ESCOLA DA FILOSOFIA EM ÁFRICA: POSSIBILIDADE DA INFLUÊNCIA PORTUGUESA (1491 -1706)

Por Patrício Batsikama

Alguns professores, em 1995, mostraram-se céticos ao nosso texto devido a dois aspetos relacionados com essa escola: (a) um possível legado das escolas europeias instaladas no Kôngo entre 1491 e 1917; (b) escolas endógenas de Filosofia: onde estão as escritas dos filósofos e quais seriam as principais correntes existentes?

Com relação ao primeiro aspeto, Martins dos Santos observou que a remodelação dos costumes com as primeiras tarefas da evangelização não foi profunda nem persistente, pois muitos voltaram às práticas gentílicas. Se Dom Afonso é apontado sempre como exemplo de fidelidade à nova fé, não podemos dizer o mesmo dos seus conterrâneos e contemporâneos (SANTOS, 1970, p. 17).

Com relação ao segundo aspeto, os autores como Karl Laman, Joseph Van Wing, Léo Bittrémieux, entre outros, dão-nos conforto que as escolas “secretas” não tenham imiscuído a fundo com os aportes externos, por um lado. Por outro, alguns hinos iniciáticos são textos autênticos, tanto quanto as esculturas em pedra(TSHIAMALENGA, 1982, pp. 65-70).

Jean-Godefroy Bidima exorta-nos a explorar o que essas escolas teriam de endogeneidade e trazer uma discussão metódica e comparativa (BIDIMA, 1995, p. 39). No contexto kôngo, as causas poderiam estar no Cristianismo entre 1491 e 1706. A primeira data relaciona-se com a chegada dos padres com a missão evangelizadora e a segunda tem a ver com o momento em que o alógeno e o endógeno atingiram o pico da sua miscigenação com a morte de Ñsîmba Vita (mais conhecida como Kimpa Vita).

À luz da bula papal Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, e das navegações do Infante Dom Henrique, Diogo Cão desembarcou nas duas margens do rio Mwânza (Zaire), em 1482, e capturou alguns habitantes que levou a Portugal, onde foram educados. Mas, em 1488, o Conselho do Kôngo decidiu enviar para Portugal vários rapazes (BRÁSIO, 1952-I, p. 56-74), provavelmente já iniciados no nzo ndêmbo 15, para se formar. No dia 19 de dezembro de 1490, Diogo Cão deixou Lisboa e chegou na foz do rio Mwânza (rio Congo) no dia 29 de março de 1491. Ao bordo estavam três padres: João da Costa, António de Porto e João da Conceição, com objetivos não meramente religiosos. Raphaël Batsîkama adverte que «não foi a primeira vez que se serviu da santa batina para agradar o príncipe de trevas» (BATSÎKAMA, 1971, p. 26). Em 1491, esses padres edificaram igrejas provisórias, especificamente no Nsoyo, Mbânza Kôngo e Mbânza Mbata. As igrejas cobriam, ao mesmo tempo, o sistema de Educação de língua/cultura portuguesa e catequese. Rui de Sousa tinha a missão de estabelecer a primeira embaixada de Portugal no Kôngo. Chegado em Mbânza Kôngo, ele apresentou as cartas credenciais e, em contrapartida, o Governo do Kôngo pagou aos portugueses em moeda local (nzîmbu) para as despesas da sua missão (THORNTON, 2020, p. 34).

A primeira carta que o Rei Ñzînga Nkuwu Dom João I endereçou ao rei João II de Portugal sugere que essa missão tenha sido um autêntico êxito:

Sereníssimo e gloriosíssimo príncipe e senhor. Depois de humilde recomendação, João pela graça de Deus Rei de Congo, súbdito e amicíssimo e irmão teu, temo-nos dado nós mesmos a tua virtude, temos recebido Rui de Sousa, teu embaixador, juntamente com as tuas dádivas, com aquela humanidade e honra que convém e benignissimente ouvimos aquelas coisas que da tua parte lhe expuseste. Damos-te graças imortais e estamos obrigados, o que pelas nossas palavras mais copiosamente transmitirá, juntamente com algumas outras coisas que lhe temos encomendado, o nosso embaixador, o qual te dará esta carta e lhe dareis fé incontestada.

O altíssimo Deus no teu potentíssimo estado te conserve longamente e de tal modo que finalmente consigas a eterna glória. Dada de Congo, décimo das calendas (BRÁSIO, 1973, p. 192).

É curioso que Ñzînga Nkuwu, que nem sabia falar, ainda, kimputulukezo (língua portuguesa), naquela altura, se tenha declarado súbdito ao rei de Portugal, Dom João II. Deve ser trabalho diplomático de Rui de Pina, pois não faz sentido na conceção kôngo do Poder (GONÇALVES, 1985, pp. 87-146). Em 1504, depois da guerra de Mpânzu’a Lûmbu (MATONDA, 2020, pp. 371-406), o rei português expediu uma missão específica para o Kôngo: educação e alargar a evangelização. Dom Afonso mandou vários rapazes irem estudar em Portugal no ano a seguir. O seu próprio filho também seguiu. Em 1508, vieram para Mbânza Kôngo, treze padres loios. Em 1516, verificaram-se dois esforços na expedição de jovens para se formar em Portugal. O filho do rei Dom Afonso Mvêmba Ñzînga foi consagrado Bispo de Útica e regressou ao Kôngo no ano de 1521, em conjunto de vários outros formados. Os tradicionalistas não reconheciam essa autoridade sacerdotal desse bispo kôngo (ZAU, 2013, p. 245). Com esse regresso, começou a desenhar-se a elite de Mbânza Kôngo, tal como o historiador John Thornton nos expõe:

Desde o início do seu reinado, Afonso começou imediatamente a alargar a elite cristã instruída existente, enviando nobres de alto escalão para estudar em Portugal, que, ao regressarem, abriram escolas. As escolas, por sua vez, produziam graduados capazes de servir eles próprios como professores. Afonso trabalhou com estes com conjunto do clero português residente… para alcançar um nível de educação, o que resultou na publicação de catecismos em kikôngo em 1557 e 1624.

Em 1530, como poderia ser também antes, havia uma rede de escolas em todo o país. É seguro dizer que a criação dessa rede de escolas, com professores locais provenientes da elite, foi a garantia mais segura do sucesso do cristianismo até o alvorecer do século XX (THORNTON, 2020, pp. 43-44).

Os Kôngo que regressaram de Portugal nutriram esperança e foram enviadas mais pessoas a ir se formar em Portugal. Mbânza Kôngo passou a ser uma cidade dos sinos, cidade dos intelectuais, por conta de igrejas e escolas. Mas, depois da morte de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga, verificou-se uma ligeira turbulência. Havia três razões.

A primeira é que ele usurpou o poder e os constitucionalistas pretendiam repor a ordem. A segunda consistia em os tradicionalistas tentarem restabelecer a cultura genuína em Mbânza Kôngo, pois a elite letrada passou a ser vista como aberração pela sociedade não-letrada, principalmente aquela que os militares portugueses expulsaram de Mbânza Kôngo em 1504-1505. A terceira razão: possibilidade de sincretismo político e religioso a longa escala.

Com a publicação do manual de catecismo de 1557, mas sobretudo o de 1624, o padre Pedro Tavares – que falava português e kikongo – desempenhou uma evangelização forte em 1629-1635 (JADIN, 1967, pp. 271-402). Mas, havia uma grande resistência na parte das populações, do modo que ele começou a instruir os seus ajudantes diretos. Foi assim que se destacou Francisco Kasola. Segundo o próprio padre, ele era iniciado em feitiçaria. Podemos citar três iniciações obrigatórias e o ñkîsi Lêmba (pelo seu discurso). Acompanhava o padre nas suas atividades pastorais, foi um catequista assíduo até que, certo dia, decidiu criar um movimento que, para ele, traduzia melhor o Cristianismo para a cultura dos Kôngo.

Seria mais fácil traduzir o Cristianismo à luz da espiritualidade kôngo, para compreensão dos Kôngo. É isso que, em crer nas anotações do padre Pedro Tavares, Francisco Kasola fazia. O padre realça que era dinâmico e tinha muitos dons, entre os quais de persuadir a audiência e de curar as enfermidades (JADIN, 1967, p. 352). Os métodos que usava para curar deixam claro que antes de ser batizado, ele tinha passado por três escolas: nzô ñtonono, ñkîsi lêmba e mavwâla ma ñkîmba. Quem passou pelo nzo ñtonono é uma excelente mpovi, e curar da forma que faz, deve ter sido conhecedor no ñkîsi Ñkîmba (Bankimba). De princípio, é exclusivamente no mavwâla (tabernáculo) que se recebe a missão de “deambuler” em nome de Ñzâmbi Lêmba e pregar a palavra de Deus e a salvação. Tal foi, como se verá adiante, Ñsîmba Vita (Kimpa Vita).

Na região de Mbâmba, Francisco Kasola criou seus discípulos e a influência destes entre os chefes Ndêmbo é indubitável, pela nova roupagem cultural destes últimos (BIRMINGHAM, 1966, pp. 120-121). Francisco Kasola promoveu uma elite periférica, que sabia ler e escrever nas línguas latime português, além dos saberes locais. Nasceu o primeiro sincretismo kôngo. Iludido pela sua popularidade, o messias kôngo encorajou a expulsão dos padres, estimulou o boicote às atividades eclesiais católicas e semeou um desdém tónico pelo prelado católico. Esse nacionalismo impulsionou as escolas sincréticas diante das escolas iniciáticas existentes.

No dia 4 de abril de 1632, o inquisidor Jerônimo Vogado e o padre Pedro Tavares foram à procura de Francisco Kasola para prendê-lo na região de Namba Kalombe. Apesar de acompanhados por militares kôngo, não foi possível. A situação foi tumultuosa, mas o messias kôngo não foi detido. Desde então, já não se ouviu falar dele. Contudo, podemos enumerar espaços da sua influência:

1. Nzo’a ñkîsi: religião institucional;

2. Nzo’a ñdêmbo: iniciação aos saberes locais aos jovens;

3. Ñkîsi Lêmba: nas questões práticas medicinais;

4. Kimpasi: espiritualidade kôngo para reconstrução do país.

O segundo caso culminou com Ñsîmba Vita (Kimpa Vita). Presume-se que, logo depois da batalha de Mbwîla, em setembro de 1665, se tenham verificado, por um lado, a dispersão de militares e sociedades. Por outro, nasceu um impulso de reorganização. Isso justifica, de princípio, que kimpasi tenha sido convocado – secretamente – algum tempo depois da morte de Dom António Vita Ñkânga. A influência de Francisco Kasola é indubitável. Por um lado, John Thornton sugere que, em 1652, o padre Joris Van Gheel foi brutalizado em consequência de kuimpasi (THORNTON, 2022, pp. 168-169). Por outro, no campo político, o nacionalismo antiportuguês era animado por Francisco Kasola, no espaço político; no espaço religioso, temos Mfu Maria Mafuta e Dona

Apolónia, que expandiram o kimpasi na zona de Kimbangu, até que tenha surgido Dona Beatriz, que nasceu e cresceu num contexto social marcado pela briga entre católicos do centro e antiportugueses da periferia. Havia duas classes de intermediários: (a) mestres d’escola; (b) mpângala lufusa. O primeiro era composto de aliados dos portugueses; o segundo era um domínio exclusivo para preservar saberes locais. Com a morte de Njînga Mbande, aos 17 de dezembro de 1663, os fluxos entre Luanda e Ndôngo e Ndôngo e Mbânza Kôngo foram animados por mestres d’escola e mpângala lufusa, caso interpretarmos os relatos (BIRMINGHAM, 1966, pp. 125-126). Isso estimulou a quebra de relação entre Dom António Vita Ñkanga e os portugueses e precipitou a declínio de Kôngo e Ndôngo, entre 1665 e 1670.

O kimpasi convocado nesse período era um espaço sincrético religioso, e reconhece-se, nitidamente, a influência de Francisco Kasola. Pelo julgamento de Ñsîmba Vita, que relata o padre Lorenzo da Lucca (CUVELIER, 1953, pp. 228-259), ou pelos acontecimentos protagonizados pelos seguidores de Dona Beatriz, na pluma de Bernardo da Gallo (JADIN, 1961, pp. 411-615), ou ainda, pela crítica histórica que nos expõe John Thornton (1998), é fácil perceber dois núcleos de influência:

  1. Kimpasi: retiro da elite política, económica, militar e religiosa;
  1. Mpângala lufusa: a parte teológica dentro da escola de Filosofia.

O kimpasi é exclusivamente religioso, embora o componente teológico que introduz Dona Beatriz tenha juntado a crença popular. Quem lhe faz esse reparo é o padre Bernardo da Gallo, que era teólogo com bases de Filosofia. Ñsîmba Vita foi ngânga marinda. Isto é, se, por um lado, ela tinha dons espirituais, por outro, não passou pela escola de Filosofia. Foram outras personalidades – Mfu Maria e Dona Apolónia – que eram do kindwêngi e com elas uma variedade de integrantes de kimpasi, como foi o caso de Kibenga Dom Pedro. Essa influência de kindwêngi influenciou o próprio conhecimento que permitiu Ñsîmba Vita desafiar o padre Bernardo da Gallo numa discussão teológica. Ela será queimada viva, acusada do crime de heresia, em 2 de julho de 1706.

Numa só palavra, entre 1491 e 1706, a preponderância externa na escola de Filosofia é evidente na fase inicial: mpângala lufusa. A fase secundária mbôngi’a ndôngutu é a estremadura de conceitos externos. Por um lado, ela naturaliza as importações desde que nelas se encontrem aspetos similares. É o caso de Ñzâmbi Lêmba, a quem Kimpa Vita atribuiu a personalidade de Santo António. Outros casos são: Mfu Maria e Dona Mpolo (Apolónia) que a Tradição comprimiu em uma pessoa apenas. As influências externas não nos parecem ter infetado, nem alcançado a estrutura em si.

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