Por Patrício Batsikama
Resumo
O presente texto aborda os temas abordados na Escola de Filosofia antes de 1717 no antigo reino do Kôngo como resposta à necessidade de enriquecer a Filosofia Africana com nomes de pensadores e suas reflexões. Por outro, a partir de algumas canções iniciáticas e provérbios, é possível restituir pensamentos concretos e estabelecer comparação entre si. De forma geral, o artigo oferece sínteses de diferentes subsídios com relação ao que terá sido o panorama geral da Filosofia no antigo Kôngo e o legado que., nos dias de hoje, está escondido na Tradição oral.
Metodologia
Em 1995, apresentamos parte deste texto ao professor Kambayi Bwatshia. Ele limitou-se a realçar a nossa imaginação, ainda que lhe tenhamos comprovado que era o fruto de uma exploração etnográfica de 54 dias de observação participativa. De seguida, fez-nos a seguinte observação:
Tudo isso parece sistematizado. Não obstante isso, não lhe será fácil provar essa Filosofia kôngo, porque a Academia exigir-te-á um arquivo que preserva a memória da evolução dos pensamentos… Simples semântica não basta… É preciso um arquivo material acessível a todos, que mostre as produções anteriores… tudo deve ser plasmado nesse arquivo. Uma curiosidade: como uma sociedade da oralidade teria Filosofia?
A história oral é o depoimento de alguém. Do ponto de vista da História, é necessário recolher três depoimentos, ao mínimo, sobre determinado acontecimento. Depois, o pesquisador deverá reproduzir a tessitura do relato, para achar: (a) o texto e a identidade da sua autoria; (b) conteúdo; (c) movimentos; (d) espaço da produção dos factos. Com isso, pode passar pela diferença entre facto e ideias. Regra geral: onde o depoente menciona eu, há 50% de probabilidade que seja suas ideias, ambições e posições, ao passo que ao referir-se ao nós, há 50% de probabilidade de ser facto. Porém, existe um nós ideológico, tanto como um eu objetivo. Será necessário optar, na História, pelo nós objetivo. Com relação ao conteúdo, o pesquisador dará maior atenção a três variáveis: sobrevalorização, subvalorização e discurso neutro. Com isso, o pesquisador reconstrói os factos da comparação entre discurso neutro e facto/nós, e, na base deles, faz a síntese. Com base em três sínteses, o historiador pode reconstruir, objetivamente, o âmago dos factos sobre um determinado acontecimento. A diferença dessas sínteses indicará o subtexto não das narrações, mas do próprio acontecimento. O subtexto torna dinâmica a reconstrução dos factos, e nos alerta que outros testemunhos dominariam a outra face da ocorrência. É assim que se consegue o código discursivo dos factos, a partir do qual poder-se-á confrontar com outras fontes escritas, sonoras, fílmicas etc., existentes, se necessário.
Ao fazer esse exercício com relação à Tradição oral histórica, a coerência interna é inquebrável, com pouca porosidade; as metalinguagens traduzem a multissemântica que codifica os diferentes ângulos da ocorrência. Acontece que os conservadores dessas narrativas percebem parcialmente o conteúdo. Isto leva a que uma mesma Tradição seja interpretada de forma diferente e complementar no nzo ndêmbo, ñkîsi lêmba, kimpasi, Bankîmba etc. À medida que a pessoa é iniciada em diferentes escolas, mais robusta será a sua compreensão da narração. Pessoas assim não eram vulgares e os etnógrafos tiveram sérias dificuldades em alcançá-las, tal como se pode notar no caso de Marcel Griaule.
Para os provérbios, o método paremiológico obedece a dois momentos. O primeiro é parte da verificação interna do texto e suas origens. O segundo momento tem a ver com a comparação das sínteses para perceber o seu valor filosófico, numa trama semiológica (OKIN, 1977, p. 156). Ainda nessa senda, aqui dá-se a maior atenção ao eu/ideia e ao nós/facto, tanto que a sobrevalorização interessa para medir a pulsação que proporcionam várias sabedorias produzidas na narração.
Existe um outro impasse que estudiosos apontam: a oralidade seria incapaz de preservar um espírito crítico. A tradição escrita é capaz e a partir dela cria-se o arquivo (NGOENHA, 1993, p. 91). Os Kôngo escreviam com ideogramas em diferentes suportes: cetro, faca, mpângu za Bakûlu (BATSÎKAMA, 1970, p. 97), bengala, testo, marmita, estatueta, máscaras, decoração de casa, grutas, cânticos, hinos iniciáticos etc. Apenas os iniciados poderiam ler por ter aprendido, quer no nzo ndêmbo quer no nzo lêmba ou, ainda, no nzo nzikudi. Curiosamente, os primeiros rapazes e raparigas que foram enviados a Portugal já tinham passado pelas duas primeiras iniciações. Terão sido eles os primeiros a modificar o ensino de nzayilu kyûtilu, a partir de 1523, quando as escolas e igrejas foram construídas em Mbânza Kôngo. Por essa razão, iremos analisar o ensino em Mbanza Kôngo, de 1491 até 1706, para medir até que ponto as modificações verificadas importaram noções de Filosofia ocidental.
Estrutura de Nzayilu kyutilu.
No fim de julho de 1994, Raphaël Batsîkama enviou-nos a fazer teste de admissão ao Ñzâyilu kyutilu, na comuna de Barumbu (cidade de Kinsâsa). Depois de admissão, fomos logo expedido para uma autêntica «école de la brousse», em Mbanza Lele. Passamos o primeiro nível de familiarização, que durou um mês, duas semanas e cinco dias. Durante esses dias, tal como consta do nosso caderno de campo, a estrutura dessa escola era a seguinte :
(a) Ñtudi kyûtilu: Grão-Sábio (ñkûmbi ou ngânga Mbângu) que era auxiliado por três conjuntos de sábios:
– Ngûdi’a lûmbu que são: (i) ngûdi’a ntûdi; (ii) ngûdi’a fulama; (iii) ngûdi’a nza; (iv) ngûdi’a mbolo (CAVAZZI, pp. 225, 414);
– Mavuzi ma ndwênga: pessoas muito severas e muito sapienciais
(BITTRÉMIEUX, 1936, p. 43);
– Ñnânga ñzâyilu: gestor administrativo e dois financeiros.
(b) Kindwêngi: Colégio de sábios, matemáticos, médicos:
– Mavôngo: conjunto de juízes jubilados que orientam todas as
atividades;
– Mavwâla: conjunto de sábios instrutores distinguidos com cetro
(TROESCH, 1962, pp. 96, 98);
– Na Mvêmba: os conhecedores dos segredos da morte: escatologia.
(c) Mbôngi’a ndônguta: santuário para meditações ou para discussão:
– Kiñlôngo: areópago exclusivo dos sábios, advogados (WEEKS,
1914, p. 245);
– Tûnda Ndôngi: vários locais de instrução (CAVAZZI, 1965, p.191).
(d) Mpângal’a lufusa: escola elementar, pequeno tribunal, composto de:
– Tribuna/Ngânda: Direção dos grupos de aprendizagem;
– Duas câmaras: (a) Mbâzi’a ñkanu, juízes egrégios; (b) Ngânda nsêmo: sede dos nsêmi, os inteligentes;
– Mpângala: espaço público para iniciação aos matalatona (pensadores).
As designações são claras e nos deixam confortável em dois momentos. Primeiro: estaríamos dentro de uma escola daquilo que o Ocidente chamou de Filosofia. Segundo: as designações aqui mencionadas remontam a 1491. Pelo menos catorze fontes diferentes confirmam isso, embora com uma linguagem de desdém influenciada pelo cristianismo dos séculos XVI-XX. Citamos as principais: Léo Bittrémieux, com uma boa coleção no Museu da África Central (Tervuren); Karl Laman, com a densa recolha que publicou no The Kôngo; Jean Malonga (MALONGA, 1954); Albert Doutreloux e a sua coleção no Museu da África Central (DOUTRELOUX, 1967); padre Joseph Van Wing; pastor Jacques Bahele (BAHELE, 1961); Jean Cuvelier e as suas inúmeras traduções de documentos antigos; Olifert Dapper; Filipo Pigafetta e Duarte Lopes; Jeronimo de Montesarchio; Girolamo Merolla; N. De Cleen (DE CLEEN, 1935, pp. 63-75); John Weeks; fontes dos séculos XVI-XVIII em Portugal, Itália, Espanha, entre outros.
Doutréloux menciona ngânga Mbângu (Ñtûdi kyûtilu) com atribuições religiosas e realça que toda a sociedade confiava na sabedoria dele (DOUTRELOUX, 1961, pp. 45-57). Quando um rei morria, o povo era informado que o monarca estava doente (WEEKS, 1914, p. 36). O colégio dos sábios era convocado para a preparação das eleições das funções subalternas vacantes e, principalmente, a eleição do novo rei (ZUCCHELLI, 1712, pp. 148-149, 310). Sabe-se que os funcionários públicos eram instruídos no Mbôngi’a Ngîndu, e a instrução de bumpati passava-se num espaço sagrado chamado mbôngi 10 . Raphaël Batsîkama descreve Mpângu za Bakulu, Tâta Mi Kôno, Mabanda-Ñtela, Mpûngi da forma como os juízes jubilados (Mavôngo) apreciam-nas no Kindwêngi. O pastor Jacques Bahele fornece-nos as reminiscências na instrução de advogados.
Na escola-baixa, são quatro dias semanais de formação: de terça-feira até sexta-feira. Durante esses dias, as proibições são semelhantes aos chefes coroados (MERTENS, 1942, pp. 84, 87-89). Na terça-feira (Nsôna), os neófitos são chamados Ma Mfuka ñsona: aqueles que fugiram de seus pais para aprender (LAMAN, 1936, p. 655) 11 . Pode, também, significar órfãos. Entre várias lições, destacamos duas 12 : (a)interpretar o silêncio; (b) fazer autorreflexões.
Os neófitos reagrupados em 12 são ajudados por três ngânga diferentes. De facto, no meio rural, o silêncio fala: o vento, os pássaros, os diferentes insetos, movimentos de pessoas etc. O sossego alimenta a alma. Muitas vezes, confunde-se alucinação com flash-realidade. Na autorreflexão, o ngânga solicita cada um a meditar sobre quatro aspetos: (a) avaliar o estado da alma e a saúde do espírito; (b) fazer autocrítica dos seus atos no dia anterior e expressá-la com sinceridade e objetividade; (c) conceber uma ideia sobre os ideogramas plasmados no objeto que recebeu (BATSÎKAMA, 1971, pp. 96-98) 13 ; (d) fazer a interpretação do sonho das três noites anteriores, e prevenção dos próximos dias.
Esse exercício era constante, logo depois do banho matinal das 5h00 e das tarefas matinais: cada estudante se recolhia no mpangala, em jejum, contemplando a natureza. Durante o mbata (sol acima da cabeça: 12h00), os grupos de doze faziam uma visita guiada para apreciar todo o mpângala sob a égide do seu monitor, sempre em jejum. Essa visita guiada repetia-se durante mais de um mês, com as mesmas explicações. Todos voltavam em silêncio para os seus aposentos até os primeiros raios do crepúsculo. Era preciso criar condições para o jantar, com responsabilidades partilhadas: todos contribuem para a preparação da comida. A digestão era feita à volta da fogueira, e três ngânga faziam as perguntas pedagógicas a cada um e sugestões para melhorar a presença de espírito. Manter a mente ativa, apta para prepará-la nas reflexões sobre os problemas de forma objetiva e evitar distração. O princípio da escola-baixa é claro: vova, ntalu; vuvama, mbuta. Tradução: argumentar, vale; porém, o silêncio está acima de tudo.
Na quarta-feira, nkându: era o dia de aprender as leis. Existem, aqui, três categorias de leis. A primeira é o conjunto das leis fundamentais, que se diz nkândukulu: interdições que deixaram os ancestrais. A segunda é sinónimo de nsîku e constitui leis específicas seguindo os diferentes domínios da vida social. A terceira é deontologia, código de conduta (nkându) que, em contrapartida, distingue neófitos pela sua nova conduta na sociedade. No nsuka-nsuka, os primeiros raios da aurora, os candidatos iam ao rio, mas sempre passavam para colher vinho de palma. Aprendiam a utilidade das folhas, dos tubérculos, das frutas que constituem a dieta que cura o corpo. Ao mesmo tempo, eram instruídos a preparar diferentes medicamentos e o chá. As folhas pertencem ao ar, as cascas e tubérculos pertencem ao mundo da terra; os minerais pertencem ao domínio do fogo e as pedras-medicamento integram o mundo da água. Na base dessa tabela, que é dinâmica e não estática, aprendia-se a fabricar remédios consoante os sintomas. Por conta desse dia, os neófitos eram chamados defensores que montam a palmeira nkândi cujo sentido figurado é: corajoso, habilidoso de quem a sociedade pode esperar.
A quinta-feira correspondia a ñkênge, dia de aprender três disciplinas: (a) história social das linhagens, a partir dos seus ndumbululu e código das relações de parentesco da integridade económica e territorial; (b) utilidade intelectual e social das lendas, provérbios, máximas etc. O método da sua interpretação reforça a sabedoria visto que disponibiliza os códigos para decifrar e facilitar diferenciar as variantes da Tradição oral e o género de docta spes; (c) educação no geral e instrução técnica ligadas à arte: dançar, cantar, esculpir. Pareceu-nos que o objetivo aqui terá sido memorizar hinos e outros cânticos para depois aprender os símbolos relacionados e as suas respetivas significações (BATSÎKAMA, 1971, p. 100). Também os locais memoráveis para preservar a identidade territorial.
No último dia – sexta-feira, nkônzo – os neófitos aprendiam a economia e as leis contratuais em caso de empréstimo, repartição da produção consoante o labor (força laboral disponibilizada), fiscalização as diferentes taxas etc. A posição da sede, das casas, tribunais, mercados obedece à localização das nascentes de água e o fenómeno do pôr-do-sol, sem esquecer, fundamentalmente, o mapa geográfico do sagrado do território ocupado. A pertença das famílias com relação às nascentes dá alguma “prioridade” na distribuição, pois são os “donos das terras”. Emprestar-lhes dinheiro ou endividá-los de alguma forma com seus serviços é, deveras, uma boa engenharia financeira. Todo investimento deve ser rentável e subtil.
Uma preocupação sobre a nossa experiência reside na ordem cronológica dos dias que não nos parece ter sido seguida nessa breve formação. Por normas, a cronologia é: nsona, nkênge, nkônzo e nkându. Nem o sábio Raphaël Batsîkama esclareceu-nos essa dúvida, em virtude (provavelmente) de proibições que, ao integrar essa escola, passávamos a ter. Contudo, terminamos com êxito a fase elementar de mpângala lufusa e já não seguimos por força da formação académica.
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