Viagem ao BEMBE E DAMBA em 1912 – Os habitantes

 

Por José Cardoso – Governador do distrito do Congo portugês em 1912 

 

OS habitantes
População – Características de diferenciação
Estado social – Condições de vida – Relações entre o gentio e a autoridade e o comércio – As quitandas.

São três os grupos etnográficos que se encontram ao longo do caminho que percorremos, distintos entre si por caracteres físicos e pelos hábitos, distinguindo-se ainda pelos modos e condições de vida, confundindo-se todavia pela sua organização social, que afecta uma feição extremamente rudimentar em todos eles.

São esses três grupos – os Mussurongos, os Muxicongos e os Muzombos.

Não possuindo profundos conhecimentos da técnica da etnografia,abandonamos o propósito de fazer a minuciosa descrição dos tipos a que vamos referir–nos, limitndo as nossas informações ao que eles têm de saliente, bastante para surpreender o leigo, a ponto de distinguir um mussorongo dum muxicongo e dum muzombo, e tornando as nossas observações minuciosas até ao limite em que essa minúcia interesse à administração, fornecendo os elementos necessários para orientação da acção da autoridade administrativa civil e militar, na condução da sua politica de assimilação do gentio, no seu aproveitamento e na sua transformação, em elementos úteis à comunidade e a si próprios, pela melhoria das suas condições sociais, gradual e sucessiva,consentânea com seu temperamento, hábitos e índice intelectual.

Encontram-se os mussurongos em toda a circunscrição de Santo António e em grande parte da circunscrição do Ambrisete, isto é, desde o rio Luê ( divisória de Santo António e Noqui) para oeste até à costa, ao longo desta para sul até o rio Loje, sendo o limite leste de Santo António, sensivelmente, a extrema oriental desta circunscrição, e no Ambrisete uma linha que passe uns 20 quilómetros, aproximadamente, a leste dos postos de ocupação do Tomboco e Bessa Monteiro.

Os muxicongos habitam toda a circunscrição do Ambrisete não povoada por mussurongos, a circunscrição de San-Salvador e o norte da capitania-mor do Bembe até as faldas da cordilheira da Quivoenga, não devendo considerar-se muxicongos os povos que se encontram para leste de do rio Fuleje e da parte do rio Mbrije, que corre no quadrante nordeste, e os povos sujeitos à jurisdição do Bembe, que ficam para leste do Lucunga.

Os muzombos ficam para leste de uma linha que reúna os rios Fuleje, Mbrije e Lucunga, tal como ficou indicado no período anterior ; povoam toda a circunscrição de Maquela do Zombo até ao rio Cuilo, limite oriental desta, o norte da capitania-mor da Damba, podendo considerar-se que estendem para nascente desta até ao rio Nzadi, e até a região da Mlanda, andando para sul.

Há ainda difenciação de tipos dentro destes três grupos. É todavia essa diferenciação evidenciada por minúcias que o carácter de generalidade desta informação comporta.

Os habitantes

População – Características de diferenciação. Estado social – Condições de vida – Relações entre o gentio e a autoridade e o comércio – As quitanda.

Dos povos que habitam o sul das capitanias do Bembe e da Damba pouco se sabe, acontecendo outrotanto em relação à região sueste do distrito que está sob jurisdição nominal da capitania- mor do Quango.

Ao sul do Bembe, desde 1875 que não se vai, sendo mesmo provável que nunca se fosse à Quivoenga , por isso que, no primeiro estabelecimento da nossa autoridade no Bembe, as comunicações com esse ponto eram feitas pelo Ambris passando-se pela Quibala, a a Quivoenga fica entre o Bembe e o Encoje.

O sul da Damba e o sueste do Quango também não consta que tenham sido visitados, pelo menos por pessoas a quem a observação desta natureza interessem ou impressionem.

MUSSORONGOS

Os Mussorongos são ainda hoje tipos dos melhores, entre os do Congo, sob o ponto de vista físico. Altos em geral, robustos, bem constituídos e de feições insinuantes, apresenta-se ao europeu com desenvoltura e altivez, são irrequietos, propensos à rebelião, tendo por mais duma vez causado perturbações de ordem difíceis de aquietar.

Pela sua vivacidade, inteligência e faculdades de compreensão, revelam uma grande propensão para aperfeiçoar-se nas suas aptidões primitivas e aquesição de outras novas. Vivendo em contacto constante com o meio húmido, já com as águas do Zaire que são um verdadeiro mar, já com as do Atlântico, foram sempre bons marinheiros de canoa.

No rio, usando a canoa gentílica vulgar, que utilizavam na pesca, nos transportes e principalmente na pirataria que exerceram com audácia até 1870, atacando embarcações de vela dos europeus, que a calmaria e a corrente faziam encostar à margem, chegando a sua ousadia a atacar e roubar essas embarcações, ainda mesmo quando guarnecidas com caronadas, como então era uso no Zaire; no mar, usando uma canoa composta pela reunião, borda a borda, de duas canoas ordinárias cosidas com lianas por forma a aumentar a estabilidade e que empregam ainda hoje na pesca.

Dão, portanto, óptimos marinheiros de leme e de vela, e trabalham também abordo, sem relutância nos serviços de fogo, encontrando-se hoje grande número de mussorongos tripulando embarcações de cabotagem, onde desempenham todos os mesteres, sendo já preferidos aos cabindas pelos armadores. Sendo óptimos carregadores, prestam serviço na alfandega de Loanda e de San-Tomé, para onde se contratam, sem relutância por períodos de um ano; trabalham também em serviços de obras públicas no distrito e em San-Tomé, de onde são muito procurados. Servem com repugnância em trabalhos agrícolas, sendo necessário compeli-los a isso, todavia com bons resultados, pois são sempre os mussorongos que se mencionam nas requisições de trabalhadores dirigidas ao Governo. Notando-se que há pouco mais dum ano que começaram a iniciar-se nesses trabalhos, é de crer que, gradual e sucessivamente, se vão habituando a esses serviços, que agora lhes repugnam, sobretudo depois de adquirirem a convicção de que o seu trabalho lhes será regular e razoavelmente retribuído , como está acontecendo.

Todas estas circunstâncias contribuem para que o espírito de rebelião tenda a desaparecer, especialmente nos mussorongos da antiga circunscrição de Santo António, que são os que se acham em maior contacto com a autoridade.

É porém muito conveniente e necessário não deixar de exercer, durante anos avir, uma acção de policia militar bastante vigilante, a fim de por completo desaparecerem as suas tradições de turbulência e essa vigilância nos habilitar a exercer uma acção mais directa sobre os povos do interior da circunscrição que ainda hoje se nos escapa…

(…) Como em toda a parte do distrito, são as mulheres que trabalham nos campos, onde só é cultivado o indispensável para um sustento miserável, sendo vulgar a fome nos anos em que o regime pluvial, já de si pobre, se afasta do estado social destes povos é bastante rudimentar, vivendo em regime patriarcal imperfeito, ligadas a diferentes família pelo conselho mucuruntos que, juntamente com os sobas, resolvem as suas contendas em fundações, nas quais o problema mais frequente é o das desinteligências conjugais.

Raras vezes aparece hoje o caso das condenações por feitiçaria, que em tempos não muito remotos atingia principalmente os indígenas que conseguiam distinguir-se dos outros por possuírem, mais do que eles, qualquer coisa, que era necessário ser distribuída pelos acusadores da feitiçaria, e por venda de mortos, que era um crime hipotético, reputado muito grave entre mussorongos, e que levava sempre o condenado por essa falta a uma morte horrorosa, cuja denuncia era quási sempre movida pela cobiça da partilha dos bens do acusado.

Actualmente os mussorongos recorrem à nossa autoridade quando querem fundar sobre assuntos que ela admite como plausíveis, sendo conveniente sustentar esta corrente que se mantêm, se a autoridade souber identificar-se com os hábitos mussorongos, resolvendo em harmonia com eles.

Hoje o mussorongo que vive mais perto da nossa autoridade já começa a ter coisas, em especial artigos do vestuário europeu, sendo frequente um carregador de tipóia, depois de chegar a um local de descanso onde tenha empenho em meter vista, tomar o seu banho e sacar da “burrinha”, um traje europeu que faz as delicias dos seus amigos na localidade, o que para nós tem a vantagem de constituir um incentivo para os que ainda não possuem boas roupas procurem o trabalho para adquirirem o requinte de luxo que ao mussorongo, amante de quitoco, é dado gozar entre os seus patrícios e em especial quando por suas terras passa a autoridade.

(…)  Ainda, como sendo um sintoma de grande tendência que o mussorongo tem para aperfeiçoar os seus hábitos, citarei o facto ocorrido no Quelo durante esta minha viagem. Por iniciativa do comandante deste posto militar, funciona ali há pouco tempo uma escola que é concorrida por pequenos da região, os quais à minha chegada vieram pedir-me fatos de calça, por isso que depois de saberem ler a mucanda entendem que não devem continuar a usar panos.

Poderá parecer à primeira vista que o registo destas minúcias é feito por mero interesse literário ou pela intenção, mais efémera ainda, de pretender colorir a minha relação de viagem com tons pitorescos berrantes. Não é assim. Todas observações interessam, julgo eu, se forem devidamente interpretadas e se forem bem aproveitadas, já para orientação da iniciativa das autoridades locais na transformação da sociedade gentílica, especulando sobre as tendências manifestadas pelo indígena, já pelo próprio comercio , o qual conhecendo essas tendências e predilecções, poderá lucrar sabendo delas tirar partido para as suas transacções de permuta, atraindo o género colonial ao mercado, pela oferta razoável de mercadoria de preferência ocasional. De resto, ao Governo interessa também que da permuta desapareçam o álcool e a pólvora com que os nossos antepassados começaram a negociar e que até há pouco mantinham com graves inconvenientes gerais, sobre os quais se me afigura desnecessário especular (1)

(1) A proibição da venda de álcool tornou-se efectiva no distrito do Congo no dia 30 de Junho de 1913, em virtude da portaria provincial nº. 302, de 26 de Março do mesmo. A proibição da venda da pólvora, no Congo, entrou em vigor pela portaria provincial nº. 797, de 3 de Julho de 1913, excepto no Enclave, por absoluta impossibilidade de aí se tornarem efectivos os seus efeitos, devido a não existir idêntico regime nas colónias vizinhas.

“ Infelizmente, não é o nosso comerciante muito dado a cogitações de raciocínio laborioso, só por excepção; e a maior parte das autoridades subalternas esquecem o importante papel que lhes pertence como elementos capitais da transformação do meio, e que, melhor que quaisquer outras entidades, podem exercer no convívio quotidiano com indígenas das cercanias da sua sede nas suas visitas aos mais distanciados dela, que mui raramente realizam.

… Não fogem os mussorongos dos sítios onde se estabelece autoridade. As povoações continuam marginando os caminhos ordinários por ela percorridos. Só notei que isso se desse nas proximidades de Bessa Monteiro, onde estão ainda na memória os actos de castigo praticados pela coluna do Quinzau de 1910, notando-se que aí se dá esse afastamento, não só porque tiveram de destruir alguns povos existentes nesses caminhos, como também porque se dá ainda o caso do indígena dessa zona se ressentir muito sensivelmente da influência do indígena do Ambris, como tive ocasião de dizer nesta relação.

…Concorre também para promover esse afastamento a prática de abusos cometidos pelos soldados e pelos cipaios, realizados quase sempre em nome do comandante de que dependem, e sem conhecimento deste, os quais são muito difícil de coibir.

A gora mesmo na minha viagem, dois soldados dos que me acompanhavam, tendo ficado na cauda da minha caravana, ousaram cobrar um imposto de galinhas, em um povo por onde passaram, invocando o meu nome.

(…) Não são de temer, hoje, sãs perturbações de ordem nos mussorongos, devido a não terem uma organização que lhes permita formarem grandes agrupamentos de resistência. Mesmo no Ambrisete, onde, durante anos, se conservavam aliados para evitarem a nossa penetração, mantendo o lucro que auferiam nas imposições que cobravam aos indígenas que vinham trazer negócio à costa, depois do estabelecimento do nosso posto e ocupação do Tomboco, nunca mais tornaram a constituir-se em fortes agrupamentos de resistência, muito embora por mais de uma vez tenham procurado criar embaraços à acção da nossa autoridade, chegando de uma das vezes a forçar quase que a rendição do forte pela manutenção de um cerco aturado que terminaria por um assalto, se não chegassem a tempo os reforços enviados para desbloquear a guarnição sitiada.

Os Muxicongos

Em tempos não muito remotos, usavam os muxicongos das cercanias do Bembe ir negociar ao Ambris com malaquite extraída por eles das minas  hoje em poder do Estado. Depois, eles próprios trabalharam nas minas por conta da Companhia inglesa que iniciou a sua exploração industrial. Serviam também como carregadores no transporte do minério para a costa.

Há poucos anos estiveram alguns comerciantes estabelecidos no Bembe, ocupando as ruínas dos edifícios em alvenaria construídos durante o período da primeira ocupação; não tinham, porém, com o fim de negociar com o gentio da região, por isso que ela não é rica em géneros de permuta que pagassem o seu transporte para a costa à custa do negociante. O estabelecimento do negócio europeu, ali, era movido apenas por uma razão de estratégia comercial.

Pretendia-se apanhar o comércio que do Zombo, Pombo e Sosso se dirigia para a costa, e nada mais. Não pôde porém , essa posição lutar com Maquela do Zombo, cujos negociantes efectuaram a ocupação comercial um pouco antes que nós realizássemos a ocupação militar.

O muxicongo da região que percorremos vive hoje, principalmente, de dar pousada e alimento às caravanas de negócio que trilham os caminhos do Bembe, sendo lucrativo explorar esses indígenas que chegam a alongar de 5 e 6 meses as suas viagens da Damba para a costa, viagem que fiz em onze dias …Essa demora é motivada por os carregadores se deixarem ficar durante tempos esquecidos, na bebedeira e na conversa, em todos os povos que vão atravessando.…

 Os muxicongos diferem o bastante dos mussorongos para se distinguirem deles à primeira vista pelo seu aspecto exterior: Mesmo o viajante mais despreocupado compreende facilmente a transição de uma para a outra das tribos.

Tem o muxicongo menor estatura que o mussorongo e um aspecto geral mais miserável, já porque é menos robusto, já porque é mais sujo e pior trajado do que aquele. Tem uma apresentação humilde que contrasta com a aparência altiva do mussorongo , e uma fisionomia denunciando menor agudeza de espírito. Há todavia bons tipos de muxicongos nos arredores de Noqui.

Outra característica de fácil distinção entre mussorongos é dada pelo exame dos dentes. Quase todos os muxicongos limam todos os dentes superiores da frente, dando-lhes uma forma aguçada, enquanto que os mussorongos que limam os dentes, que hoje são já raros, usam limar apenas os dois incisivos superiores centrais, formando um bordo convexo regular, deixando aos lados de cada um dos dentes limados um ressalto de altura igual aos dos incisivos não limados.

Vivem os muxicongos um pouco mais desafogadamente que os mussorongos, devido a ser o solo daqueles um pouco mais fértil que o destes, e, como lhes fornece mais material para a construção e de melhor qualidade, as suas cubatas são melhor construídas, mais espaçosas, contendo em geral dois compartimentos.

… Como entre os mussorongos, não existe nos muxicongos uma forte organização social, de modo que, embora essa tribo habite uma extensa área do distrito e seja maior a densidade da sua população, não é de esperar que venham a causar quaisquer embaraços em problemas de ocupação ou de administração pela razão indicada, bem como pela sua índole..

Em São Salvador estão perfeitamente apáticos e recebem sem a menor relutância as ordens da autoridade… Apenas os povos de Quimbubuje, em fins de 1910, fizeram um simulacro de resistência ao pagamento do imposto de cubata e os povos da Canda andavam até então alheados à acção da autoridade, pela simples razão de lá não irem os seus delegados efectuar os arrolamentos e cobrança. A ocupação de Quimbubuje, em Julho de 1911, acabou por uma vez com quaisquer pruridos de rebelião, aceitando a Canda, actualmente sem grande repugnância , as imposições da nossa autoridade regular.

Os povos da Vamba, ao noroeste do Bembe, estão mesmo seperados politicamente dos muxicongos do sul da capitania-mor, e desde 1908 que reclamavam do nosso Governo a montagem de um posto em suas terras, pois que atribuem ainda hoje a morte de um dos seus sobas a envenenamento propositado, feito pelos muxicongos do sul, depois duma viagem que esse soba fez ao Ambrisete, em que eles suposeram que o soba tinha ido vender o “chão” ao Governo.”

MUZOMBOS
“ É quase imperceptível a diferenciação física entre os homens muzombos e muxicongos, têm a mesma estatura, a mesma miudeza de feições e de proporções. Não acontece o mesmo com as mulheres que, tanto no muxicongo como no mussorongo, mal se distinguem do homem pelo que respeita ao sexo senão por serem mais franzinas e arruinadas.

São as mulheres do Zombo de apresentação mais feminina, conservando até tarde, a despeito do muito trabalho que produzem e da fecundidade da raça, as feições do seu sexo; têm uma adiposidade geral própria da mulher, o busto bem desenvolvido, os ombros, as espáduas, os braços e as pernas com um torneado perfeito e gracioso que os seus trajes simples na forma, mas complicados nos tons, deixam quase completamente a nu.

São, porem, prejudicados todos esses dotes, pelo que o meio da abundância permite às mulheres do Zombo, pela crassa estupidez que se desenha nos seus traços fisionómicos, onde não existe o menor vislumbre da mais rudimentar expressão de sentimento ou de raciocínio, e ainda pelas unturas de tacula e de amendoim queimado, que a moda as obriga a usar, bem como pela exalação forte do cheiro da quicuanga, de que andam impregnadas permanentemente, por serem elas quem prepara esse grande produto alimentício muito consumido tanto no nosso território como no território belga.

Em compensação, os homens têm uma fisionomia insinuante, um ar inteligente de grande vivacidade e esperteza, e são muito activos e desembaraçados. Vestem usualmente panos compridos, gostando muito de casacos de veludo preto agaloados, e nos dias de festa acrescentam ao seu vestuário um avental de pele de gazela.

“Vivem os muzombos em agrupamentos populosos em que uns ténues laços de tradição dão uma fraca autoridade ao soba, sendo o agrupamento patriarcal que prevalece. Todavia, existem clans, todos eles muito importantes pelo grande numero de famílias reunidas, pela forte densidade de cada uma delas.

“ Como quase em todo o Congo, a reunião do clan só em grandes problemas de ordem exterior tem lugar ou então em intrincados litígios entre família ou entre famílias; em todos os casos, como a índole desses povos é pacifica, convindo-lhes o estado de paz porque vivem em comercio activo, não há que recear da densidade da população que prevalece em toda a região do Zombo.

… A agricultura é exercida por mulheres e por rapazes, as indústrias pelos homens, e o comércio pelos homens e mulheres, em mercados, que tem ligar todos os dias em lugares relativamente próximos, mas diferentes em cada dia, repetindo-se todos quatro dias no mesmo lugar.

E esses mercados chamam “quitandas”, nome que hoje se aplica por toda a parte dos mercados gentílicos. Sendo o comércio a feição principal da vida do muzombo, a contagem do tempo é regulada pela periodicidade das quitandas, tendo que como uma semana de quatro dias, cujos nomes são, respectivamente, mpangala, konso, nkenge e nsona, e em relação aos quais fazem todas as suas referências de tempo, indicando-se este pelo número de quitandas, sempre que um intervalo de tempo a designar excede quatro dias. A própria autoridade regular faz as suas intimações indicando o número de quitandas a decorrer até ao dia da sua execução.

Sendo bastante curioso o espectáculo oferecido por uma quitanda do Zombo, procuraremos dar uma pequena ideia do que é um mercado desses. Estabelecem-se as quitandas em pontos elevados, em geral nos cruzamentos dos caminhos para os povos, em lugar sombreado por árvores desenvolvidas de larga copa e densa ramaria, escolhidas especialmente para serem plantadas nos locais mais apropriados para a quitanda.

O chão da quitanda é liso e sem vegetação, proveniente da frequência do piso e do amontoamento dos despojos e desperdícios do negócio, que, ao formar-se a quitanda, se dispõe em amontoado regular, em fileiras, sobre as quais se faz a étalage dos artigos para venda, de modo que abandonada a quitanda fica-nos á vista uma extensa superfície de lixo em ondulado gracioso. A vinte minutos da quitanda, e às vezes a mais, apercebe o viajante o borborinho confuso do vozear de milhentas vozes de mercadejantes e compradores.

Em Pangala Zombo, a quitanda mais importante cujo funcionamento presenceamos , a três horas da nossa administração de Maquela do Zombo,vi reunidas não menos de 3.000 pessoas, onde todos podem considerar negociantes, pois todos levam ao mercado o que têm ou que produzem, para obterem o que carecem, muitas vezes sem ser para uma aplicação imediata,mas para servir de meio de troca por um produto que só apareça em outra quitanda. A transacção por meio de moeda só se realiza nos casos em que não dá o encontro dos objectos preferidos pelos dois permutadores, sendoentão a moeda principal o cobertor, um pequeno cobertor de algodão, que não serve para tapar, e cujo valor aproximado é de 24 centavos, e a moeda para trocos a missanga de vidro azul, que vale aproximadamente, 5 milavos cada uma e que trazem em enfiadas contendo, cada uma, proximamente, o valor de meio cobertor.

Embora a primeira impressão, que a quitanda nos oferece seja o de um mar ondulante e ululante onde mal se distingue um vislumbre de ordem ou de método, um exame mais detalhado, facultado pelo passeio através da quitanda, mostra-nos o contrário , sento até fácil ao freguês habitual do mercado dirigir-se rapidamente para o lugar próprio onde encontrar os géneros que carece.

Com efeito: estão agrupados por classes de géneros e de mercadorias os vários negociantes, encontrando-se enfileirados a um lado os vendedores de mandioca em raiz, em fuba, em farinha e em quicuanga.; a seguir, os vendilhões de verduras com molhinhos de folhas de hortaliça fiote, manchinhas de jimboa, de folha verde de mandioca, migada com que fazem o apetecido esparregado conhecido pelo nome de “saca folhas”, o feijão verde, na vagem; mais adiante, como que nos talhos, onde se vende o cabrito morto, amanhado, a carne, a carne de porco retalhada e a tripa fresca, ainda recheada com os detritos da última digestão do anho ou do suíno sacrificado ao negócio, manjar tão apetecido pelo indígena para o seu afamado guisado conhecido por mozongué; mais adiante, os vendedores de milho, uns com ele em maçaroca verde, outros com maçaroca seca, umas descamisadas, outras por descamisar; acolá, o milho descarolado, mais além o milho pilado, depois o feijão seco e sem vagem, o sal em pequenos montes sobre folhas de bananeira, folhas de tabaco em rolos, o rapé em pequenos tubos de bambu.

Aparecem depois as fazendas de algodão de proveniência europeia, os cobertores, os fatos feitos para mulheres segundo o traje característico, casacos de veludo para homens, os aventais de pele, as esteiras e quindas, a pólvora, o fulminante e as espingardas.

Não faltam os vendedores de bebidas e petiscos, aqueles com o frasco de genebra de preto e com as suas cabaças e sangas repletas de vinho de palma fermentado, e por fermentar, a garapa, estes com os seus guisados de feijão, e os pães de infunde para satisfazer os apetites estimulados pelo ar fresco das manhãs do Zombo, impregnado pelas apetitosas emanações dos produtos da culinária local; vende-se também ali azeite de palma e as muambas já cozinhadas , também carne cozinhada , rato assado, peixe frito miúdo, espetado em enfiadas de bambu .

A jinguba pelada e por pelar, crua e assada, o coconote, o azeite de palma e as muambas já cozinhadas, também ali se encontram com fartura..”

Há também os vendedores de malungas para homens e mulheres e não deixa de ser pinturesco assistir ao enfiar desses adornas nas pernas das mulheres, que passaram o ano de privações a fazer as necessárias economias para possuir a jóia apetecida com que fazer o desespero da vizinhança feminina ao regressarem da quitanda à banza a que pertencem.

As olarias, os feitiços e amuletos vários, alguns objectos de utilidade doméstica e alguns de luxo cafreal, ali estão também expostos à venda. Uma curiosa miscelânea de vida cafreal com os cacos da civilização europeia. Não é raro aparecer o cura maleitas, o tira bichos, e os prestidigitadores e domesticadores de macacos a amenizar aquela cena de vida, já de si animada pelas múltiplas combinações de negócio que ali se efectuam, e para distracção dos ociosos que vão às quitandas matar o tempo como simples mirones.

… Em tempo, até os escravos estavam à venda nestas quitandas; Pena é que, por desconhecimento do valor do trabalho e pela desnecessidade de procurar obter um juro para os seus esforços, não procure o gentio produzir géneros de negócio em excesso para as suas necessidades, promovendo a riqueza da região.

Convém também notar que, depois do nosso estabelecimento no Quibocolo e na Damba , já o dinheiro circula nas quitandas próximo destes dois postos, o que em Junho de 1911, quando pela primeira vez estive ali, não acontecia.

(…) Pela sua docilidade, pacifismo dos seus hábitos e propensão acentuadamente marcada para o negócio, que acabo de patentear na sucinta descrição feita, é natural de explicar-se a boa harmonia existente entre muzombos e europeus quer de comércio quer de autoridade.

“ In- NO CONGO PORTUGUÊS. VIAGEM DO BEMBE E DAMBA – Considerações relacionadas. Relatório do Governador do distrito, primeiro tenente de marinha, José Cardoso

Cabinda 1913.

 

 

 

 

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