O povo da Damba foi vítima de um fogo cruzado entre a UPA e os colonialistas portugueses

Colonos portugueses na Damba, festejando a victória, depois de ter resistido a cinco ataque da Upa, em Junho de 1961. Imagem Martins Morais.

Por Miguel Kiame

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Decorria o ano de 1961. De todos os lados, se recebiam os sinais de que qualquer coisa não estava bem. Embora crianças, dávamos conta da atmosfera densa que se vivia. Não sabíamos o que exactamente se tratava mas a evidência do mau agouro era tão intuitiva que os mais velhos eram incapazes de escamotear a dura realidade que se desenhava no horizonte. Uma vez, depois de uns cochichos trocados entre o meu pai e alguns amigos seus, reparei que ele se dirigiu para o interior da casa. Senti também que ele não estava bem, parecia flutuar num vazio pútrido, não conseguindo esconder o seu inconformismo. Alimentado pela curiosidade que a situação estava a criar, fui, sorrateiramente, atrás dele e descobri que, fechado no quarto, estava a destilar lágrimas de fel, com soluços intermitentes. Fui apressadamente avisar os meus irmãos que, por sinal, já dominavam a situação e me disseram que aquela atitude do pai resultava de um aperto do coração face ao recrudescimento da situação político-militar.

A conversa que meu pai acabara de ter com os seus amigos era no sentido de colher consenso relativamente à postura a assumir face ao clima de verdadeira erupção sísmica que se avizinhava. Uns defendiam a fuga para a vizinha República do Congo, outros a integração nas fileiras da UPA e um terceiro grupo que se distanciava dos primeiros, vale dizer, nem ir ao Congo, nem integrar-se na UPA. Pelo que me foi dado a conhecer, mais tarde, meu pai integrava o último grupo.

Os dias foram passando e, pouco tempo depois, nos apercebemos que nas áreas circunvizinhas da sede municipal, a situação era mesmo já de total alvoroço, com visos de guerra iminente. O meu pai estava inerte, parecia argamassa. Perdera a imaginação e audácia para encontrar a solução. As noites passaram a ser rastros de medo e de uma eternidade horripilante. Era um dilema insolúvel. Ir ao Congo com a carga de filhos menores que tinha, por um lado, e o medo de ser decapitado pelos homens da Upa, por outro lado.

Este era o dilema.

A Sanzala Saúde era um aglomerado habitacional constituído, grosso modo, por funcionários da Saúde, uns poucos da Administração colonial e outros tantos empregados dos comerciantes. Por este facto, o embaraço que nós vivíamos em casa, era transversal à maioria das famílias. Portanto, as comunidades circunvizinhas da Vila sofreram, duplamente, por ocasião do Março da UPA, porque estavam, na realidade, debaixo de fogo cruzado. Para a UPA eram consideradas de aliadas dos brancos ao passo que para os brancos eram tidos como terroristas.

A nossa sorte repousou nas mãos do senhor padre Camilo, missionário de nacionalidade italiana, verdadeiro homem santo de Deus. Nas circunstâncias em que nos encontrávamos de guerra declarada, o mais fácil para ele seria pegar no carro e ir a Luanda a espera que a situação se resolvesse, como aliás aconteceu com as irmãs da Misericórdia, da Missão Feminina da Damba. No limite, poderia ainda refugiar-se na residência do Administrador do Concelho onde estavam acantonados os comerciantes colonialistas e alguns angolanos abertamente identificados com a causa colonial. Padre Camilo, muito atento ao sofrimento do seu povo, não teve meias medidas para se impor a todos, de peito aberto, com o intuito de salvar o maior número possível de pessoas. Foi assim que decidiu acasernar-nos na Igreja da Vila.

Éramos perto de uma centena de pessoas, entre crianças e adultos. Só um santo da dimensão do padre Camilo, missionário destemido e dotado de um estoicismo e uma empatia invulgares seria capaz de enfrentar aquela dupla batalha campal: de um lado, os homens da Upa, e do outro, os colonialistas sequiosos da manutenção do estado salazarista, a ferro e fogo. O frade capuchinho estava preparado para ir até às últimas consequências e se necessário fosse pagar com a própria vida.

Dias antes da tomada da histórica decisão pelo sacerdote, um vizinho nosso do Bairro Saúde, fora sequestrado pelos colonialistas, a partir da igreja da missão, em plena celebração eucarística matinal. Tomamos conhecimento mais tarde, que fora friamente executado, a caminho de Maquela do Zombo. A mesma sorte estava também a ser urdida pelos comerciantes e autoridades administrativas coloniais para o meu irmão. Aliás, se não fosse a pronta intervenção do Padre Camilo ele teria sido sequestrado pelos mesmos que vinham nele um perigo iminente: um homem terrorista e por cima professor de posto diplomado, constituía, na óptica dos colonos, um risco a não subestimar.

Viveu-se um período de debandada total, caracterizado por tormentos intermináveis que não davam folgas a ninguém.

Um ilustre professor da Missão Católica, aliás o primeiro professor da Damba, diplomado pela Escola de Habilitação de Professores de Posto, no Cuima – Huambo, conheceu idêntico destino. O docente dirigia-se ao Nsala Mbongi, com o intuito de recolher a família e juntar-se ao grupo na Igreja da vila. Caiu numa emboscada da Upa e, imediatamente, feito troféu de guerra. Fora executado com um requinte paranóico por indivíduos que se diziam libertadores de Angola. Este foi o presságio de que esse grupelho não iria a lado nenhum. O presente está a testemunhar essa derrocada com infindáveis guerras intestinais de políticos de cuja geração está em extinção.

A Igreja da Vila foi a nossa casa comum. O seu pequeno pátio, cercado de arame farpado, qual campo de concentração nazi, era o recinto para as brincadeiras, era também a cozinha comum das nossas velhas, era a lavandaria geral, era o local onde, em determinadas alturas do dia, apanhávamos banhos de sol após a queda das chuvas copiosas e frias que caracterizam a Damba nos meses de Março e Maio. A vivência na Igreja foi uma experiência extraordinária. Famílias dos mais variados quadrantes e hábitos juntaram-se num único e pequeno espaço para as mais simples e complexas rotinas da vida humana. Para os petizes o problema não se colocava porque a capacidade de adaptação a novos ambientes e conjunturas processa-se a um ritmo vertiginoso. Contudo, para os adultos, donos do seu nariz, com hábitos já cristalizados, o local era uma autêntica masmorra.

O Padre João Pedro foi assassinado, em 1961, por imprudência própria !

O clima de guerra real estava instalado e com ele o nível elevado de periculosidade e instabilidade. A qualquer momento, o inesperado poderia acontecer. Não estava fora de cogitação a possibilidade de um ataque relâmpago e em massa com consequências gravíssimas para a nossa integridade física. Foi assim que a menos de 48 horas do nosso acantonamento, eis que ecoa o primeiro grande alarme de ataque irreversível por parte dos combatentes da UPA. Internamente, haviam sido tomadas todas as prudências. A nave tomara uma moldura difusa, muito por causa da penumbra que subitamente a envolvera. Notava-se uma agitação fora do normal. Padre Camilo entabulava uma conversa com o seu confrade, Padre Pedro João, que se adivinhava carregado de muita veemência, desalento e desconsolo. A gesticulação denotava um tom desesperadamente determinado por parte do padre Pedro João. Estavam em jogo dois pontos de vista contraditórios de encarar a realidade que se avizinhava. Padre Camilo propunha-se fechar liminarmente a porta e tudo o resto entregue à Providência Divina. Diversamente, Padre Pedro João alimentava a decisão de se colocar um tampão no átrio da Igreja, composto de alguns voluntários com alguma experiência em lides militares, com intuito de dispersar e defender uma eventual incursão da UPA na Igreja, o que, de per si, se afigurava absolutamente catastrófico. O sacerdote, a margem dos rudimentares princípios de segurança, colocou na testa um farolim para focar a distância oposicionamento do bando da UPA. O procedimento adoptado pelo clérigo adequa-se para uma faina com visos de caça animal mas nunca numa operação militar e em pleno teatro de guerra. Ao fazê-lo criou, ele próprio, o alvo fácil, em noite escura. Em poucos minutos, frei Pedro João foi vítima de uma decisão tão sem aviso: um projéctil fulminara-o, perfurando-o a testa onde justamente colocara o farolim.

O tiro mortífero fez eco no salão e na mente de cada um dos seus ocupantes. A princípio e por breves instantes, foi o silêncio metálico, logo a seguir violado por histéricas gritarias, provocando o pânico generalizado, suor, sufoco e angústia. A oração que estava em curso foi interrompida. Padre Camilo transfigurou-se. Derramou incontidas lágrimas de dor e tristeza. Algo obscuro e difícil de entender e aceitar estava a acontecer. Cada um a sua maneira, exteriorizava a dor e o desespero. A exasperação de tanta gente cuja responsabilidade pendia nos seus ombros tornara a atmosfera turva com proporções insustentáveis. Mas logo assumiu-se, no seu papel de líder, não se deixando abater pelo infortúnio. Tratou de tranquilizar o povo e encomendar a alma do confrade ao Criador. Tão rápido quanto o estado de desconforto irrompera se conseguiu recompor da aflição.

Transportou-se o cadáver para o interior da nave onde esteve em câmara- ardente, noite adentro.

Todos os cenários de aflição, de sensação de impotência e de elevados sentimentos de desespero navegavam de forma intensa e lancinante em cada um de nós mas jamais se levantara a hipótese da morte de um dos Homens de Deus aí presentes. Perante a crueza e dureza dessa realidade ficou mais nítido o desfecho da nossa desgraça colectiva. Nessa noite, ninguém pregou o olho.

Rezou-se e chorou-se até a exaustão. Dia seguinte, a preocupação foi cavar a sepultura mesmo por trás da igreja, executar-se o caixão e, finalmente, no meio da tarde, numa cerimónia extenuante e sofrida, o enterro.

O trágico acontecimento obrigou Sr. Padre Camilo a organizar o baptismo colectivo para todas as crianças que ainda careciam desse sacramento.

Morrer, sim, mas na graça de Deus. Fui um dos felizes contemplados nesse sacramento de iniciação cristã.

A nossa rotina diária começava com a participação da missa matinal, finda a qual as mamãs se apressavam a preparar o pequeno-almoço que era imediatamente devorado. Para nós, os miúdos, estava aberto o campo para as mais variadas brincadeiras. A percepção que tínhamos da situação, cuja indiferença tocava os limites do absoluto, permitia-nos estar a vontade e preencher o tempo na maior das quietudes. O futebol foi sempre a modalidade rainha. A meio dia, a nossa actividade lúdica era interrompida para que rezássemos o “Angelus”. À tarde, prosseguíamos até por volta das 17 horas, altura do toque do recolher.

A beleza da vida do adolescente reside no facto de viver profusamente. A fronteira entre a normalidade e o perigo é bastante ténue. Então, todos nós comprazíamo-nos nessa embriaguez porque a mesma embriaguez também nos protegia da crueldade dessa realidade tão atroz. Vivíamos completamente a leste de toda essa amargura que endoidecia os nossos progenitores e o abnegado padre Camilo que tinha sob os seus ombros o peso de mais de uma centena de vidas confinadas numa pequena igreja.

Estávamos em tempo de conflito em fase aguda e, frequentemente, tocava a sineta que nos sacudia num relâmpago de pânico.

– Ataque, recolher!

E lá íamos todos, de súbito, a entrar pela igreja adentro, numa confusão que lembra a torre de Babel. Se o toque fosse accionado próximo da hora da refeição, a baralhada era pior. Pessoas a entrar com panelas a ferver, comida por cozer, roupa por lavar, tudo por fazer. Nessas ocasiões, um vento quase sobrenatural fazíamos sair das nossas órbitas e aí sim, reconhecíamos que, na verdade, estávamos em tempo de guerra. Até agora indago-me a que se deviam aqueles comportamentos ordeiros de adultos e crianças. Quando chegasse a hora do toque da sineta, anunciando um ataque iminente, todos ficavam quietos. As convulsões intestinais próprias dessas alturas esfumavam-se, a ronha das crianças mimosas e respectivas choradeiras desapareciam. Só uma voz, distante mas presente, grave mas perceptível a dimensão da nave, se fazia ouvir. Sua postura imperturbável era igualmente presente e visível.

Não estava dominado pelo rancor de qualquer espécie, mas paralisado pela responsabilidade que o momento impunha. Então, com a sua voz angélica, convidava todos a oração.

– Meus filhos, vamos orar.

Com o fervor que o momento impunha, encomendávamos as nossas almas ao Criador, por intercessão da Virgem Maria, Mãe da Igreja Católica. A nave enchia-se de ardência espiritual e o barulho de canhangulos e gritos histéricos de guerrilheiros era abafado por cânticos e melodias angélicas que embalavam as crianças que minutos depois dormiam sonhando com o coro celeste.

Geralmente, quando o alerta coincidisse com a hora crepusculina, depois de embalados e vencidos pelo sono só assustávamos quando já a claridade do novo dia invadia a nave. Já novo dia, ressurgíamos das cinzas com uma vitalidade fortalecida, como se nada tivesse acontecido na véspera. E lá estávamos nós novamente no folguedo.

Com o passar do tempo, os adultos que partilhavam connosco o acantonamento na simbólica igreja da vila, passaram a ser requisitados para execução de alguns trabalhos camarários, a saber, enterrar os mortos, capinar a principal artéria da vila e áreas circunvizinhas. Todo esse trabalho era feito sob estreita vigilância dos representantes da máquina colonial que aliás eram os responsáveis pela requisição do pessoal. Por isso, para salvaguardar a integridade física dos mesmos, o senhor padre Camilo jamais poderia estar ausente, sob pena de a maior parte ser dizimada pelos colonialistas. A confiança já havia sido esfumada da névoa da sua memória, tal era a gana que alimentavam aqueles espíritos sanguinolentos.

No fragor da batalha, depois de diagnosticada alguma capacidade interventiva do pessoal da Upa pelas autoridades coloniais, estes não tiveram outra alternativa senão introduzir a aviação e tropas regulares do exército. Mas antes do aparecimento das tropas de infantaria, a população autóctone sofreu as mais sórdidas condições, chafurdando na indignidade da morte. A aviação utilizava aparelhos de pequeno porte e com nítida facilidade de manobra.

Giravam pelas aldeias a procura de qualquer vivalma que tentasse movimentar-se. Mal deparassem com as populações, o avião ia apanhar o balanço e altura e logo num movimento descendente voltava em direcção ao alvo e há poucos metros do solo levantava o voo e largava os mortíferos artefactos que por detrás do seu trovão semeavam a morte e a desolação das pacatas populações cujo crime era o facto de simplesmente terem nascido em Angola e não se identificarem com os ideais salazaristas.

Volvido algum tempo, apareceram os primeiros batalhões da tropa colonial.

Diga-se, em abono da verdade, que havia muitos militares portugueses que não se identificavam com a guerra colonial, manifestando uma autêntica postura jovial e primaveril enquanto outros se comportavam como autênticos verdugos, geralmente de tez sisuda e olhar permanentemente desconfiado. Os batalhões que integravam cabo-verdianos não se livraram de uma justa reputação de verdadeiros algozes.

Certa vez, um comerciante dirigiu-se ao soba do Kinteka para solicitar a cedência de alguns miúdos para trabalho infantil, no caso, seria a separação da ginguba da respectiva casca. O soba, a contragosto dos progenitores das crianças, angariou cerca de uma dezena delas que colocou na carrinha do comerciante para o trabalho infantil não remunerado. A miudagem estava muito alegre com a escolha, não por causa do trabalho ou eventual remuneração do mesmo, mas porque andar de carro era uma novidade e uma oportunidade a não perder. Entre a relutância dos pais em ceder os filhos, a necessidade de o soba dar vazão à uma ordem e a ansiedade dos putos em andar de carro, vincou a vontade do soba. Refira-se também que a distância era bastante curta, menos de um quilómetro, por isso, era possível exercer alguma vigilância da parte dos pais. O trabalho começou sem qualquer percalço até que apareceu um militar colonial e, para não variar, cabo-verdiano. Esse militar era portador de uma pequena pistola e dirigindo-se a uma das crianças, um primo meu, ordenou para que abrisse a boca. Na sua angélica ingenuidade, a criança com cerca de seis anos, acedeu à ordem do militar, mesmo desconhecendo areal intenção do verdugo salazarista. Nisto, saca da pistola e pergunta ao miúdo se ela conhecia o engenho mortífero. O meu primo, sempre de boca aberta, respondeu que não e para espanto seu, o militar introduziu o cano da pistola na boca do miúdo, depois de ter colocado a bala na câmara, pronto adisparar. Por sorte, apareceu o comerciante que desesperadamente gritou ao militar para que não cometesse tamanha barbaridade.

– Eh pá! Não faça isso. Eu conheço os pais das crianças e foram-me cedidos pelo soba. Como vou explicar um caso desses aos pais?

O militar não esboçou nenhuma palavra. Retirou a pistola da boca e pô-la novamente no bolso, tendo-se retirado, na maior calma, como se nada tivesse acontecido. A pronta intervenção do comerciante e o seu brado deprimente fizeram tomar consciência às crianças do perigo que o meu primo tinha corrido.

Este é mais um exemplo da lista infindável de actos de selvajaria praticados por alguns militares cabo-verdianos. Até ao momento que escrevo estas linhas não consigo perceber o que se passava na mente daqueles monstros e que tipo de doutrina arregimentava tamanhos instintos.

 

 

Comentário

1 Comment

  1. Excelente testemunho para quem, como eu, estuda os acontecimentos de 1961. Um sentido abraço ao autor e a todos aqueles que ficaram entre os dois fogos, sofrendo muito por isso.

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