VIAGEM AO BEMBE E DAMBA de 1912 – RELIGIÃO E FÉ.

Por José Cardoso – Governador do Distrito do Congo em 1913

 

Tendo passado em revista, ainda que superficialmente, os principais factores de transformação dos indígenas para os quais ainda é necessário introduzir-lhes princípios civilizados erradicando-lhes o que tenham de prejudicial nos seus maus hábitos e costumes por uma evolução natural, é-nos chegado o momento de abordar o melindroso assunto da religião, o qual se afigura que deve merecer-nos especial e cuidadosa atenção,muito mais o que até ao presente lhe tem sido consagrada nos empreendimentos civilizadores das nossas colónias.

Com o espírito da época tendemos para desprezar a influência deste elemento importante nos problemas sociais dos agrupamentos gentílicos , pensando, talvez que poderemos formar a consciência indígena simplesmente com a promulgação de leis tendentes a incutir os elementos de moral cívica, quando é para notar-se que mesmo entre indivíduos das nações ditas civilizadas dificilmente abrem caminho, esses elementos, para acompanharem os outros fenómenos sociais, na marcha acelerada que o progresso realiza em nossos dias nos méis altamente apurados pelo requinte da civilização.

Pensamos, parece-me sem grande discernimento, que seja possível substituir nos pretos preconceitos de origem secular pelos que podem ser-lhes incutidos pela religião natural constituída pelos princípios da moral comuns a todas as nações civilizadas, derivados do conhecimento do direito e da ciência, estabelecidos pelo raciocínio e pela lógica,independentemente de qualquer revelação.

Parece-me um caminho erróneo pretender elaborar essa evolução galgando de um salto as transições graduais por que essa transformação se efectuou nos centros onde a organização social atingiu uma forma mais perfeita, esquecendo que o estudo e a observação nos demonstram que o sentimento religioso é como que um sentido inato no homem primitivo, seja qual for a forma como ele se nos apresenta ou manifeste, que a religião tem desde os tempos mais remotos desempenhado um papel tão importante nas relações entre os homens e que esse sentimento só pode desvanecer-se à medida que a humanidade progride no conhecimento aprofundado dos fenómenos do universo.

Esquecemo-nos ou, por vezes, mesmo, queremos negar que a religião tenha influência na civilização, quando é certo que aquela é um produto desta, sobre ela actuando por influência recíproca, e manifestando-se em todos os seus aspectos em perfeita harmonia com o grau de perfeição geral que um determinado grupo se nos revela.

É certo que uma e outra nem sempre têm caminhado “pari passo”, e que entre ambas ora tem havido acção conjugada ou reacção manifesta, podendo em tos os casos afirmar-se, como uma ideia geral, que se a civilização estaciona ou retrograda a religião sofre no mesmo sentido, embora a recíproca não seja verdadeira, porque, quando através da história se regista o avanço franco e decidido da civilização em muitos casos, talvez em quase todos, o sentimento religioso pára ou enfraquece, senão que retrograda,acontecendo em regra no último destes casos, que a fé e a crença se extinguem no maior número de indivíduos , conservando-se num estado frouxo ou de quase indiferentismo em muitos dos quais aparentemente cultivam preceitos religiosos.

Em todos os casos de problemas coloniais, em que seja necessário um intimo contacto com ávida do gentio, temos que admitir a sua importância e reconhecer que a religião está intimamente ligada com todas as manifestações de actividade dos indígenas ,e completamente misturada com todos os principais aspectos da vida cafreal,, pelo que diz respeito à constituição da família, direitos de autoridade gentílica, processos de julgamento cafreal, castigos, relações entre pessoas inter-tribais, no comércio e em todas as manifestações da via quotidiana, pelo que se não deve desprezar fazer o estudo do sentimento religioso cafreal, se quisemos, com conhecimento de causa, tirar partido
do indígena para transformá-lo, de um ser rude e imperfeito, num individuo que possa compreende e utilizar os benefícios da civilização, encarreirando neles francamente.

Poder-nos hão censurar o nosso modo de ver, por chamarmos religião ao conjunto de crenças e manifestações pelas quais o indígena considera e interpreta o sobrenatural,porque, como regra, nas diferentes graduações do sentimento religioso, se considera apenas como crença o conjunto de pensamentos e de sentimentos que não exceda os limites duma simples fórmula, passando a merecer a consideração de culto quando essa crença assuma certas proporções e se revista de certas manifestações externas e cerimónias que constituem um ritual, embora rudimentar, reservando-se a designação de religião, para os mais exigentes na matéria, quando o sentimento ou a ideia característica, no crente, deriva da consideração da existência de um ente supremo, causa primária de todas os fenómenos, e não fenómenos.

Segundo esse modo de ver, a maioria das manifestações do sentimento religioso no indígena não devem passar de ser consideradas senão como crenças, concedendo-lhes os mais condescendentes a significação de culto, que, em regra, existe no gentio, embora a maioria dos casos seja absurdo, ridículo ou mesmo cruel, mas todavia existindo um culto.

Cremos, porém, que todas essas crenças e cultos têm um fundamento ou uma explicação filosófica, mais ou menos racional, consolidando em quase todos os casos os alicerces do ligeiro edifício moral das sociedades cafreais, o que não pode fazer-se, sem usar-se de moderação e habilidade, porque assumindo realmente essa religião o aspecto de um fundamento de moral, racional, não pode destruir-se sem que se substitua por qualquer principio que entre na pseuda consciência do indígena com a mesma solidez com que possui a ideia ou o sentimento religioso que desejamos modificar-lhe.

Até agora apenas missionários se têm ocupado do estudo das crenças cafreais e mesmo entre eles poucos o têm feito sob o ponto de vista cientifico , sendo, como regra, feitos com subordinação à sua maior preocupação – a de converte-los à fé que propagam.

Não creio possível, no estado actual do desenvolvimento moral dos povos atrasados,substituir essas crenças pelo conhecimento e consciência da lei moral, que às nossas autoridades cumpriria efectuar, passando esta última a regular as acções entre os indígenas em substituição do que até agora se lhes tem servido para esse fim – os princípios da sua religião que possuem profundamente inveterados.

Para compreender-se a dificuldade que há na substituição da crença gentílica pela religião natural, basta observar a dificuldade que o missionário tem em substituir-lhe aquela pela religião que prega, quando deveria parecer fácil e natural que o indígena abraçasse as nossas religiões com facilidade, por poder assimilá-las sob o mesmo aspecto supersticioso que cultiva as suas. Não deve esperar-se o mesmo em relação à religião natural, por a sua assimilação depender da posse de espírito esclarecido bastante.

A razão principal dessa dificuldade, mesmo em relação às várias formas de cristianismo,reside no facto do feiticismo ter para o indigina um carácter essencialmente espiritual de quase todas as formas de religião de Cristo e totalmente impossível, por agora, de substituir-se pelo carácter de pura abstracção que distingue a religião natural.

A força enorme do feiticismo reside na confiança absoluta que o indígena deposita no seu feitiço, que ele pode escolher entre as diversas fórmulas da sua religião, apropriado a todas as contingências de ordem material e que está exposto no decorrer normal da sua vida.

O gentio armado com a protecção do feitiço que deve defende-lo de um determinado inimigo visível ou invisível, mas cujas manifestações são sempre materiais, palpáveis,sente-se forte, adquire confiança em si, porque tem uma arreigada fé em que esse feitiço o defenderá nas conjunturas a que poderá expor-se. Ele vê o feitiço, sente-o, e com ele se embrenha, confiante na protecção material de que se julga munido. Essa mesma confiança dá-lhe audácia, e todos sabemos quanto é importante o papel desempenhado nas acções humanas pela confiança do homem em si próprio e pela audácia, seja qual for o fundamento em que assentam essas duas qualidades ou sentimentos. A diferença está,porém, em que o bom sucesso num empreendimento realizado por um homem civilizado é por ele explicado por uma causa, ao passo que o indígena, incapaz de deduzi-la, explica-o sempre pelo efeito do feitiço.

Se acaso afortuna é adversa ao indígena, não vira as culpas ao feitiço, e sua confiança nele não sofre o menor abalo , como poderíamos supor. A sua imaginação ingénua e os seus hábitos facultam-lhe uma explicação simples que evita a destruição da crença e da sua fé. É, diz ele, porque o seu feitiço foi contra-actuado por um feitiço de influência superior à do seu, ou porque, por uma natural distracção, deixou de executar algumas das muitas e mui complicadas minudências dos ritos que fortalecem a virtude do feitiço.
Comparece isto com a intimidade dos enguiços a que são atreitos, mesmo, muitos espíritos cultos, e convencer-nos hemos de que é iminentemente natural a suposta acção dinâmica do feitiço!

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A falta de confiança no auxílio que possa prestar-lhes a religião civilizada é, portanto,muito fácil de compreender-se.

Em primeiro lugar, embora o indígena creia na sobrevivência do espírito, não lhe parece que sirva para qualquer coisa a salvação da alma, e o que vê nas nossas imagens são outros tantos feitiços destinados a fins idênticos aos seus, mas que só são efectivos para os brancos.

Por fim, é um facto que o indígena convertido tem, como regra, uma fé frouxa,e sente, quando entregue a ela, a falta de qualquer coisa tangível que defenda na vida presente, e nas conjunturas materiais difíceis, das armadilhas dos mil e um feitiços que se opõem aos seus empreendimentos, aos quais se entrega sem aquela confiança no êxito que lhe prometem os seus feitiços familiares e portanto de facílima intuição para ele.

Quando sofre um insucesso, que se lhe pretende explicar pelo facto de Deus querer experimentar a intensidade da sua nova fé, não o satisfaz essa explicação com a qual se não governa e que não o anima a consolidar a sua fé nesse Deus que,para experimentá-lo, o abandona, expondo-o assim a sérias contingências, que ele não pode prever quando cessem, por não saber quando acaba essa prova a que tem de sujeitar a sua fé.

Daí resulta que na maioria das vezes o indígena cristão adiciona à sua nova crença o uso intimo do seu feitiço, para, pelo menos, iludir o feitiço oposto, encobrindo-lhe a sua conversão ao cristianismo, o qual afinal não passa de ser uma forma prática do indígena manifestar que também compreende que é bom estar-se bem com todos os deuses.

Vê-se, pois, que o sentimento religioso no preto é uma pura superstição, tanto mais admissível e desculpável, quanto é certo que os actos e manifestações supersticiosas estiveram, e continuam a estar, sobrepostos, profundamente enraizados e misturados com os diversos sentimentos de toda a humanidade cristã, ateísta, pagã ou livre pensadora, através de todos os tempos, de todas as religiões e de toadas as civilizações, e, hoje mesmo, é influenciado pelo poderio oculto da superstição,com uma única diferença, a qual é que, entre os homens civilizados e nos espíritos ilustrados, a superstição não se apresenta com o carácter de essência religiosa que se manifesta no selvagem.

Todavia, ainda mesmo entre povos civilizados se encontra nos indivíduos possuidores dum espírito menos culto uma grande confusão entre religião e a superstição e a mesma dificuldade que o indígena tem em separar-se da sua influência quando se converte a uma religião superior.

E, se nos convencermos de que nos indivíduos mal educados é incapaz de formar-se uma ideia correcta do que representa a divindade e os seus atributos,e como estes constituem a grande massa dos crentes, se quisemos distinguir qual a verdadeira religião que professam, temos que joeirar as suas crenças e as suas práticas, purificando-as do que têm de supersticioso, para encontrarmos nos resíduos da sua fé a ideia indecisa do Deus criador e redentor, característica das religiões civilizadas.

Recorrendo a igual processo de análise para as crenças gentílicas, acabamos também por encontrar-lhes no fundo, sob a forma de Anyambe, Njambe, Nzambi,Auzam, Nyam ou Ukuku,etc, uma ideia perfeita e rudimentar do Diaushptar do Seus pai, o deus criador que justifica plenamente o modo de ver e considerar-se religião o conjunto de superstições e de crendices do indígena semi-bárbaro.

Encontram-se, pois, no preto como em todos os homens primitivos, e em muitos civilizados, a crença no ente supremo por mais incorrecta, imperfeita ou obscura que ela possa apresentar-se para nós, na certeza de que tudo o que lhe transparece do mundo natural, que excede os limites da sua compreensão ou das suas possibilidades de acção, é atribuído à agência material dos poderes de um ser oculto, espírito (?) superior que considera como seu Deus.

 

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Compreende-se, portanto, pelo que fica dito, em que procurei esclarecer a ideia, de que estou possuído, de que é na sua essência o sentimento religioso no indígena, a razão que me leva a recomendar frequentemente, e com especial cuidado a todos os meus subalternos, quanto é necessário ser tolerante com ele, sob este ponto de vista, consentindo e respeitando, nas relações entre eles, as suas crenças gentílicas,e consentindo-lhes todas as práticas com elas relacionadas, quando não sejam contrárias nas leis da moral e da humanidade, procurando, quando se queira reagir a elas, pôr de parte todo o carácter de violência na sua acção de actuar quanto possível sobre a intuição do indígena.

Acrescentarei, em reforço de justificação do meu modo de ver, que reputo perfeitamente natural e plausível a existência e mesmo aconservação temporária dessas fórmulas, por constituírem entre o indígena a base do seu edifício moral e da sua organização social.

A nossa própria ideia de ordem nos leva a admitir essa conservação temporária; com efeito, em todas as formas de governo por mais avançadas que sejam, a ordem social, nos seus complicados aspectos, repousa sempre o medo ou o receio da incursão nas penas que por ela se estabelecem para os seus infractores.Na sociedade cafreal, embora sem lei escrita, a ordem baseia-se no medo do feitiço, que é a garantia da conservação do costume que nela representa a lei,conservada pela tradição.

Assim, falando de um modo geral, porque este trabalho não comporta nos seus limites um estudo detalhado don feiticismo, devo referir que nos serviços de justiça cafreal, chamemos-lhe deste modo, há feitiços destinados a descobrir e a castigar certos criminosos, muito especialmente nos crimes de furto e noutros que não são fáceis de descobrir-se entre os indígenas.

É evidente, neste caso, o sentido protector dos interesses dos membros da tribo, que assistiu à criação deste feitiço, perfeitamente equivalente à intuição da legislação sobre o furto nos meios civilizados, e compreende-se o recurso a essa forma imperfeita de descoberta e punição do crime pela possibilidade em que se encontram de empregar outra forma de descoberta do crime e de produção do formalismo de prova.

A minúcia do sistema chega, portanto, a originar a instituição de feitiços especiais para cada espécie de furto, cujo castigo em determinados casos atinge também os indígenas que possam prestar esclarecimentos e se neguem a faze-lo.É também por influência ou com intervenção de feitiços vários que se regulam as relações sociais da comunidade, tais como os costumes a que obedece o casamento,deveres relacionados ou resultantes deste estado, relações de família, relações entre famílias e entre tribos, até o ponto de a guerra e a paz serem decididas sob consulta dos feitiços respectivos.

As próprias relações comerciais com o branco, nas quais não é raro o “boycott” feito aos comerciantes europeus , fazem-se sob consulta e sob protecção dos feitiços próprios e mantêm-se o “boycott” pelo terror inspirado ao preto pelo feitiço, sob a guarde do qual se coloca a manutenção dessa decisão.Sabe-se também que,, na maioria das tribos pertencentes ao grande grupo étnico Bântu, a unidade da constituição da comunidade é a família e não o individuo , como acontece nas sociedades civilizadas.

Por mais aptidões que um indígena revele para o negócio, para a caça ou para qualquer outra forma de criar fortuna, não lhe é permitido, embora isso seja contra os seus desejos, acumular em seu próprio proveito o produto ou o rendimento do seu trabalho; tem, pelo costume, que reparti-lo com a família e, mesmo em alguns casos, com determinados indivíduos da banza a que pertence, com os chefes por exemplo, o que permite aos mais indolentes e aos incapacitados, até cero ponto,viver à custa dos mais activos.

Esta instituição de suporte da colectividade, que não deixa de possuir o seu fundo de moralidade, tem, além do prejuízo de evitar a formação da riqueza, o grande inconveniente de promover o génio gastador no indígena.Especialmente o semi-civilizado evita sofrer consequências deste costume de aos outros aproveitar o que conseguiu pelo esforço próprio, gastando, algumas vezes, num só dia,em bugigangas indivisíveis o produto do seu trabalho durante o mês.

Mas não só na condição material do indígena se manifesta esta feição colectiva da vida cafreal. Também quase sempre são colectivas as responsabilidades morais, e portanto nos direitos e deveres inerentes…

Acontece, portanto, que se um determinado indivíduo comete roubo ou assassínio,ou sofre quaisquer inconveniências na sua vida conjugal, considera-se ofendida toda a família ou o povo do autor da infracção. Está este costume perfeitamente reconhecido e inveterado nos hábitos cafreais e admitido por quase todos os sub-grupos étnicos do distrito, submetendo-se o gentio a esse regime, porque cada indígena reconhece nele, a um tempo, um sistema de polícia, um meio de defesa como parte nos pleitos em que possa achar-se envolvido, ou por escapar-se à acção
da justiça cafreal ou para obtê-la, conforme o caso…

 

VIAGEM AO BEMBE E DAMBA – Setembro a Outubro de 1912. In- NO CONGO PORTUGUÊS -Relatório do Governador do distrito, primeiro tenente de marinha, José Cardoso. Cabinda, 1913”

 

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