”PASCOAL LUVUALU E DOMBELE BERNARDO SUGERIAM A USAR A VOZ COMO ARMA“

Por Analtino Santos

Sam Mangwana é uma das principais referências da música africana, cidadão angolano nascido em Leopoldville (Kinshasa), no então Congo Belga, onde aprendeu a amar a “Pátria Querida”. Na entrevista ao Jornal de Angola, aborda vários aspectos da sua vida e carreira artística. Fala do seu envolvimento no sindicalismo e nacionalismo, a inserção nos ideais do panafricanismo, as parcerias musicais, o posicionamento em relação à rumba e termina com o contributo da música nos 50 anos da Independência Nacional.

Sam Mangwana, para início de conversa, onde é que nasceu?

Olha, eu nasci em Kinshasa, em Fevereiro de 1945, e sou filho de angolanos que, desde muito cedo, começaram a ensinar-me sobre o país e, deste modo, aprender a nossa cultura. Foi assim que conheci Angola. Na infância, quase todos os anos visitava a aldeia dos meus pais, para mergulhar na cultura angolana.

Como era a vida dos angolanos no Congo?

Vou dizer uma coisa. Aqui, fala-se dos malianos, dos “mamadou”. Naquela altura, os nossos pais tinham essa tarefa no Congo Belga, porque, como não tinham o direito de trabalhar na administração, então aproveitavam organizar-se com pequenos negócios e trabalhos que não interessavam aos congoleses que iam à escola para estudar e ser um bom quadro. Trabalhos como lavadeiro, sapateiro, carpinteiro eram para os angolanos, que o faziam para sobreviver. Nós crescemos nesse ambiente no Congo Belga e tínhamos a consciência de que um dia iríamos voltar. Foi assim que os nossos pais se organizaram para acolher os outros que seguiram e criaram associações culturais para se esconder da Administração dos belgas.

É nessa altura que começa a interiorizar as ideias nacionalistas?

Sim. Lembro que a minha mãe animava um grupo folclórico de senhoras angolanas. Elas falavam de política. Os nossos pais organizaram-se para tentar financiar, também, todos os movimentos de libertação que passavam por Kinshasa. Quer dizer, o jovem Mangwana cresceu nesse ambiente.

Nessa fase, na escola, era chamado de Salazar. Por quê?

Sim, os colegas de escola chamavam-me Salazar, porque sabiam a minha história, que os meus pais eram angolanos e viam membros das associações a entrarem em casa. Então, para me chocarem, às vezes, chamavam-me Salazar.

Por isso um dia bateu um colega e recebeu um castigo?

Sim, num internato, a 41 quilómetros de Kinshasa, onde era aluno. Fiz uma confusão com um colega que, mais uma vez, me chamou de Salazar. Ele foi ferido e a administração da escola disse ao meu pai que eu tinha um problema psicológico e para me curar era necessário mandar-me de volta para a nossa terra, para valorizar a cultura deles e foi assim que, em 1958, mais uma vez, me enviaram para Angola.

É daí que surge a história do “Tio António”, retratada numa das suas músicas?

Sim. Acho que aquele ano todo passei aqui, na aldeia de Mucaba e, durante esse período, aconteceu aquela história do meu tio que tinha regressado de São Tomé e Príncipe, onde foi castigado cerca de 22 anos, porque enfrentou um capataz cabo-verdiano. Quando voltou, veio com um filho que se chamava Agostinho e houve uma grande festa na aldeia. Esta é a história do “Tio António”.

Como nasce o sentimento panafricanista?

Vou tentar simplificar as coisas. Quando crescemos, em Kinshasa, um dia o meu pai disse: “filho, está a acontecer aqui em África um vento de libertação, do lado do Egipto e Ghana, com (Gamal Abdel) Nasser e (Kwame) Nkrumah”. Estávamos em 1957 e eu tinha 13 anos. Assim, os nossos pais começaram a ensinar-nos sobre a liberdade que iria acontecer em África. Tudo isso aprendi em casa. Quando o Presidente tunisino (Habib) Bourguiba ordenou para fornecer armas automáticas aos movimentos de libertação, eu cresci neste ambiente. Então, com toda a história, como músico, tinha uma visão um pouco aberta do que se passava em África.

O início da carreira artística aconteceu em Outubro de 1963, com Rochereau e Doutor Nicole, na orquestra African Fiesta. É verdade que o tema “Ya Gabi” foi determinante?

Sim, foi a minha primeira música que apresentei ao Tabu Ley Rochereau. Ele constatou que a minha voz era muito bonita para integrar a banda deles. Antes de entrar para a vida profissional, eu recebia a minha educação dos missionários protestantes.

Como foi trabalhar com as duas principais escolas da música congolesa?

O Tabu Ley foi a pessoa que descobriu o jovem Sam Mangwana e sempre será o meu mentor. Depois, está o Franco, também aprendi muito com ele. Crescemos no mesmo bairro, que se chama Ngiringi. Eles eram os mais velhos e gostavam que fizesse parte dos seus conjuntos, tendo em conta o meu espírito de abertura sobre o repertório da música latino-americana e francesa. E assim, os dois lutavam para ter o jovem Mangwana com eles.

Sam Mangwana dividia os congoleses. Por isso houve uma fase em que alguns o chamavam “refugiado mercenário”?

A imprensa e algumas pessoas têm sempre essa tarefa de criticar as coisas e, como as duas principais tendências musicais locais lutavam, então, uns por serem fãs do TP OK Jazz, de Franco, e outros de Tabu Ley Rochereau, fizeram com que a minha carreira tivesse um choque de críticas. Mas isso faz parte das coisas como artista.

Foi apenas por esta razão?

Outro factor, também, é que eu tinha a clarividência de saber reivindicar os meus direitos. Antes tinha passado num sindicato grande, como a UNTA. Então, eu sabia como defender os meus direitos. Reclamava sempre a assinatura de contratos e fui o primeiro artista em Kinshasa a assinar um contrato com uma banda para trabalhar. Por isso, os jornalistas começaram a considerar-me “artista mercenário”.

Foi isso que o levou a deixar o Congo?

Eu já tinha aquele espírito de um dia viajar e conhecer o mundo. Depois da aparição do show de 1974, tive um problema com o meu mentor e patrão, Tabu Ley. Ele não respeitava as cláusulas do nosso contrato e começou a discriminar-me, a atacar-me na imprensa, dizendo que eu era um mercenário infiltrado na música congolesa, um estrangeiro e tudo mais. Então disse-lhes que lhes ia provar que eu era tão africano quanto eles e, assim, comecei a minha viagem de Kinshasa para o exterior.

Mas existiam colegas e congoleses que o queriam lá ….

Sim. Primeiro informei ao Franco que abandonaria o país, porque a imprensa atacava-me muito e não estava interessado em ficar no Congo. Ele insistiu para que eu ficasse, dizendo que eu nasci, cresci e fiz toda a carreira lá. Afirmou que tinha fortes relações, que faria tudo para não sair do Congo e me proteger.

E como é que conseguiu sair?

Eu conhecia todos os rios e províncias do Congo. Saí de Kinshasa até Libengué, no interior, uma cidade que está próximo a Bangui, a capital da República Centro-Africana. Quando lá cheguei, tentei fazer a cabeça do administrador dizendo que me ia me instalar no Zongo, mas faltavam discos para vender e que queria organizar uma sessão de vendas. Ele ficou atraído pelo projecto, deu-me um salvo-conduto para ir produzir discos na Nigéria e foi assim que escapei do Congo, porque não tinha passaporte.

É na sequência disso que lança a carreira na África Ocidental?

Sim. Tudo começa em Bangui(República Centro-Africana), de seguida Tchad, Camarões, Nigéria, depois cheguei ao Benin e liguei ao marido da Abeti Massikini, o togolês Gerard Akweson, que enviou o homem dele para Cotonou. É assim que cheguei ao Togo, para tentar reorganizar a minha carreira. Naquela altura, o artista que fazia sucesso na África Ocidental era Prince Niko Mbarga, da Nigéria.

Como vai para Abidjan?

Quando cheguei ao Togo, encontrei Gnomas Pedro, que conheci na minha passagem por Cotonou, para me ajudar, e ofereceu-me a banda para eu gravar um disco. Foi durante a minha fase de sobrevivência que um jornalista pediu que eu organizasse um show na televisão da Côte d’Ivoire, em Abidjan. A emissão foi fantástica e eu peguei a fita do programa para tentar fazer algo. Foi com esta cópia que gravei o meu primeiro disco, em Abidjan. Quando o disco saiu, eu já era conhecido como cantor do TP OK Jazz e de Tabu Ley, então numa semana vendemos sete mil cópias. Um dos primeiros sucessos foi “Maria Maria”, que cantei em francês e em calão local. Era a forma que encontrei para ser aceite e, felizmente, resultou. Assim, aluguei um apartamento e instalei-me em Abidjan.

Foi deste modo que conquistou os ivoirienses?

Sabe de uma coisa? O meu reflexo é de alguém que faz tudo para sobreviver. Sou como o camaleão que, para se esconder e proteger, faz tudo para tomar a cor do local onde se encontra. Na minha maneira de viver, quer dizer, cada vez que vou a um sítio, tento observar, analisar e fazer algo que vai ser interessante para esse público. É um reflexo natural para mim, por isso não tenho um estilo específico. Sou alguém que chega a um sítio e tenta traduzir, um cantor-papagaio, ou seja, um “papagaio da cultura”

Por isso, em entrevista a Adão Filipe, afirmou que “a minha carreira é um reflexo de alguém que não tem país e luta para sobreviver e entra na cultura dos outros para ser descoberto”?

Não para ser descoberto, mas para agradar, isto é diferente.

Sam Mangwana é conhecido e reconhecido como homem da rumba. É assim que se considera?

Também. Mas se visitar todas as minhas músicas, não tem só rumba. Encontras calypso, bolero, salsa, folclore…não gosto de falar do estilo, mas sim da música. Por exemplo, “Bana ba cameroun” é um makossa, mas, para mim, é kizomba, para os camaroneses é um makossa um pouco lento, porque um angolano vai dançar como kizomba.

E como definiria Afogné?

Vamos começar com a história de Afogné. Conheço Salif Keita e Kanté Mafila, compositor e guitarrista dele, a partir dos bairros de Abidjan, onde estávamos a viver. Um dia nos cruzámos em Paris, eu disse ao Kanté Mafila: “gosto muito do estilo mandingue, que vai da Côte d’Ivoire, Burkina Faso à Guiné-Conacri e outros países”. Ele prometeu dar-me algo e, depois de alguns meses, convidou-me a casa, fora de Paris, pegou na guitarra, sentado no sofá com as duas filhas a fazerem coro, cantaram e gravaram. Depois, ele pegou a cassete e disse: “está aqui a sua música mandingue”. Foi assim que ele me brindou com Afogné.

A carreira artística de Sam Mangwana chegou a ser interrompida em determinado momento. O que aconteceu?

Como todos os jovens angolanos, vivíamos com essa educação e a consciência que um dia iríamos regressar a Angola. Fui activista da UNTA, quando iniciaram o Sindicato, em Kinshasa, com Pascoal Luvualu, Dombe François, Dombele Bernardo e outros mais velhos. Até que, em 1964, aconteceu uma história política, quando o Governo do Congo pediu a todos os movimentos de orientação socialista para saírem do Congo. É assim que segui a UNTA em Brazzaville, onde se integrou no MPLA.

Depois fez treino militar em Brazzaville?

Foi em Dolisie, actualmente Bomu, onde, durante seis meses, passei nas matas de Mayombe, como guerrilheiro. Depois, apanhei asma, fui desmobilizado e regressei a Brazzaville. Então, os mais velhos Pascoal Luvualu, Dombele Bernardo e outros diziam: “como não podes continuar a lutar, faça da tua voz uma arma para combater também o colonialismo”. Comecei a minha carreira de músico revolucionário, mas, para sobreviver, continuei a integrar às bandas locais. Em Brazzaville, estive no Negro Band, Los Batchichas, Orquestra Tembo e dentre as minhas músicas lancei “Aprenda Bachanga”.

Em 1974, no fervor da revolução, Sam Mangwana lança “Minha Terra”. Como surgiu esta declaração patriótica?

Foi durante o concerto de gigantes de Tabu Ley, em Kinshasa. Eu já contei que o jovem Mangwana cresceu dentro daquela consciência revolucionária de libertação e tudo, esta minha história também faz parte da carreira. Nós mergulhámos nessa cultura de liberdade um dia em Angola e. enquanto músico, a inspiração caiu-me na cabeça e fiz o que tinha de ser feito.

Via JA

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