Por Bruno Pastre Máximo
Introdução
Um dos principais debates historiográficos sobre os séculos XVI e XVII no Kongo consiste na questão da conversão do reino ao cristianismo. Esta questão é de fundamental importância, pois tem como pano de fundo a ocidentalização e a influência europeia na constituição do estado africano. Podemos dividir o debate em pelo menos três posições distintas: a primeira surgiu nos 1950 e 60 com as teses de Duffy e Davidson . Esses autores, em seus escritos, interpretaram a conversão do rei do Kongo ao cristianismo como um ato de submissão aos europeus, culminando numa aliança desigual e falha, já que Portugal, por ter maior nível de desenvolvimento, seria mais hábil para se beneficiar de sua posição que o Kongo. Decorrente disso teria havido um massivo envolvimento dos portugueses nos assuntos kongo, que culminaram na quebra do poder e da autoridade do reino tornando-o uma marionete nas mãos dos portugueses.
Em um segundo momento do debate, o autor David Birmigham refuta esta posição, alegando que a conversão ocorreu somente de forma superficial, tendo como objetivo o de ganhar representatividade e vínculos diplomáticos nas cortes europeias, mantendo-se no Kongo a religião tradicional, mesmo que incorporando algumas características cristãs. Anne Hilton seguiu esta interpretação, também defendendo que o monarca percebeu que poderia ter no cristianismo uma fonte de legitimação independente das questões internas, não necessitando da adesão dos senhores locais e sacerdotes para apoiá-lo. Além disso, ele teria um canal direto com novas mercadorias que, como eram bens de prestígio, trariam mais poderes para o monarca.
Buscando romper com estas interpretações, em um terceiro momento do debate, Thornton propôs que o cristianismo africano foi construído com base em uma mistura de cosmologias, tanto a católica quando a cristã. Segundo o autor, este amalgama ocorreu, pois, a tradição africana permitia a incorporação destas novas práticas e neste momento elas foram aceitas pelos clérigos locais. Por parte do cristianismo, segundo Costa e Silva, se aproximando de Thornton, a religião católica não era conflituosa na região, já que “O cristianismo popular dos séculos XV a XVII tinha muitas semelhanças externas com as práticas religiosas dos kongo. Em ambos os sistemas espirituais, o divino impregnava a natureza e dirigia o destino das comunidades e dos homens.”
Pretendo neste artigo contribuir com o debate, porém não me concentrando na questão religiosa, mas sim no sistema jurídico kongo após a presença portuguesa. Este tema ainda não foi abordado de forma sistemática pela historiografia consultada, deixando um caminho fértil para futuras discussões. Nosso objetivo é discutir sobre duas questões: (1) comprovar a existência de um sistema jurídico africano; como era a interpretação e utilização pelos monarcas kongo das leis portuguesas. O foco principal será no reinado de três reis – Afonso, Diogo I e Álvaro I. A escolha destes governos se deu principalmente pela maior documentação referente às questões jurídicas.
Documentação consultada
A documentação analisada neste artigo consiste nas Ordenações do Reino do Portugal, e em documentação administrativa compilada na Monumenta Missionária Africana.
O sistema jurídico de Portugal na Época Moderna foi consolidado, sucessivamente, em três Ordenações: Afonsinas, em 1446, Manuelinas, em 1521, e finalmente as Filipinas, em 1603. A proposta dessas Ordenações era congregar todas as leis do reino, tratando dos costumes da corte, das instituições, da religião, do comércio e das questões penais. Com a expansão marítima do final do século XV, novos territórios foram anexados pela Coroa e necessitavam de uma nova legislação. Foi neste momento em que se produziram as Ordenações Manuelinas, que valeram até o final do século XVI, e são compostas por cinco livros, cada um com diversos títulos.
A Monumenta Miss/onária Africana6 é uma grande obra de compilação de documentos presentes em arquivos europeus referentes ao período das grandes navegações para a África ocidental, e é composta principalmente de documentos administrativos, crônicas e relatos de viagem. Utilizaremos neste artigo os primeiros quatro volumes que compreendem o período entre 1482 até 1600. Há uma grande limitação que consiste principalmente na ausência de informações sobre questões cotidianas, especialmente a respeito das classes que estão fora do poder político. Isso se deve à natureza do corpo documental, que foi escrito por uma elite política destinando-se à outra. Outro grande problema, como apontou Thornton, é que devido à composição dos arquivos, somos induzidos a dar uma grande ênfase à participação portuguesa na história do Kongo, fato que pode não ter ocorrido, já que não temos acesso a documentos internos do reino do Kongo e sim somente aqueles destinados a Portugal.
Uma característica peculiar para o período e para a História da África é que parte da documentação foi escrita por africanos, em especial o rei do Kongo. Assim, podemos muitas vezes fugir do etnocentrismo europeu e tentar encontrar uma interpretação africana acerca dos temas debatidos nas cartas. Porém, devemos tomar toda a cautela possível para a análise da documentação, como ressaltou Ilídio do Amaral:
Não podemos esquecer que estamos em presença de documentos que, na maior parte dos casos, resultam de um ato de compromisso entre alguém (africano) (…) de uma cultura sem escrita, que ditava palavras e frases que compunham ideias e princípios muito específicos, e outro, de cultura muito diferente, instruído na leitura e na escrita de textos, que, ao recolher as informações do primeiro dificilmente podia registrá-las sem fazer intervir as suas percepções, os seus modelos (europeus) de compreensão dos assuntos. Por isso mesmo é natural que os escreventes introduzissem nos textos determinados por ideias e palavras de outrem as suas próprias interpretações dos fatos, as suas percepções particulares.
A chegada dos portugueses no Kongo
A história da presença portuguesa na região iniciou-se em 1483, com a chegada dos portugueses comandados por Diogo Cão à foz do rio Zaire. Eles se encontraram com um governante local presenteando-o com alguns objetos e deixando uma inscrição em pedra. Antes de se retirarem da região, como de costume, sequestraram quatro africanos para levar a Portugal com a finalidade de ensinar-lhes o português. Diogo Cão prometeu retornar após 14 luas, o que de fato cumpriu. A intenção principal dos contatos com os povos africanos pelos portugueses era a busca do reino cristão de Prestes João (Etiópia), para realizar uma aliança contra os mouros, encontrar metais preciosos e participar do vindouro, e rentável, comércio de escravos. Enquanto na região da Guiné a presença portuguesa se restringia a questões militares e econômicas, no Kongo foi diferente. Desde o início as relações entre reinos se mostraram muito amistosas e a presença portuguesa adquiriu um caráter inicial de eclesiástica. O monarca que encontrou os portugueses aceitou se converter, e desta forma, Nzinga-a-Nkuvu, se tornou o primeiro rei católico do Kongo, adotando o nome português de João I. Com a conversão de João I, seguiramse embaixadores e capitães portugueses para o Kongo.
Com a morte de João I, iniciou-se uma guerra pela tomada do poder. Dois irmãos lutaram entre si: um baseado no direito católico da primogenitura e o outro com base na escolha dos tradicionais líderes locais. Afonso I, representante do partido cristão, com a ajuda dos portugueses, venceu a disputa e se tornou rei. Seu reinado foi o mais longo da história do Kongo, compreendendo o período de 1509 a 1542. Seu governo foi o responsável pela “consolidação” da religião católica, a mudança no sistema de sucessão ao trono, a implantação de um código de leis e de uma nova rede comercial, envolvendo, principalmente, o comércio de escravos e outros bens em troca de produtos europeus. Entre tantos altos e baixos, ele conseguiu manter-se no poder e centralizá-lo cada vez mais na cidade real de Mbanza Kongo, que passou a se chamar São Salvador.
Afonso I tornou-se um aliado precioso na região e portugueses começaram a ir viver no seu reino. Nesta nova situação, o rei pediu a coroa portuguesa auxílio tanto nas questões religiosas quanto na administração dos seus súditos em território africano. Portugal então organizou uma embaixada com funcionários, presentes e enviou as Ordenações.
As Ordenações no Kongo
A primeira menção das Ordenações em território kongoles se dá em 1512, no regimento da embaixada de Simão da Silva ao rei do Kongo Afonso I. Este, além de ir como embaixador também acumulou o trabalho de capitão e, a pedido do rei do Kongo, deveria ensinar por meio “(…) dos livros das ordenações que levais [como] em grosso o modo da justiça e a ordem em que se faz e os casos por que se mata por justiça e assim as outras condenações de casos crimes.”9 Por outro documento, fica claro que a intenção de enviar um capitão não era para impor a lei portuguesa no Kongo, mas “(…) para fazer justiça dos Portugueses [dos portugueses vivendo no reino], que lá compreendesse em erros, assim crimes, como civis (…)”10, sendo que essa atitude cabia somente ao capitão, que deveria “(…) dar execução, segundo forma do poder e alçada nossa que levais.”11 Essa alçada foi determinada por um artigo nas Ordenações Manuelinas, deixando bem claro o poder do capitão.12 Ele poderia julgar sem apelação todos os crimes que não envolvessem pena de morte. Para estes, ele deveria mandar os autos e apelações para a Corte julgar se ele merecia a pena de morte ou não, com exceção de alguns crimes graves, tais como traição, furto e roubo de navio.
Sobre o regimento, discordo da tese de Amaral que interpreta esse regimento como uma maneira de Portugal fazer uma aculturação do Kongo. Para ele a dominação cultural portuguesa é “express[a] em vários passos do regimento, ao ponto de se terem preparado selo de armas, sinete do fac-símile da assinatura que o rei do Congo deveria utilizar em documentos régio e brasão feito no melhor estilo da heráldica portuguesa.” Penso que Portugal desejava que o Kongo seguisse suas normas como reino cristão, mas deixou a opção da aceitação ou não das mesmas para o monarca africano, havendo um espaço para discussão, não sendo, pois, uma imposição europeia.
Prevendo que o rei do Kongo se interessaria pelos julgamentos, D. Manuel I fez uma ressalva:
E querendo el-Rei do Congo estar presente no julgar dos feitos da sua gente, estareis com ele em todos os feitos que sua gente tocar e aquilo que ele quiser se faça (…) porque assim queremos que o façais no tocar a sua gente, dando-lhe porém vosso parecer do modo em que vos parece que deve passa.
Ou seja, para Portugal, as ações cometidas pelos portugueses vivendo no Kongo deveriam ser submetidas às leis de Portugal, não às locais. Por isso podemos afirmar que Portugal desde o início da interação com o Kongo reconheceu sua independência política e jurídica14, confirmando um código de leis africano que deveria ser respeitado e que o seu sistema somente deveria ser aplicado aos nativos, caso o rei quisesse.
Sistema jurídico do Kongo
Sabemos da existência de leis e de um sistema jurídico no Kongo por meio de documentos indiretos. A menção de funcionários kongo relativos à justiça aparece em citação de um vigário numa carta, para D. Manuel I, de maio de 1516. Nesta carta, o eclesiástico elogia muito o rei do Kongo, afirmando que este possui profundo conhecimento sobre as escrituras sagradas, estudando-as dia e noite, e que, possivelmente, recebia a intervenção do Espírito Santo nos seus sermões. Além do mais, ele é muito rígido contra a idolatria, como se pode verificar no trecho a seguir:
(…) isso mesmo saberá vossa Alteza que ele é muito justiçoso, e pune grandemente os que adoram ídolos e com os ídolos manda queimar, e tem por todos seus Reinos oficiais da justiça para prenderem todos os que souberem que tem ídolos, ou fazer feitiçaria, e outras quaisquer maldades que toquem a nossa santa fé católica (…).
Claramente, essa afirmação é um exagero do autor que queria acima de tudo elogiar a atuação de D. Afonso I, mas é plausível de se pensar que existia no Kongo uma rede de pessoas encarregadas de fiscalizar em nome do rei, que não se limitava às questões religiosas, mas que tratava também das pendências locais. Thornton aponta para a existência de um conselho real, que além de cuidar das questões da burocracia estatal também tinha a função de controlar os ulgamentos.16 Acreditamos que durante o século XVI a cultura da oralidade fosse muito mais utilizada entre os oficiais de justiça kongolesa, sendo à base dos seus julgamentos às tradições ancestrais. Esses provavelmente eram, segundo Hilton, encabeçados por anciões (nkuluntu) da família tradicional (kanda). “Os nkuluntu julgavam assuntos civis e penais (…)”17 . Uma prática similar podia também ser observada na legislação portuguesa, se tomarmos por equivalente o direito costumeiro. Novamente lamentamos por não existir mais informações sobre essas tradições, mas por meio de reclamações dos portugueses e do maior interesse do rei em controlar o comércio de escravos podemos resgatar duas leis existentes no reino do Kongo. Elas foram criadas possivelmente após a presença europeia na região, durante o reinado de Afonso I e são distintas das Ordenações Manuelinas.
A primeira é uma lei que proíbe que qualquer morador do kongo envie cartas para fora do reino sem a autorização do rei. Esta é uma queixa constante durante todo o reinado de D. Afonso I e seguiu sendo no de seus sucessores. Ela prejudica, pela análise da documentação portuguesa, principalmente os lusitanos que faziam críticas à administração real ou informavam à Coroa portuguesa a existência de metais preciosos. Temos vários indícios da existência dessa lei, como, por exemplo, em uma carta de 1539, de um português habitante do Kongo para o rei D. João III, na qual ele descreve a censura existente, “(…) foi por que nesta terra hão por maior erro escrever a V. A. que fazer hum grande crime; e por [esta] causa tem guardas nos portos e passagens daqui até Sonho, que são quarenta léguas e todas as cartas que vão para o reino e Ilha e de lá vem tomam e trazem a Sua Real Senhoria (…).” O português também descreve o que aconteceria caso a carta retida contenha informação contrária a realeza kongo (como críticas a conduta moral do monarca e da Coroa ou pedidos para intervenção portuguesa em assuntos internos do Kongo) “(…) isto fazendo-lhe entender escreve mal dele a V.A. dá alguns agravos seus, [que] quá faz os tributos e leis novamente contra os homens, em dano as suas fazendas e trato.”. A lei é uma amostra das tentativas do rei do Kongo em controlar as informações que entram e saem do reino, sendo fundamental esse monopólio para a manutenção e legitimidade de seu poder.
A segunda lei surge de um debate entre D. Afonso I e o rei de Portugal sobre o comércio de escravos. O rei do Kongo reclama da atuação dos mercadores portugueses, que levam seus preciosos produtos para os kongo deixando-os ávidos em obtê-los, cometendo todo tipo de irregularidade, como escravizar forros e livres. Para combater essa prática nefasta, Afonso decreta: (…) por lei que todo o homem branco que em nossos reinos estiver e comprar peças por qualquer maneira que seja, que primeiro o faça saber a três fidalgos e oficiais de nossa corte (…) para verem as ditas peças, se são cativos, se forros; e sendo por eles despachados, ao diante não terão nenhuma dúvida nem embargo e as poderão levar e embarcar. E fazendo o contrário perderão as ditas peças. 1
Essa lei visava à preservação do monopólio real sobre o comércio, impondo sobre ele um controle burocrático para uma maior fiscalização e arrecadação. Por meio destes exemplos, podemos observar a existência de leis e de práticas jurídicas no reino do Kongo, mesmo que não estejam explícitas por causa do viés da documentação. As leis citadas surgiram para legislar em áreas possivelmente antes inexistentes dentro da tradição kongolesa e o mais interessante é que neste caso elas se aplicam aos portugueses, ocupando um espaço jurídico inexistente na legislação portuguesa.
A interpretação da lei portuguesa no Kongo
Como melhor forma de analisar os dois sistemas jurídicos, confrontaremos as pendências jurídicas existentes no Kongo com a legislação portuguesa, para tentar evidenciar qual era o papel de Afonso I nos julgamentos e como ele utilizava a lei local algumas vezes, em detrimento da portuguesa para assuntos referentes aos lusitanos viventes na corte. Isso não significa que ele não conhecesse os livros, já que uma fonte afirma que ele recebeu os “(…) cinco livros de Ordenações os quais (…) o Rei D. Afonso os leu todos (…)”
Através deste precioso documento podemos observar o julgamento de D. Afonso I quando lhe foram apresentadas as Ordenações. O documento é um trecho da crônica de Damião de Góis do ano de 1516, na qual o autor relata a apresentação do código de leis portuguesas para o rei do Kongo e sua reação. O rei não aceitou as leis, pois:
(…) v[ia] que era impossível reduzir seus sujeitos, e vassalos a tal ordem de viver (…)” e ainda as critica, “(…) [o rei do Kongo] disse um dia rindo, (…) falando do que lera, e achara daqueles livros [Ordenações]: Crasto em Portugal que pena se dá a quem põe os pés no chão, quase dizendo que eram tantas as leis, ordenações, artigos, cláusulas (…) que era impossível viver ninguém tão resguardado (…).
Por este trecho, podemos concluir que ou o escrivão utilizou-se do nome do rei do Kongo para criticar as leis portuguesas ou realmente o rei do Kongo tinha autoridade e conhecimento, não só para recusar as leis para os seus súditos como, também, para considerar às suas melhores para o seu reino. E esta atitude não se notou somente na retórica real, mas também foi refletida nas suas atitudes futuras, quando teria que intermediar conflitos entre os portugueses. O caso que será analisado a seguir ocorreu no mesmo ano daquela afirmação e se refere a um assassinato ocorrido em Mbanza Kongo em que um português foi assassinato por um patrício.
A confusão se iniciou com a morte de Simão da Silva no trajeto entre Mbanza Soyo e a capital. Por determinação de D. Manuel I o encarregado de substituí-lo, caso fosse necessário, era o seu escrivão Álvaro Lopez. O corregedor português no Kongo se revoltou com a decisão do monarca, não aceitando Álvaro como substituto, assim e eles discutiram. Para evitar maiores conflitos, Afonso I aceitou que o corregedor fosse dispensado e retornasse para Portugal. Enquanto este se dirigia para o porto de Mbanza Soyo, o rei do Kongo entrou em guerra contra populações rebeladas do reino, indo inclusive pessoalmente para o campo de batalha.
Em seu lugar como governante do reino, deixou como encarregado “(…) Álvaro Lopez por capitão com todo o meu poder, onde ficava a rainha minha mulher. E enquanto eu lá fui nunca Álvaro Lopez fez coisa de meu desserviço, mas antes fez tudo o que era Justiça”. Quando o rei retornou, recebeu a informação de que o corregedor dispensado estava ainda no porto e que perdera o barco para Portugal, encontrando-se muito doente. Afonso I chamou-o de volta para Mbanza Kongo e concedeu abrigo para ele na corte, enquanto este aguardava uma próxima embarcação para Lisboa. Seu retorno à capital, o corregedor inicia uma trama contra Lopez, porque ele insistia em cumprir o estatuto e obrigações régias ao invés de servir aos interesses da comunidade portuguesa no kongo (que não correspondiam necessariamente ao desejo do monarca português).
A revolta se instalou, quando o corregedor dispensado se juntou a religiosos e outros oficiais portuguesa no Kongo e começaram a pedir a saída de Lopez, se recusando a servir o rei enquanto isso. Afonso I tentou resolver este impasse, buscando sua solução no código jurídico português, e desta forma solicitou as Ordenações do corregedor dispensado para consulta. Este se recusou a dar para o rei, alegando que ele possuía a lei velha.
Depois disso, o padre pediu para que Afonso I assinasse um alvará para abrir um inquérito contra Álvaro Lopez com a pena de ser excomungado caso não o fizesse. O rei assinou e a investigação foi iniciada. Passados alguns dias, o rei fez doação para Álvaro Lopez de vinte e cinco escravizados. O corregedor não sabendo da mercê, em presença dos dois, acusou Álvaro de ter furtado os escravizados do rei. Afonso I se colocou em defesa de Álvaro, e o corregedor dispensado, ao saber da verdade sobre a mercê, “(…) veio onde o Álvaro Lopez estava sentado diante de mim e lhe deu com um pau que trazia por bordão, três ou quatro pancadas.” O rei se espantou com a violência da ação, porém não tomou atitude. Álvaro ao se levantar jurou o corregedor dispensado de morte, o que aconteceu alguns dias depois. Para escapar dos outros portugueses ele se afugentou na igreja de Mbanza Kongo. “E outro dia todos os homens brancos me requeriam que o mandasse tirar da Igreja e que lhe mandasse cortar a cabeça. E eu não quis, mas esperei até que veio Manuel Vaz e mandei-lhe que o levasse à ilha [de São Tomé].”
Para melhor análise das ações de Afonso I, buscamos comparar as suas atitudes tomadas (ou omissas) em relação às Ordenações Manuelinas, com as quais ele tivera contato.25 Quando da primeira irregularidade cometida, se observou que o rei acolheu em sua residência o corregedor dispensado, mesmo este armando uma conspiração contra Álvaro Lopez, porque a comunidade portuguesa se recusava em cumprir o regimento. Podemos enquadrar esses fatos em diversos delitos; para essa análise recorrerei a dois: o primeiro – o da proibição de dizer injúrias a julgadores26 e o segundo – desobedecer ou resistir à ordem do oficial de justiça. De acordo com a primeira lei, ao saber que havia uma conspiração contra o nomeado de D. Manuel I e ouvir sendo-o caluniado, Afonso I deveria ter se imposto como testemunha do ato e com isso “(…) o julgará, e o punirá segundo a qualidade das pessoas, e achar por Direito, e Nossas Ordenações que merece por dita culpa”. Ele não tomou atitude. Pela segunda lei, ao descumprir o regimento e as ordens do Capitão e do rei de Portugal, o corregedor (que nesta altura ainda não tinha agredido Álvaro) deveria ser “(…) degredado para Nossos Lugares D’Além por dez anos.” Além dessas duas infrações, a não punição do corregedor ia contra uma lei específica com relação ao poder do Capitão nos territórios africanos, já mencionada anteriormente2.
A solução do conflito também foi problemática. Pelo teor da carta, Afonso I em nenhum momento questionou as atitudes de Álvaro Lopez e, mesmo assim, o enviou para São Tomé, não explicando o porquê desta sua atitude. Para este caso, podemos concluir que as atitudes de D. Afonso I correspondiam à sua concepção de esfera jurídica. Ele só tomou atitude, no caso, quando a vontade dos portugueses foi contra a sua. Até então, ele deixou os portugueses resolverem entre si as suas pendências, já que possuíam legislação para isso. Para ele, havia uma clara divisão entre o direito português e kongoles, não os misturando na medida do possível. Após a morte do monarca kongo Afonso I, deu-se uma disputa pela sucessão do trono. Novamente envolvendo as duas concepções de direito: D. Pedro defendendo a primogenitura e D. Diogo a eleição. Após conflito bélico, D. Diogo assumiu e iniciou um turbulento reinado marcado pela divisão da nobreza kongo entre as duas facções conflitantes. O reinado de Diogo I nos mostra uma mudança clara de atitudes com os portugueses se comparado a seu antecessor. Ele, desde o princípio, na visão dos portugueses, se mostrou muito hostil à presença deles na região, criticando-os muito e fazendo incidir sobre eles penas pesadas. O seu governo (1545 – 1561) se sustentou no poder graças ao fortalecimento do monopólio real do comércio, mesmo com revoltas internas, principalmente, na região do Ndongo.
O primeiro indício da mudança de postura com Portugal é verificado em uma carta, de 1549, escrita por D. Diogo I para D. João III. Nesta carta ele critica duramente alguns padres que estão no seu reino, que ao invés de cumprirem suas funções se preocupavam mais em enriquecer com o tráfego e arrumar prostitutas. Conta que só não os repreendeu por serem vassalos de Portugal. Para resolver essa situação, ele alega que D. João II enviou uma carta31 para seu antecessor, D. Afonso I, autorizando-o a praticar punições contra portugueses e, …) ped[indo] a V. A. [D. João III] que haja por bem nos confirmar a mesma carta, da maneira e sustância dela, para ser repressão e temor dos que não fizerem o que devem em nosso Reino, e haverem temor de em cada um se fazer a execução que na dita carta se contém e por isso deixaram de fazer o que não for serviço de Deus (…).
A diferença entre os dois reis se dá bem neste ponto. Enquanto Afonso I deixava os brancos resolverem os problemas jurídico entre eles, só intervindo quando os mesmos iam contra sua vontade, D. Diogo I buscou atribuir para si a função de legislador perante os portugueses e, principalmente, não separou a esfera jurídica do Kongo da de Portugal, buscando uma autorização de Portugal para fazer valer a sua vontade.
Um exemplo desta sua política se encontra em uma devassa pedida por D. Diogo I contra possíveis traidores e conspiradores. Em 1550 sua legitimidade e força política ainda eram questionadas por outros nobres do reino que armaram um complô para retirá-lo do poder. Porém este foi descoberto por Diogo I que mandou tirar devassa para “(…) que em Portugal seu Rei Irmão seja informado da verdade (…)”. As testemunhas consultadas foram onze no total, sendo que somente duas eram portuguesas. Elas não foram escolhidas pelos portugueses responsáveis pela devassa, mas mandados a depor pela vontade de “(…) sua R.S. (D. Diogo I)”. Os testemunhos envolveram denúncias de muitos outros líderes africanos, sendo que a participação dos europeus foi em favor da permanência do rei, incluindo uma quebra do sigilo religioso por um padre, que ao escutar uma confissão de um traidor a revelou para um informante do rei.
Além dos testemunhos, temos a reprodução de uma carta do principal “traidor”, Pedro Camguano Bemba, enviada para seu irmão que vivia em São Tomé. Ela foi retida no porto de Mpinda e anexada ao processo como prova contra os acusados. Nesta carta, Pedro afirmou que D. Diogo I mandou matar toda a sua geração, e “(…) que me há de matar e que há de ficar seu filho na minha renda (…)”. As consequências da traição também afetaram a família do irmão, sendo que o filho dele ia ser separado do seu neto que ainda está por nascer, e “(…) ser degradado para todo e sempre jamais.” Desesperado, na carta, Pedro pedia para seu irmão o ajudar, escrevendo para Portugal e especialmente para o Papa, “(…) para nos socorrer com uma santa bula (…), porque este traidor [D. Diogo I] não tem outro medo senão da bula (…)”, e esta “(…) deve vir secretamente (…) porque se caso souber alguém logo a de matar todos geralmente.”
Nesta devassa, utilizou-se o método português para conduzir um caso estritamente africano. Oposto a D. Afonso I, o rei do Kongo se utilizou do sistema jurídico português para resolver as pendências internas, ficando a dúvida de se ele o fez para uso próprio ou como o ouvidor escreve, para o rei de Portugal. A presença de D. Diogo I foi ativa na investigação, sendo ele quem elegeu as pessoas que deveriam ser interrogadas, respeitando o costume português.
Destaca-se, também, que as penalidades apresentadas se aproximam das descritas nas Ordenações Manuelinas. Essa mudança não atingiu somente os africanos, mas também os portugueses infratores como nos mostram os dois documentos que comentaremos a seguir.
As duas cartas são importantíssimas, porque se referem ao mesmo conjunto de episódios e mostram duas posições distintas. A primeira foi escrita pelo Capitão de São Tomé e contém críticas no tratamento dado aos portugueses pelo rei do Kongo. A segunda é a defesa de Diogo I contra os argumentos apresentados. Para o Capitão de São Tomé, o rei está fazendo um grande desserviço para os lusos, cometendo muitos abusos contra os portugueses. Ele cita o caso de Fernão de Lopez Segura35
que foi “(…) espancado e acutelado e roubado sem causa alguma por gente da guarda del-Rei (…)” e também o de Gaspar Ferreira, que foi “(…) desorelhado, por paixão que dizem ele ter pelo rei, sem causa (…) sem nenhuma ordem da justiça.”. As penas do rei também iam contra os eclesiásticos, em especial os Jesuítas. Em represália pelo fato de os jesuítas terem se pronunciado publicamente contra o rei, D. Diogo I mandou que descessem “(…) dos púlpitos e deita[ssem] fora da igreja e que não pregassem(…)”36. Tentando encontrar soluções para esses problemas, o Capitão junto dos vereadores de São Tomé e homens importantes da região se reuniram e discutiram medidas a serem tomadas: (1) enviar uma carta pedindo para que o rei parasse de tomar essas atitudes e (2) comercializar com a região de Chamguala, recémtomada pelo Kongo e que já mostrava sinais de revolta.
Na sua carta de defesa, D. Diogo I se mostrou muito bem informado sobre as acusações que lhe foram feitas. Ele se defendeu alegando que a remoção do padre do púlpito se deu porque este “(…) em sua pregação nos desonrou nomeando-nos de perro, de parvo, de pouco saber (…)”. Pediu como solução destas desordens que “(…) V. A. envi[e] aqui um homem de confiança para tirar devassa(…).” 37 Nesta carta ele não se defendeu, nem negou as atitudes cometidas contra os seculares. Para ele, acreditamos, havia uma divisão jurídica somente entre clero e seculares (compreendendo tanto os portugueses quanto os kongo) e as atitudes que ele tomou contra os seculares estavam fundamentadas na jurisdição portuguesa, ou seja, ele se via como o único possível de julgar as situações.
Um padre citou esta característica em uma carta para outro clérigo. Ele reclamou muito do rei, chamando-o de autoritário e acusando-o de não tratar bem os portugueses. Como solução apontou a construção de um grande colégio, para ensinar toda a elite a ser “civilizada” “(…) e de ai passá-los a outras ciências, de maneira que por tempos venham a sair de eles (…) legistas que os dêem aqui leis, porque aqui a lei é a vontade do Rei, e por isso nascem e há aqui tantos males e tantas injustiças (…)”. 38 Essas tensões entre o rei e os portugueses atingiram o ápice em 1555. O mesmo padre da carta anterior, Cornélio Gomes, relatou o ocorrido.
Após ter chegado a Mbanza Kongo, ele discutiu com D. Diogo I a possibilidade de abrir um colégio na cidade, o que foi prontamente rechaçado. Além disso, o rei o proibiu de pregar no seu reino. Devido a essas atitudes, ele decidiu retornar a Portugal e se dirigiu para Mbanza Soyo, onde prestou auxílio a alguns viajantes portugueses.
Não tardou muito logo um alvará do rei do Congo, em que mandava que todos os brancos, que estavam naquele porto, logo se embarcassem para o reino de Portugal; o qual alvará vinha acompanhado de cinco ou seis mil homens de guerra para o fazerem executar por mal, se por bem não quisessem, o qual eu logo fiz com os moços, e assim o fizeram os que puderam.
Depois dessa atitude, os portugueses que viviam em Mbanza Kongo iniciaram uma conspiração que resultou no assassinato de D. Diogo I.
Com sua morte, dois outros reis ficaram pouco tempo no poder, Afonso II e D. Bernardo. Álvaro I (1568 – 1587) assumiu em seguida a estes dois e já se viu envolto em uma grande guerra com um grupo denominado Jagas. Seu reino foi invadido e ele fogiu para uma ilha segura no rio Zaire, onde buscou o auxílio de Portugal para restaurar o reino. D. Sebastião atendeu ao pedido e enviou 600 homens que restauram o reino. Suas ligações com Portugal se fortaleceram com o envio de mais padres, mercadores e a fundação de São Paulo de Luanda em 1575. Nesse período temos mais um relato envolvendo uma questão jurídica: é uma crônica de 1583, em que frei Diogo do Santíssimo Sacramento relata conflitos com os nativos. Após longa viagem, desde Lisboa até Mbanza Soyo, o frei visitou um vilarejo a caminho de Mbanza Kongo. Lá ele foi apresentado a autoridade local D. João, que era o responsável pela justiça local. Eles, após discussão, se desentenderam em questões ligadas a religião e o padre:
(…) imediatamente alça sua correia, e a dá com toda a força sobre a cabeça, o corpo repreendendo-o de seu descomedimento (…). Ele [de D. João] reclamou, e com as mãos na cabeça foi se queixar para o Rei. O Rei disse: que ele remediaria. Enviou para isto a chamar o provisor, para que procedesse contra mim. Mas respondeu que não está debaixo de minha jurisdição. Visto isto, todos se calaram e dissimularam então.
O motivo da discórdia foi que padre desconfiou das atitudes desse servidor real e começou a investigá-lo, descobrindo que as mulheres da aldeia antes de se casarem iam à sua casa para que ele lhes “ensinasse” a doutrina e as “conduzisse” ao pecado. O padre viu também o seu D, João entrar em sua casa com umas cepas. Uma dessas mulheres que o visitou antes do matrimônio, descobriu que D. João estava planejando matar o rei. Ao saber disso Álvaro I, conforme registrado pelo padre, “(…) mandou prender e tirou o seu cargo e fazenda, e o vestido que trajava e o pôs como antes costumava andar. Não acostumam naquele Reino mandar a matar ninguém: e assim o Rei o desterrou.” O rei então concluiu que o ato do padre o bater com a correia foi um sinal divino para descobrir a traição. Álvaro I o agradeceu, porque de um mal menor ele descobriu toda a verdade.
Esta nova fase da relação com a coroa lusitana se aproxima mais do reinado de D. Afonso I que o de D. Diogo I. Álvaro I não tomou nenhuma atitude ao saber que o provisor não tinha alçada para julgar clérigos. Não tentou nem recorrer à Coroa Portuguesa. Porém o que mais surpreende é o comentário do clérigo dizendo que não é costume matar ninguém no Kongo.
Essa atitude contrasta, claramente, com o reinado de D. Diogo I que utilizou a pena de morte sempre que necessária. *** Com a conversão ao catolicismo, o reino do Kongo desfrutou de uma boa relação com a Coroa portuguesa recebendo diversos funcionários lusos, entre clérigos, pedreiros e etc., incluindo também juristas para auxiliar nas pendências jurídicas. A existência de um sistema jurídico próprio do reino do Kongo se mostra através de relatos indiretos de portugueses ou por meio de alvarás emitidos pela Coroa. Também se percebe a presença de um corpo de funcionários kongo específico para lidar com as questões jurídicas.
A relação com as Ordenações muda de acordo com o perfil do monarca, reforçando a ideia da centralidade da lei em torno do desejo real. D. Afonso I se mostrou receptivo às leis portuguesas, estudando-as, porém restringindo o seu uso para assuntos referentes à comunidade portuguesa, com exceção dos casos em que a lei vai contra a sua vontade pessoal. Quando não havia legislação correspondente, a sua vontade no conjunto de leis portuguesas criava outras novas que incluíam também os portugueses, demarcando o alcance das dessas. D. Diogo I já fez um uso mais amplo da lei portuguesa, aplicando tanto aos portugueses quanto aos seus súditos. O mais interessante é que ele se colocou na função de julgador dos conflitos dos portugueses, ordenando ações que não compreenderiam a sua alçada jurídica (segundo o direito português), enquanto D. Afonso I reconhecia autoridade do Capitão e deixava-o cuidar dos problemas entre os lusos. Álvaro I se aproximou de D. Afonso I ao separar as legislações do Kongo e a de a de Portugal e a de reconhecer a autoridade do indicado português para o seu reino. Acredito então que a ocidentalização do reino se deu conforme a vontade do soberano africano, e não por imposição europeia.
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