católica onde a interpretação correta da palavra sagrada é prerrogativa das autoridades eclesiásticas. No sistema tradicional kongo, o conhecimento e a interpretação da sabedoria tradicional cabem aos mais velhos, chefes e advogados tradicionais, hierarquicamente superiores. Contudo, esta interpretação não é fechada, havendo um uso baseado na “jurisprudência” da tradição50 (os casos litigiosos são resolvidos de acordo com situações similares, inscritas na memória coletiva). Assim, os provérbios e máximas são utilizados de acordo com o contexto, aproveitando-se de suas características polissêmicas, de acordo com os interesses de cada parte. É um conhecimento fundado evidentemente na oralidade, mas se baseia no conhecimento profundo e interessado da palavra para a escolha do que melhor se encaixa em cada situação – tal como o uso da Bíblia pelos protestantes.

A estrutura ao mesmo tempo hierárquica e fragmentada bakongo, que confere grande importância à chefia tradicional, líderes ao mesmo tempo políticos e religiosos, foi permeável aos movimentos messiânicos, com a emergência de profetas. Hoje, parece ser também semelhante à estrutura atual das pequenas igrejas pentecostais, baseadas no carisma de pastores, por vezes bem jovens, que contam – tal como nas organizações messiânicas – com um pequeno núcleo de intermediários, sobretudo nas igrejas proféticas que, não raro, adquirem uma feição fechada e sectária.

Mais que uma substituição das organizações tradicionais pela sólida instituição cristã – abrangente e multifuncional como as sociedades de parentesco – o que encontramos são relações de complementação, reforço e disputa entre as instituições baseadas no parentesco e as igrejas. Esta questão será desenvolvida no quarto capítulo.

Sigo a perspectiva de que um sistema de pensamento não é substituído por outro mas sim há incorporações segundo a lógica local, de forma criativa, formando sínteses que, embora nem sempre estáveis e coerentes, são capazes, em determinado contexto, de dar sentido à ação e garantir que processos de transformação não recaiam em situações de ruptura insolúveis, que ponham em risco a continuidade do grupo. Sendo assim, persigo nesta análise a idéia de que homologias e semelhanças entre o cristianismo e a cosmologia tradicional podem ser interessantes para pensar a forma como os Bakongo integram estes dois sistemas dentro de sua existência social cotidiana e em momentos especiais, como nos rituais. Do mesmo modo, pontos contraditórios entre um sistema e outro geram tensões não resolvidas, eclodindo em conflitos, num processo sempre dinâmico de reformulação.
As situações em que observamos reforço mútuo bem como concorrência entre autoridades familiares e religiosas indicarão os caminhos pelos quais o grupo vem construindo diversos significados a estas dimensões na sua vida cotidiana. Cabe lembrar aqui que a autoridade familiar ou tradicional incorpora sempre uma dimensão religiosa. Do mesmo modo, as igrejas cristãs propagam um sentido familiar – através da noção de “irmandade” – e de sociedade delimitada – através da noção de “comunidade de fiéis”. Portanto, as instâncias do parentesco tradicional e da religião cristã se distinguem por sua formalização em instituições distintas: a família extensa, identificada pelo chefe de família e conselho dos mais velhos, e a igreja com a autoridade centrada no pastor, no caso das igrejas protestantes. Estes personagens atuam nas cerimônias tradicionais do casamento, óbito e reuniões familiares, caso do chefe de família e da família extensa, como nos cultos dominicais e eventos promovidos pela igreja, caso da comunidade de fiéis e do pastor/padre e seus assistentes.
Empiricamente, contudo, os atores sociais encontram-se em fluxo constante, desempenhando diversos papéis sociais localizados numa instância e noutra, borrando as distinções entre elas.

Igrejas e Estado

Não se pode perder de vista, nesta abordagem sobre o protagonismo religioso bakongo e sua dimensão identitária e política, do lugar que as igrejas assumem como as principais instituições de organização da sociedade angolana, seja por seu caráter assistencialista (de ajuda humanitária e prestadora de serviços de saúde e educação) seja como catalizadoras de formas distintas de sociabilidade – distinta tanto do âmbito do parentesco como do mundo do trabalho. Este lugar ocupado pelas igrejas é ainda de maior relevância considerando o quadro de fechamento político-institucional e a fragilidade da chamada “sociedade civil” em Angola.

No campo das igrejas há que considerar a concorrência de cada igreja por fiéis – sobretudo no atual contexto de crescimento e proliferação de igrejas de matriz protestante/pentecostal – e os discursos e serviços que as igrejas, seus dirigentes e aderentes põem em circulação, de modo a afirmar e construir sua legitimidade, eficácia e visibilidade. No caso angolano, as igrejas devem também haver-se com o próprio Estado que, com seus instrumentos de controle e regulação, não reconhece mais que 84 igrejas num universo de algumas centenas de denominações.

As igrejas que obtém o reconhecimento do Estado são aquelas mais bem implantadas no território e há mais tempo. São as igrejas de estrutura mais hierarquizada e que contam com um conjunto maior e mais estável de fiéis (ainda que sejam as que perdem mais aderentes para as recentes igrejas pentecostais). Estas igrejas, em geral, são as mais capazes e dispostas a veicular um tipo de discurso – para dentro e para fora das igrejas – que visa representar o grupo religioso, canalizar suas expectativas e anseios, buscar uma interlocução seja com outros grupos de mesmo tipo – outras igrejas – seja com o Estado e suas instituições. A representação aqui implica sobretudo na própria construção do grupo que é passível de ser representado – católicos, batistas, tocoístas, kimbanguistas, por exemplo.

Os discursos e práticas veiculados por estas igrejas incluem as representações sobre a nação, quase sempre afirmando a importância do pertencimento nacional e da nação como identidade coletiva fundante e prioritária – legitimando também o lugar do Estado como seu símbolo máximo. Todavia, estes discursos e práticas também apontam para a pertinência de outras identidades coletivas ancoradas sobre outras bases, como a confissão religiosa e a identidade étnica, que se fundamentam em outras lealdades e obedecem a outras lógicas. Assim, estas igrejas veiculam e reafirmam outras demandas e identidades coletivas, pondo em circulação outros símbolos e valores, como também portadores e representantes legítimos destes mesmos símbolos, valores e grupos.

Já as igrejas de tipo pentecostal, menores e fragmentadas, são notórias – e procuradas – pela oferta de serviços de cura espiritual através da relação imediata do fiel com a divindade. Estas igrejas são menos capazes (ou interessadas) na composição de um diálogo identitário entre grupos e Estado. Contudo, são ameaçadoras de uma certa lógica do Estado moderno justamente pelo desafio às concepções de saúde pública e de serviço médico, oferecidas ou reguladas pelo Estado como representante legítimo do interesse público. Estas igrejas retomam concepções persistentes que conectam corpo físico ao corpo social, remetendo para percepções locais – divergentes da concepção veiculada pelo Estado – que pensam a ausência de saúde e prosperidade como um desequilíbrio social em decorrência de uma comunicação interrompida com a esfera do divino. A promessa de retomar esta comunicação falhada é feita pelas igrejas pentecostais/proféticas – legítimas mediadoras destas coletividades – através dos rituais extáticos de possessão e cura divina.

Nesse sentido não podemos nos esquecer, entre os estudos já citados sobre religião e poder, da relação de homologia apontada por alguns autores (entre os quais, Balandier, 1969: 94) entre igreja e estado. As duas instituições têm caráter transcendente que representa e sintetiza ao mesmo tempo em que ultrapassa a coletividade da qual emerge (Geertz, 1997; Kantorowics, 1998). São instituições totalizadoras, fundadas num aparato performativo e discursivo que buscam a mediação legítima e a linguagem ordenadora do social.

A semelhança entre as duas instituições as torna concorrentes e não cabe aqui pensar a priori partindo de uma concepção modernizante segundo a qual a chamada ressurgência religiosa seria indicação da falência do modelo do Estado nacional, o qual supõe a existência da igreja e do religioso relegados à chamada esfera privada e da escolha individual.

Partimos aqui de alguns princípios. O primeiro é que o Estado-nação, antes de ser um modelo, é um fenômeno histórico e, como tal, configura-se de formas variadas no espaço e no tempo. A idéia de separação entre igreja e Estado, vista como um dos pilares da estruturação do estado moderno e da modernidade, não parece ter se efetivado em todos espaços e em todos os momentos (mesmo na Europa Ocidental, onde nasceu e se transformou em modelo de organização para o mundo), assistindo mais épocas de idas e vindas do que um desdobramento linear e progressivo.

Sendo assim, mais do que contabilizar o “fracasso” da modernidade em espaços não hegemônicos do globo, como África, por exemplo, caberia-nos observar as tensões históricas desta relação entre Estado e igrejas (ou esfera religiosa), com especial relevo às práticas cotidianas nas quais se efetiva esta relação, e pensar se, mais que desafiar a “modernidade”, estas relações não a redesenham e a redefinem conferindo um sentido mais crítico, mais histórico e menos modelar ou idealizado do próprio Estado e da própria modernidade.

(*)Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

 

 

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