Viagem ao Bemba e Damba em 1912 – CIVILIZAÇÃO DO INDÍGENA( COLONIZAÇÃO )

Por José Cardoso – Governador do Distrito do Congo Português em 1913

 

Em sua circular de 17 de Abril de 1913, considera Sua Ex.ª o Governador Geral, e muito bem, os administradores das circunscrições civis como sendo, de toda a engrenagem executiva da organização administrativa, o mais poderoso elemento de progresso da província, capaz de levar por diante a obra de levantamento moral, de civilização e desenvolvimento económico que a Nação Portuguesa se tem esforçado por conseguir na província de Angola…
Pedindo um pouco ao génio criador desses funcionários, mas reclamando-se muito das suas faculdades de absorção, de assimilação e de adaptação, exigindo-se-lhes imenso da sua habilidade, tacto e actividade, são justamente – essas entidades – aquelas de quem mais depende o progresso real da colónia, o qual, por todos os pontos de vista sob que se possa ser encarado, se reconhece estar sempre intimamente relacionado com o feitio que possamos fazer assumir o indígena.

Educar, instruir e civilizar o indígena – é tarefa que só os administradores podem realizar – e é por certo, de entre todas as que sobre eles pesam, aquela para a qual é necessário que possuam mais experiencia, mais prudência e maiores conhecimentos, devendo o Estado facultar-lhes, e por todas as formas, todos os elementos de consulta onde encontrar os conselhos entre os quais escolher os que mais se coadunam com as características das populações gentílicas que lhe estão confiadas, na certeza de que, na orientação que seguirem, devem partir de um principio rigorosamente verificado, qual é o de que todo o sistema visando o aperfeiçoamento das condições gerais de vida das comunidades gentílicas depende intimamente do conjunto de conhecimentos que houver reunido, precedente de um cuidadoso estudo das particularidades étnicas dos povos com os quis tem de manter-se em permanente contacto e com os quis terão por vezes que fazer vida intima.

(…) De há uns anos a esta parte que entre nós se tem encarado com particular atenção e esmerado interesse o dever de melhorarmos a condição social indígena; e nesse intuito altruísta, em que nos achamos empenhados, consideramos como elemento capital dessa função – a instrução – atribuindo-lhe exagerada importância e demasiada influência,acreditando que ela só por si constitui a chave da educação cafreal, que nos produzirá os resultados civilizadores que temos em mira conseguir.

Por seu turno, o indígena corresponde a esta fase da nossa actividade colonial,acorrendo com um certo transportamento às escolas que estamos abrindo; crente, como está na sua imaginação infantil e rudimentar, que será na escola que adquirirá tudo quanto lhe falta para nivelar-se com o branco que admira e simultaneamente detesta.

Errados andamos – Estado e nativos – se nos abstinarmos neste modo de ver sobre a forma de civilizar.

Habituados a conhecer os efeitos produzidos em o nosso meio de instrução, e esquecidos de quanta distancia nos separa do meio em que queremos introduzi-la, familiares, como estamos, com as nossas instituições de ensino e de educação, parece- nos simples, senão mesmo racional, ser fácil de com elas conseguir-mos para o indígena os resultados que entre nós atribuímos tão somente a esses dois factores, e repelimos a necessidade de estudar aprofundadamente a forma evolutiva dos processos sociais alheios aos nossos, deduzindo-a da crítica comparativa desses processos, pela qual melhor poderemos aperceber a influência exercida no progresso pelos seus factores mais remotos, em geral os menos conhecidos e, quiçá, os de maior importância…”
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“Consideramos, portanto, os nossos métodos de ensino metropolitano como sendo os mais apropriados para fazer progredir o indígena, e sobre ele moldamos as instituições de instrução das nossas colónias, animados pelo acolhimento que elas encontram no indígena semi-civilizado, o qual se ajeita a elas imperfeitamente, adoptando impropriamente o nosso modo de ver, começando desde já a ressentir-se das misérias sociais que nos afligem, crendo que as sofrem por não poderem, por nossa culpa, por completo atingir o destino que nos procurámos, e que reputam o melhor, quando é ncerto que elas provêem de terem já absorvido muitos defeitos dos nossos sistemas, agravados pela imperfeita assimilação de um regime que não se coaduna com o meio,que dificilmente se adapta ao homem da savana, e que por forma alguma corresponde a qualquer das necessidades regionais, que profundamente se distinguem das que na Europa originaram os sistemas que pretendemos implantar aqui.

Antes que pretendamos operar uma transformação de costumes, temos de ponderar cuidadosamente no facto de que as acções dos homens, que em época determinada caracterizam o regime social atingido pelo grupo que se considera e que representa o grau de perfeição conquistada por ele, estão numa inteira e íntima dependência dos sentimentos, instintos, hábitos, e crenças desses homens, inveterados pela acção dos tempos, transmitidos pela hereditariedade, fortemente consubstanciados pela tradição e pela resultante das multíplices combinações dos elementos citados, num substrato psicológico, que só muito lentamente pode ser alterado, pela tendência natural de adaptação ao meio, inerente a todos os seres vivos, e que constitui no principal factor da evolução, quer ela seja progressiva quer seja regressiva.

Com efeito, é universalmente reconhecido, como um facto, que as características psicológicas de uma raça mão são susceptíveis de modificação efectuando-se esta todavia o decorrer dos séculos, pela persistência de fenómenos capazes de produzir alterações de natureza estrutural.

Por forma alguma é intento meu sustentar que seja nula, sob o ponto de vista da correcção dos costumes, a influência que pode exercer-se nos meios cafreais pela importação de instituições alheias mais perfeitas. O que quero negar é que se considere,como principal causa da modificação aludida, o exercício por parte dos nativos de uma faculdade de livre arbítrio que permita ao indígena uma escolha consciente do melhor caminho a seguir o do melhor sistema a adoptar.”

É certo que podemos e devemos mesmo modificar a direcção segundo a qual se efectuaria a evolução social dos meios cafreais, se os abandonássemos aos seus recursos e elementos próprios de progresso. Devemos, todavia, ao interferir nessa função da vida gentílica, cingir-nos quanto possível aos meios de actuar e aos métodos naturais, acomodados à índole dos povos sobre que pretendemos influir e para onde pretendemos importar princípios que desejamos sejam definitivamente abraçados por eles.

(…) Com efeito, a civilização – o fim comum de todos esses esforços de aperfeiçoamento da vida gentílica — depende estreitamente da estrutura social de uma comunidade e nunca do facto de podermos incutir um certo grau de educação e de perfeição moral isoladamente a cada um dos seus membros, ou, como seria possível, no caso mais geral, a um limitado número deles, por isso que por esta forma nunca efectuar profundamente o carácter estrutural da sociedade a que pertencem.

Quer isto dizer que há que actuar por processos lentos que nos permitam exercer uma influência segura sobre os princípios, hábitos e costumes cafreais ,se quisermos retirar resultados efectivos do trabalho realizado na intenção de civilizar, procurando sempre encontrar no conjunto de caracteres distintivos de um povo o seu coeficiente progressivo, o qual, convenientemente aplicado, lhe proporcionará a transição natural para um estado geral mais perfeito, pela forma gradual e sucessiva, a única compatível com o os processos da natureza, da qual esses agrupamentos humanos se acham ainda muito pouco diferenciados.”

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“ È tal a influência que o comércio bem orientado pode exercer na civilização dos meios primitivos, que – quando se formaram as colónias da bacia convencional do Congo, que foram organizadas sob elevado desígnio e generoso intuito de promover o progresso da humanidade habitando esta zona equatorial, e de estabelecer o bem-estar, que as atrasadas povoações do Congo desconheciam e que podia ser-lhes facultado com os benefícios que a civilização europeia havia de trazer-lhes, foi consagrada oficialmente essa influência benéfica, contando-se que pelo comércio se realizaria o grande plano de engrandecimento da vida cafreal no coração da África.
Nesta ordem de ideias, estabeleceu-se, como princípio fundamental da constituição das colónias da bacia convencional, a inteira e a mais ampla liberdade comercial que pudesse imaginar-se, tal como ficou definida nos artigos 1º. e 5º. Do Acto de 1885.

Contava-se que, com o estabelecimento livre das casas de comércio e de feitorias, repletas de mercadorias provenientes dos centros de produção civilizados, espalhadas por toda a parte, vendendo-se a baixos preços, sob o regime moderno da concorrência mercantil, o indígena fosse atraído facilmente, e que para obter o dinheiro necessário para as suas compras, ou o género necessário para a troca, exigido pelo comércio, se precipitasse espontaneamente no trabalho livre, do qual desabrocharia uma ridente civilização para as populações primitivas, até então mergulhadas nas trevas da barbaria – civilização que se desenvolveria por um processo evolutivo, natural e espontâneo,perfeitamente admissível, se o índice moral das raças, que habitam essa vasta região africana, estivesse livre de uma infinidade de preconceitos gentílicos que prejudicam,senão completamente, pelo menos em grande parte, a aplicação das leis sociais que regem os meios civilizados, quando arremessados de chofre para meios totalmente desprovidos de preparação para recebe-las.

Com a abundância característica das regiões tropicais, ter-se-ia constituído na bacia convencional um verdadeiro paraíso de pretos, que por certo faria a inveja dos brancos, se não fora meramente falaz a lógica com que se fundamentou a teoria da civilização pelo comércio.

O que aconteceu, e o que por todos é reconhecido, é o que vai descrever-se sucintamente, sendo notável que, volvidos tantos anos de desenganadora experiencia,ainda se frise a influência do citado princípio civilizador, consignando-o no artigo 12º. Do Acordo franco-alemão de 4 de Novembro de 1911.

Ora, tem acontecido desde o inicio das descobertas até aos nossos dias, que o europeu que vem para a África, envolvido em empresas comerciais, não se precipita no sertão pelo irresistível impulso de vir melhorar a condição social dos indígenas, comovido ou condoído pela miséria das circunstâncias da vida rudimentar e primitiva que a humanidade tropical arrasta, por desconhecer a forma de utilizar as comodidades que a civilização pode oferecer-lhes, e por desconhecer mesmo quais sejam essas comodidades que o comércio generoso pode tornar-lhes conhecidas e facultar-lhes facilmente por preço módico.

Não! O homem de negócios vem a África movido pela ambição irresistível de fazer fortuna o mais rapidamente possível, enquanto que o seu subalterno nas operações comerciais vem impelido pela imperiosa necessidade material de prover à sua subsistência, conforme a categoria de trabalhador em que, pelos seus conhecimentos e
precedentes se enfileira.

Não há, pois, tergiversações possíveis. O comerciante está em África para fazer dinheiro e não porque tenha qualquer vislumbre de pretensão de educar pretos ou fazer pretos felizes”.

“ A influência do comércio na civilização é inegável, mas só o Estado pode conseguir encaminhá-la, por forma a tirar-se o maior proveito possível para ela, se souber e poder criar o conjunto de circunstâncias que pode evitar ou restringir as influências perniciosas desse factor, a facultar ou ampliar as consequências vantajosas que dele se pode esperar.

A função do comércio, sob o ponto de vista civilizador, Seria criar necessidades nos indígenas, fazer-lhe nascer hábitos de conforto, que depois exploraria retirando daí o devido lucro para o seu esforço de trabalho. É inegável que seria esta uma das melhores formas de civilizar o indígena, por isso que a acção prolongada deste processo modificaria profundamente o meio e o habitat do indígena. Porquanto, acção do comércio sobre o indígena manifesta-se sobre uma grande massa de indivíduos sob um aspecto intensivo, persistente, firme e constante, que tantas são as condições indispensáveis para que a forma de actuar seja capaz de produzir transformações profundas do meio, as quais, não sendo exercidas pela forma lenta, característica de pertinácia comercial, não consentem ao indígena que se ajuste perfeitamente às suas novas condições de vida, tornando-se fugaz e enganadora a impressão de conforto e de bem-estar que pudesse transportar para o sertão a camada superficial de civilização que, nem sequer mesmo sob este aspecto restrito, lá se encontra actualmente.

Não aconteceu, porem, assim. O comércio, em vez de vir criar nos indígenas necessidades civilizadas, veio explorar-lhe aquelas que eles já tinham, as necessidades cafreais; e que eram apenas vícios ou manifestações de maus instintos, arreigados por remota ancestralidade .Vendeu-lhes o álcool necessário para sua incorrigível embriagues,a pólvora e as armas com que alimentar as eternas lutas cafreais; falsificou-lhes os cobertores com que deviam agasalhar-se; substitui-lhes os magníficos panos de tecelagem gentílica pelos mais reles algodões que os centros europeus são capazes de produzir, e impingiu-lhes por vestuário o rebotalho dos adelos e ferros-velhos da Europa, procurando satisfazer a tendência para o esgazeamento gentílico com as cores berrantes de uniformes em segunda-mão , com botões de latão e agaloados oxidados.

Numa palavra, despejou em África o lixo e os cacos da civilização de entre os quais surge o preto semi-civilizado, produto com se topa em todas as colónias europeias, do norte ao sul da África, sendo muito escassas e honrosas excepções que se encontram, atestando-se quanto vale o indígena, quanto dele pode esperar-se, para a transformação do seu meio e para a correcção de seus próprios defeitos, se for devidamente encaminhado.

O indígena semi-civilizado, comparado com o das regiões mais remotas da tribo a que pertence, comparado com os seus irmãos que ainda não sofreram as influências de agentes civilizadores, dá-nos, como regra geral, uma impressão desagradável dos efeitos que sobre ele exerceu a civilização, salientando-se do contacto que teve com esta, a demonstração de que rapidamente lhe assimilou os inconvenientes a parte defeituosa.

A sua aparência exterior não nos deixa a menor dúvida de que o seu congénere virgem,que habita o mato, se lhe avantaja sob todos os pontos de vista, sendo preferível a ele em todos os casos.

(…) Sob o ponto de vista moral, não se nos avantaja o quadro, podendo dizer-se que o indígena semi-civilizado imita abominavelmente os trejeitos morais da humanidade. As qualidades sãs que constituem o rudimento moral do carácter da raça a que pertence, perde-as rapidamente com a defeituosa educação que adquiriu; o seu contacto com o branco ordinário, que é aquele com que usualmente se relaciona, destrói-lhe o respeito, a delicadeza e o pudor naturais, que são substituídos por um tosco descaramento e por um insólito amor próprio mal concebido, o que lhe dá um aspecto desagradável e agressivo, especialmente quando reconhece no acolhimento do branco que os seus falsos méritos são menosprezados ou mesmo rebaixados, o que é frequente.

É manifesta a sua grande aptidão para absorver a assimilar todos os defeitos e vícios da civilização, e sua instintiva repulsão para com as virtudes que ela poderia introduzir-lhe.A natural adversão pelo trabalho manual, agrava-se no seu novo estado social; desliga-se com ostensivo desprendimento dos hábitos de solidariedade ; despreza as tradições tribais; e, perdida a fé e perdida a esperança que podiam brotar-lhe das suas crenças infantis, sem que se lhe forme uma sólida consciência, transforma-se num verdadeiro náufrago no mar de paixões e de ambições em que pretendeu singrar”.

Desde que assumi a posse do Governo, encarei com especial interesse o problema da instrução no distrito, onde até então, por parte do Governo, nada se tinha feito sobre o assunto, diferente do que fosse auxiliar as missões católicas, estabelecidas no Enclave e para o sul do Zaire, com um subsidio monetário para manterem uma escola pública que não estava separada da escola da missão, pelo que tal subsidio representa meramente um subsidio às missões.

Ora, o ensino das missões não basta nem satisfaz em todos os casos as necessidades da instrução no Congo, pela razão principal de estarem as missões estabelecidas em pontos escolhidos pela subordinação ao estado da ocupação distrital na época em que foram montadas, tendo alguma existência anterior a essa ocupação.

Devo mencionar, todavia, que a orientação do trabalho das missões e sua influência sobre os povos é, e pode ser, muito aproveitável, sob o ponto de vista da educação dos indígenas, ponto de vista segundo o qual reputo conveniente, como tenho exposto,orientar todo o ensino, pois tudo quanto tenho observado me encaminha para concluir
que, por enquanto, maior cuidado nos deve merecer e educação de que propriamente a instrução .

As missões católicas e mesmo as protestantes, podem de facto transformar-se num bom elemento educador, porque, conjuntamente com a educação literária elementar que facultam, sujeitam os indígenas, em tenra idade, ao trabalho dos campos e da oficina,subordinados a uma cuidadosa disciplina tendente a incutir saudáveis hábitos de trabalho,criando alguns artistas de ofícios vários, muito aproveitáveis na vida prática.

(…) “Têm ainda ( as missões) a incontestável vantagem de o seu pessoal ser, ou dever ser,escolhido entre homens que por vocação se dedicam à tarefa de missionar, à qual podem consagrar toda a sua energia e actividade, pois que a esfera das suas ambições está por natureza para sempre fechada a esses indivíduos que, pelos seus votos, têm consagrada à educação.

(…) Com efeito, estando as missões estabelecidas no Enclave há bastantes anos, noto que as aldeias cristãs, que já referi, não têm desenvolvimento que era de esperar que tivessem atingido, por forma que, comparando a obra efectuada com o tempo levado em produzi-la resulta um valor infinitesimal para o coeficiente representativo do trabalho efectivo anual das missões. Deriva-nos, pois, uma impressão de que do trabalho da missão não surgiu a
formação do meio que era de prever que se desenvolvesse e que devia ter já proporções tais que fosse palpável a sua influência. Lembremo-nos de que as missões católicas já estavam montadas no Enclave quando nós o ocupámos.

Ao sul do Zaire, no Lunuango, o espectáculo dos resultados obtidos é ainda menos animador. Apenas em San- Salvador o obra da missão católica tem algum valor palpável,mas há a descontar, neste caso, que por essa missão passaram homens de excepcional valor, que o espírito do cristianismo lançou ali as suas sementes na segunda metade do século XV, e que por último a missão católica trabalha em concorrência e despique com a missão protestante, estabelecida no Congo, o que constitui um potente incentivo de actividade que não actua sobre as missões do Zaire e do Enclave.

Atribuo o facto das missões não produzirem os resultados, que era de prever, em primeiro lugar à pouca simpatia que as missões de qualquer credo ou seita religiosa inspiram no indígena rude e ainda inveterado no seus hábitos e crenças cafreais, por isso que um dos principais papeis das missões religiosas e o que elas mais zelosamente executam, de entre todas as que lhe estão confiadas , é o converterem ao catolicismo, ou às diferentes formas de cristianismo, as crenças indígenas, o que, não podendo fazer sem varrer da mente ingénua do gentio as suas crenças tradicionais, lhes levanta a natural reacção de todos que têm fé, contra a destruição dos seus princípios religiosos, quando neste caso acresce a circunstância de que a destruição do poder dos seus feitiços representa para o gentio um enorme prejuízo que o missionário religioso, e mesmo muitas autoridades administrativas,se obstinam em não reconhecer, isto é, o da desorganização da sociedade cafreal que tem todos os seus actos, particulares e públicos, intimamente relacionados com o poder do feitiço”

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(…) “Reconheci, portanto, e muito breve que era necessário intervir, com a instrução facultada pelo Estado em estabelecimentos seus, para promover a educação.(…) “Mostro quanto estou convencido de que mais necessária é a educação propriamente dita, do que a instrução; e, convencido também de que só pela agricultura poderá restituir-se ao distrito a riqueza que tem declinado por forma assustadora, como já em meu relatório de 1910 o dizia, e não vendo outra forma de restabelecer o rendoso comércio, que no Congo se efectuava ainda há poucos anos, senão por ela, tem sido intento meu orientar essa educação por forma a destruir gradualmente o preconceito contra o trabalho dos campos,com o fim de facilitar braços aos agricultores.

Foi assim que em 15 de Julho de 1911 lancei bases desse ensino educador com a minha proposta para a criação da granja do Quifuma, que foi aprovada por portaria provincial nº.1:414, de 30 de Dezembro desse ano.

A minha intenção, com a criação desse estabelecimento, era, e é, a de mostrar pela prática , pelo exemplo, como se tira partido dos recursos da natureza com o trabalho,corrigindo-a nos pontos do distrito onde ela é mais ingrata, levando a abundância aos povos onde agora por vezes sofrem as inclemências da fome e patentear-lhes, pela
evidência , como pela aplicação da acção conjugada e de um pequeno esforço continuado obtêm a sobre produção, incutindo assim o principio do rendimento que torna o trabalho lucrativo e promove a fortuna.

(…)Todo o meu empenho tem consistido em encaminhar os trabalhos da escola por forma a actuar sobre a intuição do gentio, influindo na imaginação dos adultos pela surpresa da transformação dos terrenos, que eles conheceram desde sempre como estéreis e avaros,tornados ridentes pelas aleias sombreadas dos novos palmares e pelo cultivo regular das várzeas a que eles consagraram o menor esforço para originar abundância, que brota com relativa facilidade dos solos africanos. (…) É claro que é indispensável o complemento do ensino literário, sem a qual brancos e pretos não compreendem que possa existir uma escola, e sem a qual não conseguiria por cero atrair a ela o mussorongo, ávido como todos de poder ler a mucanda. (…) Pela organização da escola está a sua manutenção e
organização a cargo da Comissão Municipal de Santo António do Zaire, como se vê pelos artigos 5º e 8º do respectivo regulamento, a qual, soba direcção do Governo do distrito(artigo 3º ), encontrará maneira de completar a sua acção, porquanto é de esperar que desta colaboração recíproca resultará o progresso real da instituição.

Com efeito, entrando na composição da Comissão Municipal elementos do comércio local e a autoridade local, parece que deverá àqueles, por interesse próprio, convir a manutenção e o desenvolvimento da granja, porquanto o comércio melhor de que qualquer entidade deverá ter a noção perfeita da decadência mercantil do Congo tem sofrido, e a perfeita intuição das suas causas, e melhor de que ninguém deverá compreender também que a ruína completa do comércio só poderá evitar-se modificando as condições económicas do meio, pela educação do indígena, criando-se assim uma nova atmosfera comercial que, transformando o indígena num consumidor regular, possa consentir a manutenção dos estabelecimentos que ali existem, os quis já não podem regressar ao negócio remunerador de outros tempos, que se baseava em princípios artificiais impossíveis de fazer persistir.

(..) Outras escolas montei subordinadas a esta orientação.

A escola Afonso Costa, em Noqui, situada sobre o caminho de San-Salvador, espero que será modelar e de grandes efeitos educadores (…) Tenho também grande esperança no resultado das escolas montadas em Lândana, Neuto, Buco Zau e Quelo, onde se procura,quanto possível, copiar os princípios fundamentais da granja do Quifuma. Não sendo estas últimas tão importantes, sob o ponto de vista geral, como as duas primeiras a que venho de aludir, mas é de crer que possam contribuir por qualquer forma útil para o auxilio da agricultura local, já estabelecida na região, e para disseminação do espírito do trabalho entre as populações do Miombe e do Quelo, bastantes avessas a ele…”

“ Seguindo a corrente das outras nações coloniais, temos considerado e admitido, como elemento principal da educação do indígena, a instrução que lhe facultamos nas escolas do Governo e a que consentimos que lhe seja ministrada nos estabelecimentos de ensino religioso, pelo intermédio dos missionários de diferentes credos.

A acção isolada destes estabelecimentos manifesta-se principalmente pelo desenvolvimento apressado, e certamente antecipado, da inteligência do nativo, fazendo brotar-lhe no espírito a noção do individualismo para o qual se não encontra preparado nem tem preparado o meio onde há-de viver .

Na educação do indígena proveniente do ensino religioso, fornecido pelas missões, agrava-se ainda mais a tendência para o individualismo criado pelo ensino laico, porque, em regra, elas procuram influir no espírito do indígena, compenetrando-o de que acima de tudo deve recear o castigo futuro das suas faltas e pecados, que constituem graves ofensas à religião, e, desse sistema encaminhar o seu carácter, salientando-lhe, pela forma menos racional e a mais imperfeita, o sentido que devem ter do que seja a responsabilidade pessoal.

Sobreleva-se, porém, a todos os vícios de educação os que derivam do exercício e influência da actividade comercial, das necessidades da industria e da agricultura, onde o indígena vem pôr-se num contacto mais íntimo e prolongado com os europeus, e nem sempre com aqueles que possuem as melhores recomendações como elementos educadores, como factores de correcção do meio pelo exemplo de severidade  dos costumes, pela sobriedade das paixões e pelo escolhido dos sentimentos.

A compressão de grandes grupos de indígenas atraídos das regiões mais remotas, pela procura de braços, para os centros de actividade civilizada, contribui, ainda mais poderosamente do que os factores apontados para modificar o espírito do indígena, no qual pouco a pouco se desenraízam os seus princípios de moral cafreal, separando-o das suas tradições, sem que em câmbio adquira qualquer coisa que se lhe substitua com vantagem o perde gratuitament.

Mas ainda de entre estes três elementos de acção sobre a civilização cafreal – o comércio, a industria e a agricultura – é o comércio que mais importância assume e que mais cuidadosamente convêm considerar, porque de todos eles é o que mais influência exerce, e exercerá, por isso mesmo que actua sobre um maior número de indivíduos do que a escola ou a missão, sobrelevando-se também à agricultura e à industria , porque a sua influência é exercida sob um aspecto de ampla liberdade que o torna atraente para o gentio, irresistível às tentações da compra dos produtos de deslumbramento cafreal.

Enquanto a escola, a missão, a oficina, e a roça têm para os indígenas um aspecto repulsivo, pelo contraste com a vida livre e ociosa que lhes decorre da savana, o comércio – esse poderoso meio de progresso e ultra-aperfeiçoado produto da civilização – influi por tal forma no animo dos indígenas, que os leva aos maiores sacrifícios, ao trabalho e às mais longas e arriscadas viagens, para irem procurar nos confins do continente, onde quer que se encontre, o objecto que lhes satisfaça as suas inclinações viciosas ou os seus requintes de luxo primitivo, o que, não obstante a experiência lhes provar quanto é efémera a satisfação dos seus desejos, pela péssima qualidade do artigo que adquirem, estão prontos a recomeçar, refazendo todo o trabalho e repetindo as peníveis viagens a que são obrigados, para tornar a sentir a fugidia sensação de gozo produzida pela aquisição de bugigangas com que satisfaçam os seus apetites infantis”

VIAGEM AO BEMBE E DAMBA, Setembro a Outubro de 1912. “In- NO CONGO PORTUGUÊS”

Relatório do Governador do distrito, primeiro tenente de marinha, José Cardoso. Cabinda ,1913”

 

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