15 de março de 1961: A UPA e a revolta no norte de Angola

Os acontecimentos que abalaram o Norte de Angola em 1961 representaram um ponto de não retorno na perceção do que se passava nas colónias portuguesas e nas relações entre colonizadores e colonizados. Por Maria da Conceição Neto.

Se antes de 1961 teria sido possível imaginar outras soluções, nesse ano ficou definitivamente afastada uma transição pacífica para a independência (entre aqueles que a defendiam), e foi destruído o mito da harmonia racial e da paz social nas colónias (para os que queriam acreditar nisso, a despeito de todas as evidências).

A revolta dos camponeses da Baixa de Kasanje, duramente reprimida pelo exército em fevereiro, não teve muito impacto fora da região. Já os ataques de 4 de fevereiro às prisões de Luanda, na tentativa de libertar os presos políticos, imprimiram a marca “nacional” à luta anticolonial e abriram a primeira grande brecha no muro de silêncio que rodeava as colónias portuguesas. Mas foi a violência e amplitude da revolta de março no noroeste de Angola que levou Portugal à guerra.

O “15 de Março” não durou um dia nem um mês. Apenas a 9 de agosto, quando o exército retomou a última vila ocupada (e abandonada) pelos insurretos, Nambuangongo, nos Dembos, pôde considerar-se militarmente dominada essa fase da revolta, que pusera em cheque o domínio português numa área de mais de cem mil quilómetros quadrados. O governador de Angola deu então por terminada a guerra, mas ela tinha apenas começado.

Este é um daqueles casos em que o conflito de memórias e a reivindicação da “verdade histórica” não parecem esmorecer com o passar do tempo. A informação disponível é vasta, mas extremamente desigual, e isto por diversas razões: a extensão e características do território atingido e das populações revoltosas; a grande difusão de versões usadas pela propaganda colonial, desprezando o contexto e as causas da revolta; o predomínio quase absoluto, na historiografia, das fontes portuguesas, civis e militares, mais ou menos afetas ao regime colonial; o relativo apagamento do “15 de Março” do lado angolano, após a Independência, devido a rivalidades partidárias mas, também, a fatores psicológicos relacionados com a extrema violência da revolta e da repressão que se seguiu.

A bibliografia existente permite, ainda assim, traçar um quadro dos acontecimentos. A ocorrência de episódios similares, mas distantes entre si centenas de quilómetros, em plena época de chuvas, numa região de difíceis comunicações, desde logo revela preparação e coordenação, contra as teses, hoje abandonadas, de um levantamento espontâneo de camponeses e trabalhadores das fazendas,ou de uma reação em cadeia provocado por um incidente numa remota fazenda de café.

O “15 de Março” foi da responsabilidade da União das Populações de Angola (UPA), liderada por Holden Roberto a partir do Congo-Léopoldville (atual República Democrática do Congo), embora nem todos os revoltosos pertencessem à organização. A sublevação inicial abrangeu o chamado “Congo Português”, maioritariamente habitado pelos Bakongo, fortemente cristianizados por missões católicas e batistas, e estendeu-se também pela região dos Dembos, parcialmente de língua kimbundu e com grande influência das missões metodistas. Muitos dos que não participaram inicialmente acabaram envolvidos na revolta, ou foram obrigados a refugiar-se nas matas, para fugir à violenta e indiscriminada repressão que se seguiu.

A UPA terá infiltrado pela fronteira alguns homens treinados, usando armas de repetição, mas na maioria dos casos tinha mobilizado camponeses cujas armas foram os instrumentos de trabalho (sobretudo catanas) e de caça (canhangulos, armas de fogo rudimentares). No dia combinado (e nos dias seguintes), bloquearam estradas e lançaram-se ao assalto de fazendas, postos administrativos e vilas, tudo o que na região representava o domínio português. Não foi uma revolta amadurecida e precedida da consciencialização política ao estilo da guerrilha revolucionária. O objetivo era claramente anticolonial e inspirado nas independências das colónias vizinhas, mas o colonialismo era um conceito abstrato.

A liberdade (kimpuanza), numa doutrinação com rasgos de messianismo (a invocação de Lumumba, a convicção da proteção sobrenatural contra as balas), passava pela liquidação, sem piedade, de todos os brancos e mestiços (portadores da “marca” do branco) e dos negros que fossem considerados seus aliados. Centenas de brancos (e um número maior e indeterminado de mestiços e negros) foram mortos nos ataques dos primeiros dias, sem distinção de sexo ou idade. Quando os colonos portugueses retaliaram, o que se passou foi outra vaga de violência cega, agora contra negros, que deixou dezenas de milhares de mortos, incluindo em zonas onde não tinha havido qualquer sublevação. Famílias foram dizimadas e aldeias inteiras desapareceram. No final de 1961, a ONU contabilizava 200 mil angolanos refugiados no Congo-Léopoldville, e outros tantos andariam escondidos nas matas.

Os extremos de violência racial, de ambos os lados, explicam-se observando a realidade social dessas áreas de produção de café. No distrito do Uíje, uma das zonas mais afetadas, entre 1950 e 1960, a imigração de portugueses tinha aumentado cerca de 500 por cento (de 609 para 4555, segundo os Censos oficiais), mais rapidamente do que em qualquer outra região, incluindo as tradicionais zonas de povoamento europeu mais a sul. Às expropriações e roubos de terras, impostos, mão-de-obra forçada e a discriminação do Estatuto dos Indígenas, comuns a toda a Angola, juntou-se o impacto negativo dessa nova colonização.

Esses colonos, por sua vez, maioritariamente fugidos da pobreza em Portugal e alheados da política internacional e dos ventos de mudança em África, estavam em território que mal conheciam, beneficiando da superioridade que a discriminação racial lhes concedia, mas temerosos do número muito superior de negros que os rodeavam. Na reação aos ataques de 15 de março dividiram-se entre a fuga e o espírito de vingança, alimentado pelas autoridades que, numa primeira fase, não tinham meios militares para cobrir a região.

É hoje consensual que o “15 de Março”, coincidindo com a discussão sobre Angola na ONU, não foi totalmente inesperado. Salazar teve avisos suficientes para tomar medidas preventivas que não tomou, fosse por duvidar da informação ou por querer tirar vantagem da comoção nacional que um episódio de violência anticolonial desencadearia. Mas ninguém previu a dimensão e as características dos ataques, nem mesmo a UPA, que só dias depois assumiu a paternidade da ação.

Quase imediatamente, começava do lado português a maior operação de propaganda de toda a guerra, com o recurso a fotografias das chacinas feitas pelos revoltosos. Fotos dessas foram exibidas na ONU, estiveram expostas ao público na Sociedade de Geografia de Lisboa e noutros locais, foram amplamente usadas em livros, panfletos, filmes, etc. Foram também expostas em Luanda em 1968, e continuam até hoje a ser as imagens mais frequentemente associadas aos acontecimentos de 1961.

Por seu lado,o líder da UPA (que em 1962 se uniu ao Partido Democrático Angolano para criar a FNLA, Frente Nacional de Libertação de Angola) cedo difundiu versões contraditórias dos acontecimentos, algumas completamente irrealistas, para construir a história mais adequada ao protagonismo e aos apoios que a UPA queria obter. Na fase final da sua vida, numa Angola já independente e sem guerra, uma outra narrativa se impôs como a “história oficial” da UPA-FNLA através da sua quase autobiografia (N’Ganga, 2008).

Holden destaca a organização militar da rebelião, sob inspiração direta de Franz Fanon e com apoio dos tunisinos da Missão da ONU no Congo-Léopoldville, que teriam ajudado a treinar 400 homens, cuja infiltração em Angola teria começado no final de 1960. A senha que permitiu a simultaneidade das operações era: “A filha do sr. Nogueira vai casar em 15 de março.” Quanto às atrocidades cometidas durante os ataques, lamenta-as e atribui-as à inexperiência da liderança, à rapidez dos acontecimentos e à dureza da realidade quotidiana.

O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), organização rival da UPA-FNLA até à Independência, teve sempre uma relação ambígua com o “15 de Março”. Na década de 1960,os seus dirigentes reconheciam a coragem dos revoltosos, mas atribuíam à má liderança da UPA os erros cometidos. A questão difícil para o MPLA era que uma parte dos seus militantes e guerrilheiros tinham estado de algum modo envolvidos com a UPA nas ações de março de 1961.

Fugitivos dos Dembos, como o Reverendo Domingos da Silva (vice-presidente do MPLA a partir da Conferência de 1962 que elegeu Agostinho Neto como presidente), falavam de uma insurreição prevista, na sequência do 4 de fevereiro e independente da UPA, apenas antecipada e associada a esta por conveniência da ação. Não há confirmação disso, mas muitos testemunhos de antigos combatentes comprovam a ligação temporária de elementos do MPLA aos grupos da UPA, tendo alguns reatado os laços com o MPLA e permanecido na chamada 1.ª Região Político-militar.

Décadas depois, o “15 de Março” continua a suscitar reações, comentários e polémicas. Do lado português, por cada intervenção de um investigador que procure contextualizar os ataques da UPA, há inúmeras reações na Internet (e não só) recusando ver nos acontecimentos mais do que “barbárie”, “bestialidade”, “terrorismo”, etc. Se possível, incluindo os detalhes escabrosos das famosas fotografias, confirmando a sua função de “despolitizar o massacre e desumanizar o inimigo, concentrando-se no como do ataque e nunca no porquê, desligando-o do contexto de quaisquer ódios acumulados ou violências políticas” (Ramos, 2014: 409).

Do lado angolano, a situação é diferente, desde logo pela legitimidade fundamental atribuída à luta pela independência, mesmo com ações de brutal violência. Veja-se como a catana, instrumento convertido em arma letal, que no imaginário colonial português evoca o “terror selvagem” de 1961, foi desde o início glorificada e colocada na bandeira de Angola, simbolizando os camponeses e a luta armada de libertação nacional. Porém, também não é consensual o tratamento dado aos acontecimentos de março de 1961. Depois da independência, o MPLA nunca impôs uma narrativa do “15 de Março”, ao contrário do que fez com o “4 de Fevereiro”. As intervenções públicas sobre a data relacionavam-se mais com críticas à UPA-FNLA, ou críticas ao colonialismo, do que com os acontecimentos em si. Pouco a pouco, o “15 de Março” foi-se apagando dos discursos oficiais. A FNLA, por seu lado, exigiu sempre o reconhecimento do “15 de Março” como o momento inicial da guerra pela Independência, o verdadeiro “início da luta armada de libertação nacional”. Considerando que essa é a designação há muito atribuída ao “4 de Fevereiro” pelo MPLA, as hipóteses de o “15 de Março” receber tal designação são muito remotas.

A discussão acabou por se polarizar na questão do feriado nacional (que existiu em 1975, com o Governo de Transição). Dada a integração da FNLA no sistema político multipartidário (1992), no final da década de 1990 a celebração do “15 de Março” parecia ser consensual, mas o braço de ferro a respeito do nome a dar-lhe fez recuar o processo. Na atual “Lei dos Feriados Nacionais e Locais e Datas de Celebração Nacional”, proposta pelo MPLA e aprovada em 2011 com os votos contrários de toda a oposição, o “15 de Março” é apenas uma das datas “de celebração nacional”, como o Dia da Expansão da Luta Armada de Libertação Nacional, com direito a cerimónias oficiais. Foi um avanço em relação à legislação anterior, mas não satisfaz os que reivindicam a dignidade do feriado e uma posição não inferior à do “4 de Fevereiro”.

A dificuldade do reconhecimento do dia 15 de março como uma data a celebrar não deriva apenas de um velho conflito partidário. É preciso entendê-la também em função da memória que diferentes setores da sociedade angolana têm dos acontecimentos de 1961. E lembrar que ainda não desapareceu a influência da narrativa colonial dominante, repetida até à exaustão por uma máquina de propaganda cujo impacto é hoje difícil de avaliar por quem não viveu esses tempos.

Fonte: Esquerda

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