Por Paracleto Mumbela e Federico Carducci (Autores e Pesquisadores em etnografia)
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Considerações gerais
Neste trabalho, intitulado “A génese da Igreja Cristã União Espírito Santo“, também conhecida por MpeveyaNlôngo ou Gondismo, propomo-nos retraçar a trajectória histórica desta Igreja, a partir de uma experiência etnográfica que realizámos entre Mbanza Kongo e Luanda, em Novembro de 2022. Esta igreja atirou a nossa atenção ao longo de um trabalho em etnografia relacionado aos movimentos religiosos kongo (também conhecidos, no vasto panorama religioso angolano, como igrejas africanas). No dia 20 de Novembro de 2022, enquanto nos encontrávamos em Mbanza Kongo, num espaço sociocultural pertencente ao antigo Reino do Kongo, de regresso à Missão dos Capuchinhos onde estávamos hospedados, saindo do Lumbu (Museu dos Reis do Kongo), vimos numa das estradas que dá acesso ao mercado do Luvu, na fronteira da República Democrática do Congo, um jovem de nome Mbunga Eduardo vestido de um saco, à sombra da
mangueira próxima da Igreja. Ao descer das motas, perguntámos pelos guardas da igreja para poder entrar na Igreja e fomos recebidos por uma anciã, que nos confirmou ser uma Ndona (profetisa), experiente em curas espirituais. Empolgada com a nossa presença, ela começou a resumir a história da Igreja, sobretudo, o falecimento do seu líder espiritual, o Pastor Manuel Mvika, e apercebemo-nos que a nossa presença foi incluída na narração da anciã, tendo o Líder dito que depois da sua morte “viriam dois investigadores” para pesquisar sobre a história da Igreja. Conscientes de que a nossa presença contribuiu ao cumprimento da profecia, estamos preparados para expor um resumo histórico sintético da fundação da Igreja Cristã União Espírito Santo (ICUES).
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Aspectos biográficos do seu fundador e história da Igreja Cristã União Espírito Santo
A partir dos acervos que nos servimos podemos ler que o Profeta ANDRÉ KISUKA WÔNDA também conhecido pelos seus crentes de WÂSILWA WANGWITUKULU, nasceu no dia 03 de Março de 1929, na aldeia de Mbanz´a Ndêmbo yi Kivânza no sector de Nguvu, território de Madîmba, Distrito de Lukaya, Província do Baixo Congo, República Democrática do Congo. André Wônda era filho de Kisâka Nzênza João e de Ngându Mayidi Mantanta Elisabeth. A sua gestação, assim como o seu nascimento, são cercados de simbologias. Quando Ngându Mayidi Mantanta Elisabeth, mãe de André Kisuka Wônda, entrou no oitavo mês de gravidez, apareceu no céu de Ndembo yi Kivânza uma nuvem, ou seja, céu azul “Ngonda Yûlu”, que significa em português “céu
azul”, que mais tarde os gondistas associarão à manifestação do “espírito santo”, sinónimo de mpêve ya nlôngo que deriva de mpêve/espírito, fôlego ou vida (Mumbela, 2019). Dada a relevância do acontecimento, os habitantes de Mbanz´a Ndembo yi Kivânza interpretaram o fenómeno como sendo a “encarnação do Espírito Santo em humano”, por isso que André Wônda foi conhecido como Espírito Santo, ou seja, Mpeve ya Nlôngo (Nunes Nsungu, 2013). O seu nascimento inscreve-se também numa série de profecias do Profeta Simão Kimbangu em 1921, que via em André Wonda o filho da Promessa e que conhecia os pais dele.
Clanicamente o Profeta André Wônda pertence aos clãs de MBÂMBA KALÛNGA, pela mãe (kukânda) e MAKABA (DIZONGO MIUZI MAKABA) pelo pai (kukisê1). A este respeito, partindo de definições destes dois nomes que o clã nos oferece, podemos ver que existe uma estreita ligação no ponto de vista tradicional entre Mbâmba e Kalûnga. De acordo com a tradição bantu, o nome Mbâmba ou Mbâmbi, para além de serpente, fortaleza, muralha de defesa, ou seja, fronteiras ou limites, (Patrício, 2010:132), significa terras de origem. A linguística atribui a este nome o sentido de Sul e Norte à Nsûndi, tal como reza a tradição: nsûndi tufila ntu … mbâmba tu lambudila malu, quer dizer, viemos de Mbâmba e vamos para Nsûndi. É interessante vermos que o mesmo, neste caso, Mbâmba que significa sul tradicionalmente e linguisticamente falando para a teologia africana significa ar ou sobro divino/Deus, finalmente, Nsûndi é o Deus atribuído pelos ancestrais bantu. Ao passo que Kalûnga, para além de significar águas, é o nome atribuído a Deus como fonte de vida.
Aos oito anos de idade (1937), André Wônda frequentou a escola da Missão de Exército de Salvação em Mbanza Kisangulu onde concluiu a 3ª classe do ensino primário. Na sua juventude aprendeu a profissão de carpintaria e marceneiro (corte de madeiras) na sua aldeia natal. E no dia 09 de Setembro de 1953, contraiu matrimónio civil e religioso com a Senhora Ndundu Mafila Thèrèse, e deste casamento resultou o nascimento da única filha de nome Gonda Siméone, nascida aos 02 de Julho de 1960.
A fundação da Igreja ocorre no dia 01 de Janeiro de 1950, a partir dos eventos da aparição de Simão Kimbangu ao Profeta Wônda que antecede a descida do Espírito Santo sob inúmeras designações: Igreja Cristã de Espírito Santo (ICUES); Bundu dia Mpeve ya Nlôngo, ou, ainda, Kintwâdi kya Nzola (União de Amor); Dibundu dya Nsaku (Khaki); Gondismo, cujos significados vão desde as traduções literais do próprio nome da Igreja, passando por “membros que praticam o uso de sacos” e terminando com a de “Espírito Santo”. As denominações atribuídas ao Profeta André Wônda, remete ao fenómeno da defesa da unificação do mundo espiritualmente e terminar com o sofrimento da mesma.
Quanto à sua expansão, conforme confirmam os estudiosos das religiões africanas (Santos, 1972, p. 223), a Igreja Cristã União Espírito Santo começou a ser expandida por Mabiala Ngoma Jackson André Kitembo, Mabiala Mpungi, Emmanuel Bungu, antigos discípulos do Profeta André
1Ainda há fontes que revelam que seja da tribo NDÛMBU’A ÑZÎNGA. Aquele que serpenteio todo universo na parte materna.
Wônda. Estes, por sua vez, começaram o seu trabalho de expansão na RDC nas localidades de Matadi onde serão presos em 1954, e no dia 12 de Março de 1957 penetraram em Angola inicialmente na região de Mfwa´a Nsi (Fuanxi) em Mbanza Kongo, Província do Zaire, a dois quilómetros da fronteira com a RDC (SANTOS, 1972, p. 224). Em Angola, O Dibundu dia Mpeve ya Nlôngo manifestou-se logo como um movimento político-religioso, visando a criação de uma igreja especificamente negra, livre de toda a ingerência europeia assim como a inteira libertação da tutela dos brancos (Ibid.). Isso fez com que a maior parte dos responsáveis da Igreja em Angola fossem enviados para a prisão de S. Nicolau (ANTT/PIDE-DGS, Proc. C-1-1547A 15.45.A/NT 1105, p. 40-34).
Após o golpe do Estado Português aos 25 de Abril de 1974, o Profeta André Wônda enviou novamente uma delegação de evangelistas em Angola, com o objectivo de implantar a igreja. A referida delegação penetrou em Angola por via da fronteira de Kimbata/Makela do Zombo (Uíge), mas, devido aos conflitos armados protagonizados pelos partidos políticos na luta pela independência de Angola (MPLA, UNITA e FNLA), esta delegação foi presa pelas tropas da FNLA e mais tarde os seus membros foram postos em liberdade. Ainda no mesmo ano de 1974, o profeta enviou uma outra delegação chefiada pelo Ancião Sebastião Salomão que posteriormente penetrou na mesma via de Maquela, tendo sido basificado na Missão dos Tokoístas de Ñtâya durante algum tempo (Mfutila, 2022).
Em 1975, o Reverendo Nunes Nsungu, natural de Município da Damba, Província do Uíge, actual Representante da Igreja, fruto de sucessiva solicitação ao Profeta André Wônda para autorização da fundação da Igreja em Angola, por intermédio das cartas, aos 10 de Outubro de 1976, implantou a Igreja Cristã União Espírito Santo primeiramente no Bairro Deolinda Rodrigues (Maquela do Zombo), onde trabalhou clandestinamente, e depois expandiu-se para o Município da Damba na localidade de Mbanza Kinlêngo dirigida pelo Pastor Kanga André, e posteriormente a Sede da Província do Uíge. Em Luanda, a primeira paróquia foi na Mutamba e depois, com o crescimento dos membros, a sede da igreja mudou-se em 1986 para o Bairro Cazenga/Luanda (Nunes Nsungu, 2013).
O reconhecimento oficial da Igreja está ligado, na narração de alguns membros, a uma secção de orações de 40 dias e noite, realizada pelo Profeta André Wonda no monte Mangengenge, em Mbanza Nzambi/RDC, cujo resultado terá sido o reconhecimento no dia 02 de Setembro de 1990, da Igreja Cristã União Espírito Santo (ICUES) pelo Governo Democrático do Congo/RDC conforme se lê na Personalidade Civil e publicado os seus Estatutos no Diário Jurídico nº 90/193. Tal como aconteceu em Angola, conforme podemos ler no Decreto nº 45/92 de Outubro de 1992.
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A morte do Profeta André Wonda e a encarnação em Manuel Mvika em Mbanz´aKôngo
Aos 25 de Janeiro de 2004, faleceu André Wônda. A sua morte levou o declínio da Igreja, de maneira parecida com que aconteceu com outras igrejas proféticas, cuja consequência foi até o desmembramento da Igreja. Depois da morte do Profeta até 2010, foram registados inúmeros eventos espirituais no seio dos Gondistas, passando desde a cura espiritual à descoberta dos locais sagrados nos dois países, Congo e Angola.
Uma outra data importante na história desta Igreja é 13 de Março de 2011, quando, em Mbanza Kongo, o Profeta André Wôndas e encarnou no corpo do jovem Manuel Mvika, na altura com seus 35 anos de idade, cumprindo assim a profecia que indicou que o profeta“entraria em Angola por via espiritual”, não tendo tido a oportunidade de entrar fisicamente em Angola durante a sua vida. O referido fenómeno foi testemunhado pela sua filha de nome Gonda Siméone que várias vezes o visitou, fazendo assim que os fiéis deste movimento o considerassem como uma “divindade viva” (Maximo, 2016, p. 266; Mfutila E Garcia, 2022). Manuel Mvika, enquanto encarnação do Profeta André Wônda, trouxe mensagens de continuidade na liderança da Igreja e na oração para pôr fim ao sofrimento do mundo, assim quede transformação de Mbanza Kongo na sede espiritual da Igreja. Trouxe também um projecto de construção do Templo e de um Museu Espiritual, que inclui vários locais sagrados, a saber: a Casa Santa (local onde havia a árvore Embondeiro, onde a profetiza Kimpa Vita se refugiou das inquisições católicas); a Residência onde o encarnado de Profeta Wônda viveu durante onze anos; Seka dye Ngonde (local onde o espírito santo desceu em forma de uma Pomba, o espaço é vedado por uma estrela, palmeira e cadeira1), o local é reservado para os Diáconos; Ne Mbasa (local sagrado onde se purifica todos que padecem de enfermidade), e tantos outros vestígios sagrados como a estrela de cinco vértices em barro e a bandeira da igreja.
Depois do cumprimento da sua missão espiritual na íntegra, a 13 de Março de 2022, Pastor Manuel Mvika rendeu a sua alma a Deus.
1O espaço foi construído em 2014 pela Igreja.
Conclusão
Neste pequeno artigo, baseado numa pesquisa etnográfica e em algumas fontes de literatura, pretendemos reconstituir a trajectória histórica da Igreja Cristã União Espírito Santo (ICUES), focando nomeadamente na biografia do seu fundador, o profeta Tata Wonda, e nas dinâmicas ligadas ao seu relacionamento com o espaço cultural e religioso de Angola. Devido à efervescência religiosa em Angola e sobretudo no espaço cultural kongo, achamos, todavia, que um trabalho comparativo entre a ICUES e outras igrejas proféticas, que ponha a atenção nas lutas pelo reconhecimento no campo religioso e nos registos simbólicos mobilizados, seja indispensável para uma melhor compreensão (histórica) dos complexos fenómenos religiosos em Angola.
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Bibliografia Consultada
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Arquivos da ICUES cedido pelos responsáveis da Igreja de Luanda e Mbanza Kôngo
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ANTT/PIDE-DGS, Proc. C-1-1547A 15.45.A/NT 1105, p. 40-34
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BATSIKAMA, Patrício, As origens do antigo Reino do Kôngo, 2010, Editora Mayamba, Luanda
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CARDUCCI, Federico; PÉCLARD, Didier. “Être tokoïste pour être citoyen. Pratiques religieuses et subjectivation citoyenne en Angola”. Lusotopie, vol. 20, n. 1–2, p. 1-20, 2021
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MANZAMBI, SPF, ALIANÇA DA PAZ: (Luwawanu lua Yenge) – Último discurso do profeta André Wônda, 2021, Sindjekumbi, Luanda
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MAXÍMO, Bruno Pastre, Um lugar entre dois mundos: Paisagens de Mbanza Kongo, 2016, S. Paulo.
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MUMBELA, Paracleto, AS ORIGENS DO KÔNGO DYA SÂDI: Segundo arqueologia da tradição oral, Edições Mumbeliano M´aziko, 2023, Luanda
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SANTOS, Eduardo dos, Movimentos proféticos e mágicos em Angola, imprensa Nacional, casa de moeda, 1971, Lisboa
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