NDONGUTI, O FILÓSOFO AFRICANO

Por Patrício Batsikama

Introdução

O presente artigo discute a questão da existência ou não da Filosofia em África, negando os pressupostos “racistas” que aparentemente recusaram o direito de Filosofia aos africanos. A discussão sobre a Filosofia Africa-na – entenda  se a expressão no plural – é densa. Escolhemos aqui o caso dos Kôngo que, muito antes da chegada dos europeus em 1482, já trabalha-vam a Filosofia. Escolhemos apresentar cinco filósofos kôngo, com as suaslinhas de pensamento específicas: Ñgîndi ya Ndûnda, Mpyângu Nsyâla Mu-zêmba, Nkwa Ngângu Nsûmbu, Ntûdi Nzayu Ñlôndi, Na Ñtona.Com isso, encaminhamos a discussão, que nasceu a partir do livro Filosofia Bantu de Placid Tempels publicado na primeira metade do século XX. Também faze-mos menção às contribuições de Cheikh Anta Diop (1923  †1986), pensador menos conhecido entre os autores que usam a língua portuguesa.

1 – Breve discussão sobre Filosofia africana

O ganense Anton Wilhelm Amo (1703  †1759) tinha iniciado a questão do “Direito à Filosofia dos Africanos” já em 1729. Em 1758, o activista François Makandal foi queimado vivo no Cabo  Francês, Saint Domingues, por se revoltar contra o poderio francês. Oriundo do antigo reino do Kôngo, Makandal foi o primeiro a levantar a questão dos “Direitos inalienáveis do Homem” em um discurso filosófico com uma intelectualidade que marcou toda Haiti na época.

No século XIX, um pensador político chamado Rainilaiarivony (1828  †1896) terá impulsionado o “Iluminismo” madagascarense quer com a pu-blicação da revista científica Antananarivo Annual (em inglês), quer com a abertura extensa à escola (mistura de protestantismo e gnose local), tendo a invasão francesa em Madagáscar no ano de 1895 possivelmente compro-metido o desenvolvimento social endógeno malgaxe. Em Angola, Cordeiro da Matta publicou, em 1891, a Filosofia popular em provérbios angolenses, trabalho com 187 páginas.

Quando se trata de “Filosofia africana” no singular, há duas ideias que importa ressaltar. A primeira, que é a principal, consiste no discurso endó-geno produzido por filósofos, académicos e estudiosos nos campos da meta-física, epistemologia, ontologia, filosofia política, etc. Sobre esse assunto, Kwasi Wiredu (1931  †2022) editou um livro constituído por 47 capítulos, que contou com a colaboração de vários pesquisadores de filosofia, nomea damente Théophile Obenga, D.A. Masolo, Souleymane Bachir Diagne,Pieter Bole Van Hensbroek, Lucius T. Outlaw Jr., Barry Hallen, Mabogo Pere, Mourad Wahba, Claude Sumner, Teodros Kiros, Tsenay Serequeberhan,Liboire Kagabo, Olúfémi Táíwò, Kibujiio M. Kalumba, Victor Ocaya, Segun Gbadegesin, Didier Njirayamanda Kaphagawani, Safro Kwame, Samule O. Imbo, Godfrey Tangwa, John Ayotunde Bewaji, Kofi Agawu, etc.

A segunda ideia a reter no debate sobre “Filosofia africana” é a sua ex-pressão plural que identifica de forma objectiva a existência pré  colonial de espaços de Filosofia em África, numa configuração de sistemas filosóficos de diferentes regiões. Também existem críticas interessantes sobre essa ma-téria. Nesse tema, apenas alguns nomes distinguem  se: Cheikh Anta Diop, Théophile Obenga, Placide Temples, Alexis Kagame, Marcien Towa, Kwasi Wiredu, Tshiamalenga Ntumba, Henry Odera Oruka, Eboussi Boulaga, John Mbiti, Paulin Hountondji, Jean  Godefroy Bidima, Severino Ngoenha, etc. Quer no primeiro, quer no segundo ponto apresentados, a Filosofia Africana – no singular – sintetiza a tomada de posição assumida. Retomamos essa op-ção sem, no entanto, ignorar as diversas e distintas características que exis-tem para a pensar no plural.

Foi no século XX que a discussão tomou novos contornos, com a publi-cação do livro do padre belga Placide Tempels sobre a Filosofia Bantu, em 1948, na base de um estudo de caso na sociedade Luba. Surgirão o tempelsis-mo e diversos seguidores do tempelsismo, tanto para expandir sua tese ori-ginal quanto para disseminar essa filosofia em outros contextos Bantu (além da comunidade Luba) e não  Bantu.Em 1954, George James (1893  †1956) publicou um texto académico que provocou uma importante polémica.8 Ele afirmava que a Filosofia grega era uma Filosofia ‘copiada’ a partir da Filosofia egípcia (2780  1590 a.C.). Cheikh Anta Diop demonstrou, nessa mesma linha, que o povoamento do Egito antigo,9 que deu origem à Filosofia, influenciou os primeiros filósofos gregos, que a absorveram10 antes de desenvolvê  la com brilhantismo e ori-ginalidade, de acordo com a cultura grega da época. Essa filosofia evoluiu ao longo do tempo, alcançando o espaço romano, europeu e, graças às bulas papais, à colonização e à globalização, foi difundida de maneira profunda-mente modificada por todo o mundo.

Atualmente, a Filosofia Africana pressupõe toda a produção de académi-cos, não  académicos e articula a maior parte das correntes dessa discussão, sem menosprezo pela sua validade. Alexis Kagame (1912  †1981) publicou La philosophie bantu  rwandaisie de l’Être em 1955, traduzida numa prática de antropologia filosófica fundamentada na cultura regional. Com relação à obra A Filosofia bantu comparada de Alexis Kagame, Alfons Smet aponta a ausência de nomes dos pensadores locais.

Fabien Eboussi Boulaga criticou severamente a abordagem de Tempels (1948/1949), lamentando a ênfase dada aos seguidores do missionário belga em detrimento da tecnologia e das ciências, enquanto Marcien Towa (1981) foi ainda mais contundente. A tecnologia e as ciências determinam o de-senvolvimento, ao passo que o tempelsismo levou ao marasmo e à distra-ção. Paulin Hountoundji apela a revisão da biblioteca colonial, em busca de uma construção identitária virada para o progresso científico. Apesar disso, o autor reconhece na obra de Tempels e na dos tempelsianos um importante tributo para discussão em matéria de Filosofia. O professor Bénoît Okonda Okolo defende uma posição ligeiramente diferente, abordando a Filosofia funcional. A filosofia é prática, dizia ele, na sala de aula.

Por outro lado, Ngangura Kasole propõe uma base epistemológica para melhor aproveitamento. As posições filosóficas abriram novas leituras, para promover uma compreensão dialógica. A diversidade filosófica des-sas contribuições entre 1960 e 1980 serviu como um chamado para adotar uma abordagem metodológica com o objetivo de integrar a África no cenáriofilosófico global.

Nas suas aulas, o professor Tshiamalenga Ntumba optou por um discurso não  local para criticar as presunções e elogios da Filosofia africana, ten-do feito uma revisão metodológica das diversas tendências não científicas que surgiram durante esse debate, independentemente de seus resultados nassociedades e na comunidade filosófica.Théophile Obenga apresentou novas evidências históricas em sua exten-sa obra publicada em 1990. No prefácio, o professor Ignace Tshiamalenga Ntumba observou que, com esse livro, era possível dizer “adeus” a Tempels e aos seus seguidores, já que Obenga iniciou uma nova revisão com rigor metodológico na filosofia.

Nessa obra de Obenga, o autor reproduz vários hieróglifos egípcios que traduz e compara com textos de Platão, Aristóteles, entre outros filósofos. Da mesma forma, Obenga destaca o teorema atribuído a Tales de Mileto (650  546 a.C.) ou o teorema de Pitágoras (570  496 a.C.) sobre o triângulo presente nas ilustrações nº 53 do papiro Rhind (Egito anti-go), datado de 1650 a.C.

  1. Ideia de Filosofia

De forma geral, a ideia de Filosofia leva, talvez, a três perguntas conco-mitantes: (1) que atividades seriam exclusivamente filosóficas; (2) qual seria o conteúdo da própria Filosofia; (3) qual seria o perfil do filósofo. Com as respostas a essas perguntas, poder se  á ter uma ideia básica de Filosofia no antigo Kôngo, como uma resposta ao movimento intelectual que advo-gava a existência da Filosofia Africana. O Professor Ignace Tshiamelenga Ntumba realçou a pertinente questão metodológica em matéria da Filosofia Africana, ao passo que Afons Jozef Smet levantava a inquietação de não existirem filósofos pré  coloniais com obras concretas. Já no século passa-do, Holman Bentley apresentava como indicador da filosofia ser uma “pro-fissão” no antigo reino do Kôngo, ao traduzir “ndonguti” por “meditação filosófica”. Karl Laman traduz ndônguti por filósofo e, simultaneamente, por “aquele que faz investigações”para achar objectos e perguntar o que eles representam, seu conceito, sua história semântica, etc. Ndonguti pres-supõe: (a) octeto do muñtu como “ser conhecedor”; (b) objecto que se co-nhece através de uma investigação;24 (c) construção do conceito a partir da relação sujeito  objecto. São as três principais fases do “filosofar” vividas pelo ‘ndonguti’ (filósofo), o que é universal.

Este artigo explora os nomes que possivelmente existiram antes da che-gada dos europeus em Angola, reconhecendo também a influência que a re-ligião católica pode ter exercido entre 1491 e 1706. Além disso, revisitamos o conceito de philo  sophia não com o intuito de homogeneizar ou agrupar todos sob uma mesma categoria. Nossa intenção é abordar três aspectos dis-tintos: (1) identificar os nomes de diversos pensadores africanos que tenham desenvolvido ideias fundamentadas na razão; (2) reconhecer um ou mais sis-temas filosóficos antigos no Kôngo como uma resposta a certas críticas ainda presentes na Filosofia Africana; (3) compreender as escolas que promoviam a Filosofia no antigo Kôngo, considerando que, conforme observado porGeorges Balandier, no século XVII muitos cidadãos do Kôngo viajavam para a Europa, onde ensinavam as humanidades.

Destacaram  se cinco grandes pensadores kôngo antes da chegada dos Europeus no reino do Kôngo (1482), e será na base das suas contribuições que iremos traçar a ideia de Filosofia, respondendo à tripla pergunta deJerôme Grynpas. Começaremos por fazer uma sinopse das particularidades de cada um destes pensadores, tal como vem a seguir.

 

Para responder às três perguntas colocadas anteriormente, os aportes dos cinco filósofos referidos resumem as atividades filosóficas e permitem ter a ideia de Filosofia e de quem pode ser considerado filósofo, tal como os Kôngo o entendiam. Desenvolveu  se, quer com Na Ñtona quer com a escola filosófica nzo ñtonono, o uso racional das teorias e o uso teórico da razão. No primeiro, redesenhou  se a cosmologia, a hagiografia no espaço religioso; no segundo, a razão foi teorizada e aplicada em diferentes domínios (medicina, política, economia).

Quando o candidato passa do exame com êxito, o resultado é pronuncia-do assim: mbakala dyo mu toma. Didi ndwêngi. Segundo Kimbwandende kya Bunseki Fukyawu,

Na Filosofia Bakongo  Kôngo, Ve e… é um ser [kadi/ser] que se posiciona verticalmente, ou seja, pensa  raciocina  pondera, antes de caminhar e agir para enfrentar horizontalmente os desafios do mundo instintivo; este é o mundo horizontal, que é a base principal para todas as aprendizagens.

Carece explicar aqui ainda a relação entre pensar raciocinar ponderar e o mundo horizontal, partindo da releitura da cognoscibilidade da coisa  em  si na concepção de Schopenhauer,29 a partir da qual ele desenvolveu a razão  prática, razão  teórica, razão ética  mística,30 ou ainda da razão suficiente,31da vontade irracional que configura, de alguma forma, a razão.

A capacidade de raciocínio, conhecida como nyîndu, implica habilidade e rapidez na interpretação, além da capacidade e inteligência para discernir. Essa habilidade se diferencia da noção de mabânza, que representa um con-junto de ideias dogmáticas usadas como base para a interpretação ou reflexão sobre algo. Em geral, mabânza é uma opinião, lubânzulu, pois está ligada aos desejos e às memórias que definem a personalidade.

No nzo ñtonono, a razão  raciocínio é chamada de mfundu que consis-te em “fazer compreender de outra maneira, sem usar a palavra”. Usa -se, basicamente, a escrita e as fórmulas; ou, ainda, o som de batuque ou das mãos (que é a base de linguagens não  verbais). Na sociedade, os ndongutiusavam  na com frequência, e essa razão  raciocínio passou a ser o segredo ou mistério para o restante da sociedade. É assim que os ndonguti se dis-tinguiam na sociedade, ao ponto de ser considerado de mfundu za Nzâmbi. Bentley traduz essa expressão, na sua época, por “todas as criaturas que não têm o dom de falar, pelo que guardam o segredo (sobre inteligência) de Deus, daí a mudez”. Isto é, o raciocinar precede e sucede o ato de pensar.

A razão  ponderação é etona (consciência). Ora, mfundu + etona = luz da razão que se diz yâmbi é aplicado exclusivamente ao talento da investigação filosófica, por trazer luz. O termo yâmbi traduz  se por razão consciencial e está em Ñzâmbi (Ñyâmbi = Deus). Na dimensão humana, ela reconhece ou-tras possibilidades de razão, no exercício de butwîdi bwa kani (diálogo das razões), por exemplo.

O mundo horizontal tem quatro significações: (a) diálogo racional no Mavwâla (colégio de sábios); (b) transversalidade da Filosofia e valida-des da razão em diferentes domínios do saber prático; (c) mbândadyâmbi:teoria sobre a criação do universo que explica nza ya mbi (Nzâmbi=Deus)e a nsema (Nzâmbi Mbânda=Deus criador), ambos movidos pelo mpûngu.O espírito da origem é potência que é movimento, sendo a razão que prece-deu toda a inteligibilidade humana (mfûndu); (d) ñtunguluzi: convergência das verdades paralelas: [a + (  a)]: n = 9. Quer dizer, se a relação entre a verdade (a) e outra  verdade (-a) pode ser perspetivada por um denominador comum (n), a resposta não alterará as suas essências racionais (simbolizado pelo número 9, vwa). Importa dizer que o código semântico de o vwa (nove) é o fim/início (complementaridade). Como diz Fu  kyawu, este é o mundo horizontal, que é a base principal para todas as aprendizagens.

É fácil compreender isso, e vamos revisar o código semântico de vwa(potência) em relação ao yâmbi. Inicialmente, “yâmbi + vwa” (inteligência irrefutável) significa ñtûnguluzi, que é a “prova verdadeira ou evidência que estabelece algo de forma incontestável”. Isso resulta das operações das ver-dades paralelas.

Com isso, é possível compreender a ideia de Filosofia que abrange desde uma ontogênese da consciência (homo  ideia, homo  vontade e homo  corpo) até a cosmologia (origem do universo). Essa metafísica é abrangente, tanto pelas teorias quanto pela crítica da razão, de modo a promover a teologia e a espiritualidade como campos distintos, embora compartilhem um denominador comum (crença, religião), permitindo uma análise objetiva do perfil do filósofo e da plausibilidade da apriorística.

O perfil do filósofo está sintetizado nos cinco filósofos aqui citados, pois todos apresentam quatro características em convergência e, pensamos ser a forma objetiva de como os Kôngo terão criado o perfil de filósofo:

  1. Amor à verdade pelas causas;

  2. Capacidade de problematizar a realidade e sistematizar a razão;

  3. Crítica à razão pelo método e pensamento racional;

  4.  Meditações na base das virtudes de espírit.

Esse perfil coincide com a tríade pensar raciocinar ponderar tal como o faz Fu  kyawu, autor acima citado. Trata  se do filosofar que determina a base da meditação filosófica, amplamente atestado pelo pensamento simbólico da língua kikôngo.

  1. Linguagem filosófica

O pensamento simbólico da língua kikôngo explica, por si, diferentes teorias. Os números, para exemplificar, detêm quatro códigos: (a) semântico; (b) simbólico; (c) numérico; (d) filosófico. O primeiro e o terceiro são do domínio de qualquer iniciado, ao passo que o segundo e o terceiro são códi-gos exclusivamente usados no nkîsi lêmba (escola da elite política) e no nzo ñtonono. Os códigos simbólico e filosófico dos números são para os egrégios e pensadores, pois o código linguístico é sintético.

Nesses espaços iniciáticos, a linguagem filosófica caracteriza  se por três aspectos, a saber: (a) o discurso crítico alimenta a discussão pelos argumen-tos contrários e complementários, mas nunca é conclusivo. Diz o princípio, têngasana ka lukuzi ko (cuja tradução é: “argumentar não é sinónimo de desdenhar o outro”)41; (b) o código proverbial pressupõe que o provérbio comprime, de princípio, três máximas42; (c) analogia – explícita e implícita.

nas proporções deve tornar elegante o conteúdo e evitar toda conclusão possível, pois não pode haver conclusão irrevogável ainda que seja ñtûnguzi (prova irrevogável).

Entendemos que a linguagem filosófica traduz a beleza poética. Outro-ra, ela era cantada com concurso de som de algum instrumento, palavras e linguagem gestual corporal. De modo simultâneo, ela encantava o espíritopela pureza das intenções, pela destreza metódica e pela crítica do conteúdo que expunha. O ndôki, inicialmente, era um tipo de integrante de mwala (co-légio de sábios), possuidor de inteligência que expõe e convence facilmente pelo encanto poético. Hoje, ndôki se limitou a assumir o papel de feiticeiro, mas guarda ainda o seu sentido de “alguém que fala e encanta pelas suas piadas». O termo nlokusi significa ‘piadas’. Em tese, o que é hoje piada era encanto, palavras belas que seduzem. Tal como ñtûngulusi que significa prova irrevogável, existe algo em comum: o código a partir do sufixo si. Um instrutor é ñlôngi, mas um professor com múltiplo conhecimento é ñlôngisi. Podemos citar também ñsôngi, que é aquele que indica o caminho, o guia; mas ñsôngisi é aquele que instrui os guias, quem dá instrução aos indica-dores. O termo ñtângi significa estudante, ao passo que ñtângisi é instrutor. Ntwîdi é aquele que apenas cuida dos animais (pastor); ntwîdisi é criador e vendedor de animais (gado). Ndônguti é variante de ndôngusi para dizer produtor do conhecimento  sabedoria.

Vamos fazer referência ao livro de Ivon Struyf intitulado Les Bakôngo dans leurs legendes publicado em 1936. O autor apresenta dezasseis fá-bulas, seis contos populares, sete histórias dos loucos, quatro histórias de moral, seis crenças supersticiosas, oito histórias dos morto  vivos e cinco histórias locais. Nesses relatos, nota  se a presença de três elementos em comum: (a) a prosa didática que se submete à estrutura e à métrica; (b) o pensamento racional e analítico, com timbre da dialética; (c) a apologia à razão heroica, inteligência sensível, entusiasmo poético da verdade. Como podemos notar, a sabedoria veiculada nas cinquenta e duas narrações que Struyf recolheu possibilitam uma linguagem proverbial e filosófica. Além de quatro lendas ngîndicas, as quatro histórias de moral lembram  nos dois filósofos kôngo: Nkwa Ngângu Nsûmbu e Na Ñtona. A ideia de morto  vivo traz dois temas de escatologia abordada por Ñkîsi Ngîndi (cosmologia) e Na Ñtona (teologia). Desta forma, entendemos existir uma originalidade da linguagem filosófica.

  1. Deontologia do filósofo

Os pontos anteriores evidenciam que a Filosofia no antigo Kôngo terá sido uma profissão caracterizada pela razão prática, liberdade nos profissio-nais que se distinguiam pelo amor à verdade de causas, crítica da razão pelo método, virtudes primordiais de espírito, meditações etc. A questão é: qual seria a deontologia de ndônguti?

A ética profissional dos ndonguti fundamenta  se nas virtudes primor-diais: songa (pudor), mawete (cortesia), ñlûngu (integridade), vîmpi (vigor), lulêndo (honra), mpyângu (prudência), ndwênga (talento), bungûdi (ternura), zâyu (inteligência práxica), nkônzo (força), lusâmbu (espírito de sacrifício) e kitômi (abstinência). Contudo, essas virtudes eram reapreciadas pelo com-portamento e procedimento do filósofo, tal como passamos a ilustrar:

Salvo os quatro primeiros grupos, que são virtudes, as duas últimas constituem o pilar deontológico do filósofo kôngo. Com relação a lônda, trata  se de uma razão essencial que, de princípio, evita repetir as premissas. O princípio está claro: Tubukuna mpidi, mboma ñla. O filósofo limita  se a dizer vônda mpîdi; mboma ñla (seja curto). No que diz respeito lûnga  lûnga, trata  se da clareza e simplicidade que caracterizam as suas ideias expostas. Mayûmbana é uma sátira humorosa – tido como injúria dialética, no Direito: matu na yûmbanaque pode, por um lado, desdramatizar uma situação com elegância. Por outro, mayûmbana é usado não para julgar com sarcasmo, mas para criticar exclusivamente as instituições e nunca as pessoas individu-almente, com graciosidade.

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