KÔNGO EM GUERRA E DOUTRINA DE NSÎMBA VITA

Por Patrício Batsikama

Depois da batalha de Mbwîla, os kôngo revoltaram-se energicamente contra a maior parte dos europeus que viviam em Mbânz’a Kôngo. Verificou-se um êxodo massivo, o que levou Dom Afonso II, que reivindicava o trono, a ir ocupá-lo. Os Nsaku não reconheceram o seu poder por não ter sido eleito, de modo que foi deposto um mês depois. Ele fugiu para Mbidizi (Ambriz) com a sua esposa Dona Ana Afonso de Leão e seus apoiantes. De lá, estabeleceram o poder nas terras de Mukôndo, Mbâmba e na parte sul de Mpêmba (atual parte meridional de Mbânz’a Kôngo). Ainda no mesmo ano de 1665, Dom Álvaro VII foi eleito num ambiente de confusão e insustentabilidade política, devido aos mercenários que remanesceram da batalha de Mbwîla.

O capuchinho Girolamo de Montesarchio era seu amigo e foi enviado a Luanda para negociar a paz com os portugueses. Infelizmente, os revoltados na zona de Mbâmba recusaram deixá-lo passar. O padre voltou a Mbânz’a Kôngo em junho de 1666. Mais tarde, o rei foi assassinado pelas tropas enviadas por Mwêne Nsoyo Dom Paulo da Silva. No seu lugar, os vencedores colocaram um jovem de 20 anos, diz Girolamo de Montesarchio, para reinar: Álvaro VIII que reinou até 1669 com a proteção das tropas oriundas do Nsoyo até que se verificou uma breve invasão de Dom Pedro. Entre 1669 e 1670, sucederam ao trono Dom Sebastião e Dom Rafael. Este último substitui legalmente Dom Álvaro VIII em 1669, mas foi forçado a refugiar-se em Luanda com a invasão de Paulo da Silva Mani Nsoyo. Nessa, beneficiou-se do abrigo do governador Francisco da Távora. Com o apoio deste e visto que muitos nobres o desejavam em Mbânz’a Kôngo, voltou ao trono em 1670 onde permaneceu até a sua morte, em 1674, altura em que Dom Daniel de Gusmão assumiu o poder. É de se realçar que, em 1673, foi frustrado um golpe protagonizado por Dom Afonso III. Este último foi detido, julgado junto com seus cúmplices e executado.

Visto que Mbânz’a Kôngo estava sem governo desde 1667, os reis eram proclamados ou eleitos pelos seus apoiantes em Kôngo dya Lemba (Bula) ou Kimbângu. O Papa tinha orientado numa bula o prelado a instalar-se em Kôngo dya Lêmba, assim nos informa Girolamo de Montesarchio, razão pela qual a região foi chamada de Bula ou Mbula, isto é, espaço católico. Contudo, foi em Kimbângu – onde nasce o rio Mbridizi – que se manifestou maior interesse nacional, onde coabitavam a igreja católica e a religião local.

Em Kôngo dya Lêmba, os padres tinham reconhecido Dom Pedro, em 1669, por duas razões. Com o apoio papal e visto que a evangelização nos anos anteriores foi notória, com o maior número de batizados, segundo Girolamo de Montesarchio, foi-lhe entregue o Santíssimo Sacramento do Altar. Esse foi passado a Dom João II em 1683, depois da morte do primeiro. Criou- se a ideia de que o Santíssimo Sacramento do Altar era sinal da legitimidade do poder em Kôngo dya Lemba (Bula). Dona Ana Afonso de Leão se encontrava no Norte de Mbâmba (actuais regiões de Ambriz, Dembos, Bula Tûmba e Nzeto) e viu o seu território ser invadido em 1691 por Dom Manuel Afonso Ñzînga Ñlênge e o seu sobrinho, Dom Pedro Constantino da Silva.

Pedro Constantinho da Silva era sobrinho da poderosa rainha Dona Ana Afonso de Leão, esposa do rei Dom Afonso II que reivindicou o trono logo depois da batalha de Mbwîla e da saída dos portugueses de Mbânz’a Kôngo. Deposto em 1665, fugiu para Ambriz em 1669, onde morreu. A sua esposa assumiu o poder e alastrou o seu domínio em territórios de Mbâmba, no Sul de Mpêmba em Mukôndo (Ñkôndo). Essa foi apenas invadida em 1691 pelo rei Dom Manuel Afonso Ñzînga lwa Nlênge. Dois anos depois, esse rei foi decapitado no dia 23 de setembro de 1693.
Voltando a Dom Pedro IV realçam-se três aspectos ligados ao início do messianismo na África Central Ocidental. O primeiro tem a ver com a sua origem social e o contexto político numa guerra civil longa. O segundo cinge-se às contradições com os antonianos em geral, numa altura que os capuchinhos o teriam visto como razão da unificação do Kôngo e dos seus adversários.

Por último, as circunstâncias como Ñsîmba Vita será presa e morta: tendo erguido Dom Pedro Constantino da Silva como rei interino enquanto decorrem as eleições, nasce um desentendimento entre antonianos e esse numa altura em que a profetisa estava no retiro. Daí, Dom Pedro Constantino da Silva fará as pazes com Dom Pedro Afonso de Água Rosada: nasce uma colusão (cumplicidade) que chegará à captura de Ñsîmba Vita.

A doutrina que Dona Beatriz instalou apresenta ruptura quer na leitura teológica, quer na prática social, de modo que irá influenciar o comportamento social. A maior ruptura é a sua visão sobre a destribalização e desracialização da salvação. Diz a profetisa: “no Dia do Juízo Final, Deus não me perguntará se sou do Kôngo. Ele olhará, isso sim, para a transparência da minha alma”.

Essa crença – que na verdade é bíblica – não era assim ensinada na época. Ao introduzir essa compreensão no meio dos evangelizados, nasce uma dinâmica da fé cristã como um programa local, contando com todos os suportes locais para construir o cenário da salvação: Mbânza Kôngo como Jerusalém, Jesus Cristo sendo africano/kôngo, etc. Essa doutrina traz esperança e, ao se associar com a escatologia endógena, nasce a ideia de Messias propositadamente para salvar os kôngo da guerra que durava há vários séculos. Os resultados foram objetivos, pelo facto da preparação prévia do povo sobre a nova teologia da libertação com uma sacerdotisa endógena ávida de ungir/investir um rei, isto é, fora da alçada dos capuchinhos. Ela construiu a sua doutrina na base da libertação que, no seu programa, compreende:

3.1. Libertação espiritual/cultural: restituir o culto dos ancestrais fora das imposições do “Dia de São Tiago”, ressimbolização do Santo António – espírito franciscano na época – associava-se à restauração cultural que o kimpasi tinha projetado;

3.2. Libertação econômica: valorização do empresariado local e restrições aos investimentos escravagistas, agricultura organizada e mercados financeiros controlados (junto dos Tribunais municipais) foram ações desenvolvidas pela profetisa com resultados objetivos;

3.3. Libertação política: reocupar a capital significava refundar o Kôngo com as 12 linhagens das origens, conforme simboliza a topografia e hidrografia da época. Dessa convenção da fundação, reestabeleciam-se as instituições para normalizar a Constituição;

3.4. Libertação social: integridade ontológica individual ensinada no kimpasi foi repetida na preparação de pessoas virtuosas para assumir uma socialização ampla para alcançar a integridade social. Quer dizer, introduzir a cultura de paz depois da longa guerra.

Ânimo/thumos

Na cultura kôngo, a mulher é um ser sagrado privado. É associada a um leopardo, cujas características destacam a majestade. Isto não quer dizer que não possa atuar no espaço público. Ela participa, mas a sua exposição é reservadamente divina, especificamente, nas questões de iniciação ou consulta. Importa sublinhar que na cosmogonia kôngo, a juventude constituiu o segundo ciclo de vida limitada à aprendizagem. Vamos explicar: Dona Beatriz Ñsîmba Vita era mulher e jovem que estava na terceira fase do 1º ciclo de vida. Logo, era impensável realizar o que ela fez – desempenhou as funções da última fase do 2º ciclo – sem beneficiar da mainmise divina ou sobrenatural, segundo a crença popular dos kongo.

O ser humano tem três ciclos de vida entre os kôngo 1 1º ciclo:

1 0-12 anos de idade: educação da mãe sobre os valores
2 12-21 anos de idade: educação introspectiva e autocrítica
3 21-33 anos de idade: educação profissional e contribuição econômica.
2 2º ciclo
 33-40 anos de idade: mestria profissional e produção social
 40-52 anos de idade: educação às crianças e participação social
 52-63 anos de idade: participação nos assuntos públicos
3 3º ciclo
 63-70 anos de idade: etapa de conselheiros sociais, econômicos e políticos
 Acima de 70 anos de idade: reformado (kamenimeno).

Dona Beatriz Ñsîmba Vita tinha apenas 20-24 anos, isto é, ainda na fase de aprendizagem e de ser explorada economicamente. Idade da força. Nos primeiros contactos com Portugal,  verificou-se que os funcionários públicos no Kôngo tinham entre 45 e 60 anos de idade. Dona Beatriz Ñsîmba Vita desempenhou as funções da terceira fase do 2º ciclo. A tradição chama-lhe de mwâna ñkento quando na verdade era mwâna ndûmba. O termo ñkento significa “esposa madura e legítima” diferente de ndûmba que especifica a juventude. Contudo, o que realmente a Tradição quer dizer é que foi a «Dama da grande Convenção » que se realizou no Kôngo, isto é, a Restauradora. Para devolver ao Kôngo a sua paz, a normalidade constitucional e relançar as fontes de receitas que contribuem para o desenvolvimento social, era preciso animo/thumos. As informações que os padres capuchinhos apresentam sobre Dona Beatriz Ñsîmba Vita e o testemunho que nos oferece a Tradição Oral Histórica sobre ela fazem-nos perceber que a profetisa optava pela emancipação espiritual e independência cultural como ponto de partida para a soberania de qualquer Estado. Por outro lado, a região de Kimbângu era tida como fonte da paz:

Lusûnzi as the guardian of Kimbângu was a deity of peace and harmony highly appropriate for a peace treaty, scarcely one associated with the selfish and greedy side of kindoki.

Traduzimos:

[a pedra de] Lusûnzi enquanto guardiã da região de Kimbângu era uma divindade de Paz e Harmonia estritamente associada a Tratado de Paz, e dificilmente ligada ao lado egoísta e ganancioso do kindoki.

Dona Beatriz Ñsîmba Vita era oriunda de Mbwêla, perto de Kimbângu. Ora, este local foi tido como a região de onde viria o salvador, o Messias. Existiam, entre outras razões, uma que é historicamente registrada. Ela parecia materializar a profecia de Nsaku Ne Vunda de 3 de Abril de 1491: (a) reorganização em vários sectores da vida pública; (b) repovoação de São Salvador; (c) ressurreição frequente e milagres; (d) edificação de uma Igreja que não dependerá do poder de Roma; (e) promessa que morreria como Jesus Cristo; (f) o temor ao seu poder, visto que o povo estava ciente que falava com o Espírito de Deus, ou seja, era considerada como ungida dos ancestrais.
Ñsîmba Vita estava visivelmente grávida entre Dezembro de 1705 e Janeiro de 1706, enquanto efetuava suas ações na cidade de Mbânz’a Kôngo. Foi no final de fevereiro que ela se retirou do público e se juntou à elite de kimpasi, tendo-se abrigado em Môngo’a Kilûnda. Os antonianos seguiram-na, pois aguardava-se pelo grande milagre ocorrido a cada vez que se fazia esse retiro: morte/ressurreição de Ñsîmba Vita. Segundo a Tradição, acreditava-se na manifestação de Cristo mvuluzi73 e o fim da presença dos missionários. Lorenzo da Lucca fez menção a isso. Vamos recapitular os factos:

A líder espiritual de kimpasi nacional foi presa alguns dias antes da Páscoa, isto é, em plena Quaresma. Ela já tinha dado à luz um menino, naquela altura. Face à pressão e tortura, não deixou de afirmar que o filho era seu, mas foi concebido pela força do Espírito do Céu e não com o “anjo” João Barros. Segundo o kimpasi de Ñsîmba Vita, o Cristo nasceu em Mbânz’a Kôngo, isto é, ela falava da salvação. A Páscoa aconteceu no dia 03 de abril de 1706, e evitou-se a morte/mártir dela. Porém, depois de queimá-la, no dia seguinte, três de julho de 1706 apareceu a Quarta Minguante, ou seja, a “meia-lua esquerda”. Na madrugada do dia que seguiu a sua morte, alguns fanáticos reuniram os ossos da Ñsîmba Vita e queimaram-os até torná-los cinzas, tal como nos narra o padre Lorenzo da Lucca: “Não contentes com isso, na manhã do dia seguinte, alguns homens vieram queimar alguns ossos que restaram e reduziram tudo a cinzas muito finas”.  Talvez se tratasse de “maëstri da Igreja” que tenham queimado os ossos da profetisa Ñsîmba Vita. Também, é possível interpretar esse facto como o ritual ñzîka, e desta vez seria executado pelos fiéis seguidores da profetiza. A cerimónia de nzîka consistia em queimar alguns ossos dos ancestrais (que se encontravam na caixa dos ancestrais: lukobi lwa bakûlu), para celebrar a junção das terras entre diferentes clãs. No domínio religioso, esse ritual expressa a domiciliação do Espírito de Ñzâmbi num espaço considerado sagrado (por se ter realizado a epifania). Se os antonianos recolheram os restos mortais da profetisa, tal como o diz Lorenzo da Lucca, dever-se-ia tratar da santificação do ritual da profetisa.

À tarde e noite, apareceu o Quarto Minguante e todos os kôngo interpretaram esse fenômeno como a ressurreição de Ñsîmba Vita. Vamos explicar começando com o padre Lorenzo da Luca que registrou essa reaparição de Ñsîmba Vita nesses termos:

Após sua morte, os antonianos, longe de voltarem para resipiscência,80 tornaram-se mais obstinados do que nunca. Eles publicaram que a mulher venerada por eles como santa (Ñsîmba Vita) apareceu no topo das árvores mais altas de San Salvador.

Tudo tinha a ver com a aparição, no céu, da meia-lua que foi amplamente interpretada como o Espírito que Dona Beatriz tinha e que era do Altíssimo. Daí, percebe-se a cerimónia de nzîku. Quando o padre sublinhou «… no topo das árvores mais altas de São Salvador» ele fornece-nos duas pistas inconfundíveis: (a) a árvore mais alta era ñsânda, do modo geral; (b) Yâla ñkûwu que é tida como a árvore mais alta de São Salvador era e ainda é ñsânda. Em relação a ñsânda, essa simboliza a divindade da missão levada a cabo por Dona Beatriz Ñsîmba Vita. A questão de Yala Ñkûwu é específica: local dos Espíritos fundadores da nação, por um lado, o Espírito de Deus, por outro. Por isso, a catedral foi construída exatamente onde os católicos presumiam ter sido o local sagrado. Embora não dito de forma direta, essa árvore relaciona-se com os ñkîsi nsi. Ora, os antropólogos debruçam-se sobre a religião na África Centro-Ocidental associando bañkîsi nsi à representação do Espírito de Deus vivo:

O Rev. Dennett vê os Bakici Baci83 como “símbolos dos atributos de Nzambi”, os quatro poderes da essência pessoal que é Deus, os grupos Nzambi com quatro partes: (i) Nzambi, ideia ou causa abstrata; (ii) Nzambi Mpungu, Deus Todo-Poderoso; (iii) N’zambici84 ou Deus na terra (a grande princesa de uma lenda Vili…), e (iv) Kici85, ou qualidade misteriosa inerente às coisas e que inspira medo e respeito….

Os antonianos reoxigenaram o movimento, pois havia ainda mais credibilidade. Mfu Maria também voltou a reaparecer dizendo que não tinham nada a temer. William Graham Lister Randels conclui, em relação ao movimento antoniano, que:

Já antes do assalto final que em 1709 D. Pedro IV lançou contra São Salvador, ainda ocupado por hereges rebeldes (antonianos), a carreira de Beatrice (Ñsîmba Vita) foi abalada… com a sua condenação na fogueira, na companhia de seu amante, São João. No dia 2 de julho de 1706, em Kimbangu, aos olhos dos missionários, eles foram entregues juntos às chamas. Mas a heresia só terminaria três anos depois com a conquista final de São Salvador por D. Pedro IV87 (quer dizer, em 1712).

O espírito de sacrifício identifica a representação do Messias, tal como ocorreu com sacrifício (lenhas e fogo: morte na fogueira) com Abraão. O Messias bíblico foi enviado ao Egito para atender as aflições dos israelitas libertados.  Como símbolo, foi instituído que fosse sacrificado um cordeiro – no dia 10 de abril de cada ano – para celebrar a Páscoa. O animal de sacrifício deveria ser sem defeito. Curiosamente, Ñsîmba Vita era, assim testemunha o padre Lorenzo da Lucca, esbelta e fina. Também ela foi queimada viva, com a lenha. Se a representação do Messias, em Jonas, fez três dias no ventre do peixe,  e se Jesus Cristo ressuscitou dos mortos depois de três dias, há uma curiosa convergência com Ñsîmba Vita: foi presa em plena Páscoa, injustamente julgada e condenada (tal foi o caso de Jesus Cristo). No terceiro dia, depois da sua morte, estava espalhada a notícia que estava viva. Se todos se baseavam no sinal da meia-lua (no qual aparece a Senhora com lenha na cabeça e uma criança no colo), muitos assumem tê-la visto independentemente de terem sido seus seguidores.

Esses aspectos apresentam-nos novas configurações hagiológicas que subsidiam a metempsicose no padrão do Messias trans-histórico. Nos confins da terra foi prometido o Espírito de Deus nesses termos: “Contudo, recebereis Poder quando o Espírito Santo descer sobre vós, e sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra”.

Depois da morte, na fogueira de Ñsîmba Vita, aumentou-se a heresia entre os antonianos. Toda a cidade de Mbânz’a Kôngo tinha testemunhado o quanto Ñsîmba Vita serviu, efetivamente, Ñzâmbi’a Mpûngu e os seus discípulos afirmavam que ela tinha voltado dos mortos. Pululavam inúmeros comentários, muitos dos quais tornaram-se “Tradição Oral” de milhares de linhagens. Com isso, estavam criadas as condições para que fosse reivindicada uma Religião local ou, como se verificou, o sincretismo entre a religião local com o cristianismo. A própria Dona Beatriz Ñsîmba Vita Ñtâmbu’a Tana permaneceu cristã introduzindo as crenças endógenas, sem misturar com o kindôki negativo e todo o seu aparato antissocial. Ela separa claramente o sagrado do profano e sobrevaloriza a matriz africana no cristianismo. Esta possibilidade permite-lhe inserir o sagrado kôngo no sagrado cristão dando assim uma nova roupagem ao Catolicismo local.

As viagens de Kimpa Vita

A morte pelo fogo tornou Ñsîmba Vita uma pessoa sagrada. Associar o seu filho a essa morte pelo fogo pressupõe que o espírito desse – aqui é preciso considerar o sentido da mãe Ndûndu no kimpasi – justifica a força espiritual97 através do fogo que os antonianos tiveram de manter uma religião local e quase expulsaram os missionários europeus. Ao mesmo tempo, legitima o poder espiritual. No Kôngo desta época, cada casa deveria ter o fogo aceso como forma de manter o Espírito de Ñzâmbi Lêmba100 – ñkîsi nsi – com todas as suas bênçãos. O fogo é a fonte do poder espiritual. Paulin Hountondji realça o simbolismo do “fogo sagrado” associado ao Espírito de Ñzâmbi. Daí, em virtude da Tradição Oral que sustenta as religiões locais, faz sentido que este Espírito do filho prometido esteja associado com o fogo: espírito é fogo, fôlego. Para o messianismo, que nasce de um sincretismo claro, a figura do Espírito Santo surge como ponto de partida. Ao prefaciar o livro de Martial Sinda, Roger Bastide constrói o conceito de Cristo negro cuja simbiose com o Espírito de fogo – que não difere muito do Espírito de fôlego – deu corpo aos fenômenos sociais de que foram protagonistas Simon Kimbangu em 1921-1951 e com Simão Gonçalves Toko 1943-1983.

O Kimbanguismo e o Tocoismo107 nascem na base do Espírito Santo108 como desapropriação do Evangelho da Libertação. Os antonianos anunciavam-no, como forma de manter viva a profecia da Dona Beatriz, isto é, uma igreja que já não iria depender do Vaticano e que terá como líder espiritual um filho nascido localmente. Também «o Espírito estará no filho que salvará o seu povo» – na cosmogonia kôngo – carrega o mesmo sentido de filho de Ndûndu que é um fenômeno espiritual e biológico, ao mesmo tempo. Isto significa que o Espírito estaria num descendente por linhagem. A linhagem Kôngo Na Sadi – que veremos adiante – resume as guerras e a restauração pelos antonianos do Kôngo quando se refere ao morto-vivo enquanto refundação do Kôngo: messianismo avant-lettre.

Comentário

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*


Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.