À rica trajectória de Ernesto Mulato

Por Sousa Jamba

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Em 1975, com nove anos, assisti, pela primeira vez, um comício político. Isto foi no Huambo, no bairro Bom Pastor, na sede da UNITA, ao lado da loja do Sr. Carvalho. Havia três oradores principais: o Dr. Ruben Chitakumbi, o então famoso Major Lumumba e o engenheiro Ernesto Mulato.

O Major Lumumba contou histórias, que foram muito bem apreciadas pelo público. O Ernesto Mulato falou da responsabilidade que chegaria com a independência; sim, ele dizia que, finalmente, haveria a independência, mas nós, os Angolanos, teríamos que ser responsáveis e solidários. Lembro-me de que um homem levantou a mão, querendo fazer uma pergunta. O senhor perguntou qual seria o estatuto das autoridades tradicionais. Não me lembro muito bem qual foi a resposta de Ernesto Mulato.

Acabei de ler o livro «Ernesto Mulato: Do Bembé a Luanda; um percurso pela Democracia em Angola», publicado pela editora João Marques em Portugal. Nesta obra, altamente valiosa e concisa, foquei a saber que na altura Ernesto Mulato liderava o CAP (Centro de Administração Política), o órgão que coordenava as estruturas da UNITA no Huambo.

Nascido em 1940 no Bembe, Uíge, Ernesto Mulato estudou em várias escolas católicas. O seu pai trabalhou no Namibe, onde, por ser muito claro, as autoridades portuguesas deram-lhe o nome de Mulato. Havia muita solidariedade nesta família. O jovem Ernesto foi para Luanda continuar os seus estudos, onde conheceria o Dr. Agostinho Neto, no seu consultório. Ele passou a ser, também, amigo pessoal de Hoji Ya Henda.

Os anos cinquenta foram marcados pela agitação das independências africanas. O jovem Ernesto Mulato, além de ter uma imensa paixão pela política, pratica futebol. Ele envolve-se, também, em actividades clandestinas contra o sistema colonial. Pouco depois, ele parte para Leopoldville, actual Kinshasa, onde ingressa na então UPA (União dos Povos de Angola). O Se-
cretário Geral deste movimento, Jonas Savimbi, passou a ser logo um grande amigo de Ernesto Mulato.

Ernesto Mulato consegue uma bolsa para os Estados Unidos. Lá, ele envolve-se nas campanhas anticoloniais dos movimentos estudantis. Na Suíça, entretanto, o seu amigo Jonas Savimbi, a estudar Jurisprudência em Lausane, revela o projecto da UNITA. Logo, Jonas Savimbi vai para as matas e Ernesto Mulato e Jorge Sagumba ficam em Londres para espalharem a mensagem deste novo movimento.

Além de ser uma espécie de introdução à vida de Ernesto Mulato, esta obra é também um retrato da UNITÁ de quem viveu a história do movimento de perto. Ernesto Mulato escreve habilmente sobre a luta anticolonial. Em 1976, a UNITÁ vai para as matas para organizar a resistência que só iria terminar com os acordos de Bicesse. Este processo não foi nada fácil, por conta da forma como tudo foi construído. É que, na UNITÁ, Ernesto Mulato foi sempre uma espécie de Primeiro-Ministro, alguém que tinha a tarefa de coordenar as estratégias entre as estruturas militares e as civis.

Nesta obra, há até momentos bastante líricos, que eu não esperava. Ernesto Mulato fala de uma jovem bastante linda, a Helena Bonguela, que fazia os homens pensarem em poesia. As dificuldades da vida da guerrilha – longas caminhadas, falta de água e comida, ataques constantes – são recriadas com muita destreza. Há um episódio, em que Ernesto Mulato se perde nas matas, bastante comovente. Ele esteve na longa marcha – a longuíssima caminhada a pé que Jonas Savimbi e alguns seguidores fizeram em 1976 de Lumbala Nguimbo ao cen-
tro do país, enquanto eram perseguidos.

Durante todo este tempo, Ernesto Mulato era um dos homens de confiança de Jonas Savimbi. Sabe-se muito do complicadíssimo relacionamento que a UNITÁ teve com a África do Sul. Antigos amigos, como a SWAPO, com quem a UNITÁ teria partilhado bases no passado no leste de Angola, passaram a ser inimigos. O que não se sabe é o apoio que a UNITÁ teve de países arabes. A Arábia Saudita e até mesmo o Sudão de Jafar Nimery apoiaram o movimento. Há também um episódio em que Ernesto Mulato mais um seu colega são postos numa cadeia zambiana, quando tentavam chegar à capital, Lusaka, para se encontrar com a liderança daquele país.

Ernesto Mulato escreve também da relação muito cordial que a UNITA teve com o Presidente Mobutu do antigo Zaíre. Ele conta igualmente como a UNITA chegou de fazer amizades com certas figuras do Partido Conservador dos Estados Unidos, como a senhora Jeane Kirkpatrick. Ernesto Mulato é uma daquelas pessoas que calhou estar presente em todos os momentos cruciais da UNITA.

Nesta obra, ele não ignora os aspectos negativos da UNITA. Ele conta, por exemplo, como o brilhantíssimo antigo Secretário dos Negócios Estrangeiros da UNITÁ, Jorge Ornelas Sagumba, caiu em desgraça, depois de terem surgido relatórios em como ele defendia uma linha que não estava em sintonia com os ensinamentos de Jonas Savimbi. Sangumba perdeu a vida em circunstâncias que até hoje não foram esclarecidas. Há outras figuras que são citadas nesta obra mas cujo desaparecimento físico não é retratado. O que é, afinal, que resultou no desaparecimento do Waldemar Pires Chindondo, antigo Chefe do Estado Maior da UNITA? O nosso mais velho Mulato não fala da revolta de Kashaka Vakulukuta, uma figura a que faz referencia no início da obra.

Ernesto Mulato diz no seu livro que houve excessos – execução de quadros depois de julgamentos sumários, perseguição de quadros por pertencerem a seitas religiosas não tradicionais. Um leitor atento desta obra vê logo provado o ditado de que as revoluções muitas vezes acabam por comer os seus próprios filhos. Depois de uma existência peripatetica (em que a liderança do movimento andava por todo o lado) surgram então bases permanentes, como a Jamba. De repente, surgiu também a famosa «Brinde», os serviços secretos da UNITÁ. Oficialmente, eles existiam para evitar a infiltração do adversário e fortalecer a segurança; na realidade, e a «Brinde» começou também a meter medo nas pessoas. Ernesto Mulato escreve como Ruben Chitakumbi e Jorge Sangumba aconselhava-lhe sempre para ter cuidado porque a «Brinde» tinha agora máquinas de escuta muito poderosas.

Em todo caso, para Ernesto Mulato, quando se mete tudo na balança o lado negativo da UNITA conta menor que o seu lado positivo. Esta avaliação é estendida ao líder do movimento: o Ernesto Mulato nutre uma profunda admiração pelo falecido Jonas Savimbi.

Até um certo ponto ele tem razão. Eu fui para a Jamba, tendo crescido na Zâmbia, em 1984; sai dela em 1986. Na altura, o Primeiro-Ministro era o Engenheiro Ernesto Mulato. Havia programas sérios de saúde, educação, agricultura no território controlado pela UNITA. Aqui o mais necessário era a competência técnica para ajudar traçar e implementar estratégias.

Espero que esta seja uma introdução a assuntos que o nosso mais velho Ernesto Mulato irá aprofundar. Depois da Jamba, por exemplo, ele seguiu para a Alemanha e depois Togo como representante da UNITA. A história da diplomacia da UNITA naquela época da Guerra Fria é interessantíssima. Espero ler brevemente o que Ernesto Mulato dirá sobre tais temas.

Via S.A

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