ESCOLA DA FILOSOFIA EM ÁFRICA: HINOS INICIÁTICOS, LENDAS E FÁBULAS KÔNGO

Por Patrício Batsikama

A iniciação ou rito de passagem cuja função é integrar solenemente jovens à sociedade por via de provas físicas e psicológicas é uma morte/ressurreição simbólica, com realce prático que abarca os domínios religioso, político e filosófico (LABURTHE- TOLRA; BUREAU, 1971, p. 68).

Jean Price-Mars escreveu alguns textos sobre a formação étnica, o folclore e a cultura do povo haitiano e nos oferece o presente hino iniciático que servirá de ponto inicial de análise. Eis o texto, citado por Raphaël Batsîkama (BATSÎKAMA, 1971, p. 36):

A ia bombaia, bombé Ah Ya Mbûmba, Ya Mbûmb’e!

Lamma ramana quana Lama, lamama kaka

E van nanta E vana vata,

Vana docki Vana ndoki

Eh! Eh! Bomba eh! Eh” E, e, Mbûmba, e, e

Canga Bafio té Kânga Bafyôti,

Canga moune délé Kânga Mundele

Canga doki la Kânga ndoki yâ!

Canga li Kânga i!

Segundo R. Batsîkama, a tradução do primeiro cântico é: «Oh! Mbûmba! | Cola,

cola bem | na aldeia | nos bruxos». O segundo é: «Oh! Deus | salva os negros | Torna os

brancos escravos | Oh! Captura esses feiticeiros | Captura, nós te suplicamos».

As duas invocações são cânticos da liberdade, adaptados em Haiti. Trata-se do

elogio à vida e Ya Mbûmba representa Ñzâmbi «criador com argila» e,

simultaneamente, o ñkîsi Mbûmba, que cura as enfermidades. Ao referir-se aos ndoki

(bruxos), diz respeito às pessoas sem virtudes nem valores. Por outro, bafyôti traduz-se

por «aqueles que têm a tez escura» pois o termo deriva de fyôtisa (tornar escura) e

mundele, aquele que tem a tez semelhante ao albino. Importa salientar que, aqui, fyôti

não quer dizer pequeno.

Esse hino revela-nos os quatro conceitos principais da liberdade:

(a) Mfumu moyo: autoridade/vontade, dignidade/justiça, nobreza/sociedade;

(b) Kinkotila: desejo/leis, diálogo/potência, querer/direito, livre-arbítrio;

(c) Nswa: pleno poder, beleza/glória, sucesso/bênção, cura/felicidade;

  1. Vuluza: salvar, conservar a vida: inalienabilidade do espírito.

     

Para resistir contra as tendências dominantes, contra o alto preço emocional e a diferença jurisdicional numa sociedade onde a opressão é a moeda do mercado, esses Kôngo readaptaram esse hino iniciático. A fórmula «kânga Bafyôti; kânga Mundele; kânga ndoki» era evocada contra a diferença jurisdicional; tanto quanto para a igualdade das pessoas pretas ou brancas, servidor ou servido, mestre ou aprendiz, que todos tenham as mesmas oportunidades na sociedade. No nzo lôngo, os iniciados são tratados por mwâna nzawu (VAN WING, 1921, p. 377): filhos de chefes, nobres ou aqueles que gozam de todas as liberdades. Por outro, mwâna nzawu pressupõe liberdade na base de conhecimento das leis e consciência do aspeto relacional no qual elas se alicerçam. O

termo nzawu, elefante, representa: (a) sublimidade; enormidade; (b) sabedoria profunda, memória densa; (c) prosperidade. A liberdade equivale a essas três dimensões na iniciação de passagem.

Ya Mbûmba é criador dos seres humanos. Esse nome deriva de wûmba: fazer estilosamente com as mãos, criador da cerâmica. Simboliza o espírito de todas leis, que consiste em premiar e castigar todo comportamento perante o estipulado. Daí, kânga, que significa «capturar, prender», significa também, «libertar, soltar» (LAMAN, 1936, pp. 213-214). A liberdade torna-se um estado da ampla consciência de si e, ipso facto, a inviolabilidade da integridade ontológica que – por força da relação [eu ↔ não-eu] →outro – faz prosperar o nós (comunidade). Isto é, além de ser consciencial, a liberdade é racional e articula uma personalidade de consciência.

Virtudes

A fábula de Na Ngola (Senhora Bagre) e Na Maza (Senhora Água) (STRUYF, 1936, p. 31) narra uma suposta diferença genética das qualidades e, ao mesmo tempo, ilustra quão elas destinam o mesmo objetivo. Na Ngola foi pescado, secado, cozinhado e comido. Nesse processo, Na Maza acompanhou até o estomago.

Ma Ngola é Clarias ngola que, de princípio, simboliza: (a) potência, eletricidade; (b) força, resistência; (c) energia, saúde; (d) violência, intensidade (VAN WING; PENDERS, 1928, pp. 252-253). Há uma lenda, no ñkîsi Lêmba sobre Taka Ngôla (LAMAN, 1936, p. 506) possuidor dessas qualidades, que transformou em virtudes: (a) autoridade colegial, liderança partilhada; (b) saber-ouvir, perseverança; (c) coragem, boa-disposição; (d) bondade, magnificência.

Isto é, Ma Ngola é a natureza bruta da pessoa, ao passo que Taka Ngola pressupõe que seja polido por ter passado pelas iniciações que lhe fazem de muntu. O termo taka deriva do verbo ku-taka, que significa «escolher o melhor; distinguir» ou ainda «partilhar, nomear». É aqui que se percebe a utilidade da água, o mundo dos espíritos que sustentam a sociedade. Tal como na iniciação nzo lôngo, simboliza a morte/ressurreição do carácter dos novos iniciados que se pautam por um novo código de conduta. Atribuiu-se algumas propriedades a ela: agilidade, fluidez, incolor, inodora

etc. A adição entre o sólido (Ma Ngola) + liquidez (Ma Maza) = Taka Ngola ou Maza ma Ngola. Não possuímos na íntegra as características de Maza ma Ngola, mas trata-se do outro nome de Taka Ngola. Justifica-se, visto que taka é sinónimo de têka, com a ideia insociável da água: teka maza (VAN WING; PENDERS, 1928, p. 309). Contudo, sublinhamos o carácter de Taka Ngola que indica virtudes do muntu:

                    Ma Ngola | estado bruto do muntu                  Taka Ngola | virtudes do muntu

Potência, eletricidade                                            Autoridade, colegial, liderança partilhada

Força, resistência                                                    Saber-ouvir, perseverança

Energia, boa-saúde                                                 Coragem, boa-disposição

Violência, intensidade                                           Bondade, magnificência

No passado, ngola era espírito de Ya Mbûmba, por corruptela de argila e lamas. O sacerdote Nsaku não poderia comer o bagre, tão logo for informado da morte de um Ne Nzînga: «Nsaku dia ñtinu, ka dia ngolo ko». Tradução atual: Nsaku come rápido, mas não sem maneira. O máximo quer dizer: «Nsaku investiu o rei, é porque não comeu bagre». A expressão dia ñtinu, à semelhança de dia mungwa (batizar), significa «consagrar, investir no poder, delegar o poder». Esse máximo é válido a Nsaku Ne Vunda e está ligado com Ñtinu Nsaku. Antes de este último transferir a responsabilidade a Ñtinu Nimi’a Ñzînga e se limitar apenas ao sacerdócio – o que leva a Tradição dizer dia vunda, vova vûnda, Ne Vunda (CUVELIER, 1934, p. 87-88) –, existia Ñtinu Nsaku, que terá sido o primeiro Ñtôtila e, com ele, faz sentido que Nsaku dia ñtinu, ke dia ngolo ko.

No passado, ngola era espírito de Ya Mbûmba, por corruptela de argila e lamas. O sacerdote Nsaku não poderia comer o bagre, tão logo for informado da morte de um Ne Nzînga: «Nsaku dia ñtinu, ka dia ngolo ko». Tradução atual: Nsaku come rápido, mas não sem maneira. O máximo quer dizer: «Nsaku investiu o rei, é porque não comeu bagre». A expressão dia ñtinu, à semelhança de dia mungwa (batizar), significa «consagrar, investir no poder, delegar o poder». Esse máximo é válido a Nsaku Ne Vunda e está ligado com Ñtinu Nsaku. Antes de este último transferir a responsabilidade a Ñtinu Nimi’a Ñzînga e se limitar apenas ao sacerdócio – o que leva a Tradição dizer dia vunda, vova vûnda, Ne Vunda (CUVELIER, 1934, p. 87-88) –, existia Ñtinu Nsaku, que terá sido o primeiro Ñtôtila e, com ele, faz sentido que Nsaku dia ñtinu, ke dia ngolo ko.

Responsabilidade

Existia, na chegada dos portugueses, um tipo de escritura: mambika, na fase inicial. Para ler cada texto, anuncia-se, primeiro, o tema: os objetos gravados. Depois, vem o texto. Trata-se de tema-texto que, durante o mpângala (Nzayilu kyûtila), os neófitos praticavam à volta da fogueira. Raphaël Batsîkama dá-nos um exemplo que sesegue (BATSÎKAMA, 1971, p. 97):

(a) Tema: Ntêndekele maki, bilendji. Os objetos gravados são: uma fruta, uma cabeça de pessoa e um ñkôdya (guarda-medicamentos).

(b) Texo: Vabêle mûntu, mûntu vevîngana.

«Coloca na minha cabeça (wuñtendekela)», diz o responsável por uma família ou uma aldeia ou uma instituição àqueles que dele dependem, «todas as vossas. Eu aguentarei sempre». Mas, acrescenta ele, «aprendam, então, com o meu exemplo, como deve se sacrificar pelos outros. Depois da minha morte, escolham entre vós aquele que mais tem competência e demostra o espírito de sacrifício: vabêle mûntu, mûntu vevîngana».

Passamos, agora, à responsabilidade dos pais na educação. Citando Karl Laman, Oscar Stenström escreve o seguinte:

Os progenitores são responsáveis ​​por aquilo que fazem seus filhos: «Não é aquele que comeu o dendê, mas aquele pisou no lixo». Didi ngazi ka yandi ko kansi dieti nkamvi. Os jovens roubavam os frutos do dendê e os comiam, mas cuspiam os resíduos (fibras que não conseguiam engolir).

Os filhos não são responsáveis ​​​​pelo roubo, mas os pais são os responsáveis ​​​​(aqueles que pisaram no nkamvi)… «As nozes foram comidas pelo nswini (o pequeno pássaro nsuni); mas quanto à sede, são os ntietie que a pegaram!». Ngazi kudia banswini (bansuni), lemina kubaka bantietie! Quando uma criança faz algo ruim, é o pai quem é punido (STENSTRÖM, 1999, p. 163).

A cultura kôngo condena os pais quando os filhos cometem erros. O provérbio é claro: mfulututu kalendi namukwa mu ñti ko. Tradução: a tartaruga não sobe numa árvore. As crianças que cometem erros correm sempre à casa dos seus pais para abrigar-se, onde se sentem seguras. É como o dedo que queima e que se refugia na boca:

ñlêmbo ka debuka, tinina mu nwa. Ainda assim, uma fábula adverte em não cometer, pois a casa (nwa = boca) nem sempre garante um refúgio seguro. Poderá essa casa comprometer a vida para sempre. A partir de casa, as crianças aprendem a fábula de Na Nzevo (barba) e Na Nzala (fome). Ambos eram agricultores. O primeiro geria bem os seus produtos e prosperava, ao passo que o segundo não tinha gestão. Face a escassez surgida, esse último andou a roubar a produção do primeiro até que certo dia foi flagrado e fugiu. Na Nzevo seguiu-lhe veloz até que Na Nzala refugiou-se no estomago, entrando pela boca do muntu que bocejava. A toda velocidade, Na Nzevo (barba) tentou entrar impetuosamente, mas o homem já tinha fechado a boca. Na Nzevo chocou com a boca e ficou fora à volta da boca à espera do dia que Na Nzala tentará sair para apanhá-lo e levar ao tribunal. Ausência de regras e incumprimento de leis é inadmissível na educação de criança/jovem.

Ma Nzevo é sólido, ao passo que Ma Nzala é assimilado ao ar que pode ser sentido, mas não tangível. As leis são intangíveis, valores e seus efeitos são palpáveis. Estamos, aqui, perante a responsabilidade cívica que se alicerce nas regras do jogo anunciadas e na monitorização do cumprimento das leis. Em função disso, define-se de forma concreta as responsabilidades. A expressão kola syama vem a propósito do aspeto de kimuntu. A tradução é: (a) cresça e alicerça-te na pedra; (b) desenvolva-te e que tua evolução seja inquebrável; (c) progrida na vida com virtudes; (d) seja infrangível; seja indefetível.

Há duas expressões tautológicas: (a) mwana kola; (b) mwana syama. A primeira pressupõe que a criança/jovem já tem consciência na base dos valores (educação), das virtudes (instrução) que é pilar nas responsabilidades sociais. A segunda tem a ver com a sociedade-eu. Quer dizer, syâma reverte-se na ideia de «algo construído na rocha, ou montanha firme» e, simultaneamente, «trabalhar duro, sacrificar-se no seu trabalho». Isso remete-nos a dois domínios: (a) sociedade: integridade territorial, respeito às normas, inviolabilidade das normas; (b) muntu: educação que garante o equilíbrio ontológico, instrução profissional para prosperidade, sacrifício para o bem-estar de toda a comunidade. Kimbwandende Fukyawu, que foi criado nessas condições escreve:

Cresci numa aldeia de pelo menos 1.000 habitantes (antes de acontecer o êxodo rural). Não havia um único polícia, a prisão era desconhecida, nenhum agente secreto, ou seja, um cão-de-guarda do povo. Não tinha um departamento de investigação, nenhuma sentinela para vigiar os bens das pessoas. Durante o dia, aquela aldeia ficava prática e totalmente desocupada sem uma única pessoa para cuidar das portas, sempre destrancadas. Os estrangeiros eram sempre bem-vindos. Todos se sentiam responsáveis por todos os outros na comunidade e sua vizinhança. Quando um membro da comunidade sofria, era toda comunidade que sofria. Até os meus 25 anos foi muito bom viver naquela comunidade, literalmente uma comunidade sem problemas. Essas comunidades ainda existem em muitas partes do mundo conhecidas como “regiões em desenvolvimento” onde a corrida armamentista imperialista ainda não perturbou a paz (FUKYAWU, 2001, p. 50).

A sociedade kôngo baseada no kimûntu elimina o perigo a partir do ser humano: educação em casa, instrução/sabedoria na escola e santidade na espiritualidade. A religião no antigo Kôngo era uma questão institucional, algo político. Nsaku Ne Vunda o fez saber, no dia 3 de abril de 1491 (CUVELIER, 1948, p.81), o perigo sobre a estrutura kôngo.