Por Patrício Batsikama
A evangelização do antigo reino do Kôngo levou a uma guerra civil que, desde 1543 até 1704 desestruturou este reino. Ñsîmba Vita – mais conhecida por Kimpa Vita – aparece e conduz o kimpasi com propósito de repor a ordem. Conseguiu, mas por pouco tempo. Ela foi presa, julgada e queimada viva. O presente trabalho aborda de forma breve esse período e recoloca a importância da religião enquanto resistência à opressão. Também, mostra-nos que o legado desta profetisa ética proporcionou o Protonacionalismo na África Central Ocidental com Kimbanguismo e Tokoismo.
1. Da chegada dos Europeus
Depois da chegada de Diogo Cão ao Kôngo, em 1482, verificaram-se muitas viagens subsequentes, entre 1484 e 1491, que incluíram embaixadores kôngo. A religião e a política foram os dois domínios de colaboração discutidos e aparentemente aprovados entre ambos os lados. Por isso, antes do batismo do rei Ñzînga Nkuwu no dia 3 de Abril de 1491, Nsaku Ne Vunda fez um pronunciamento solene em nome do Conselho do Reino. Tratava-se da resolução que oficializa o cristianismo no reino do Kôngo. Nesse pronunciamento, fez menção às guerras vindouras, mas também à Dama linda que “irá pôr fim às atrocidades e reinstalar a paz”.
O maior Sacerdote Nsaku Ne Vunda era muito considerado pelos padres e recebia alguns benefícios, graças às suas visões proféticas. Foi escolhido como o responsável máximo da Igreja local nos assuntos da construção que implicam a escolha de lugares sagrados. Também era encarregado da Educação Nacional. Os portugueses e religiosos aceitaram-no depois de uma demonstração: ele indicou um rio (ou lago) onde deveria ser encontrada a pedra lusûnzi que testifica a revelação do cristianismo no Kôngo. Por acreditar nisso, os padres europeus construíram uma igreja – Santa Maria Nossa Senhora – aberta no dia 1 de junho de 1491. Foi nessa igreja que foram batizados Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga, sua mãe Dona Eleonora Ñlaza Ñzînga e todos os altos funcionários de Mbânz’a Kôngo na época.
Por outro, ela deveria ser ngânga kitomi e ngânga mayînda. O local era Mbata, espaço dos sacerdotes. Mais especificamente, três locais foram apontados: (i) Kiñzâmba Mbûdi, a nordeste de Mbânz’a Kôngo; (ii) Ngûngu Mbata (Môngo’a Mbata), local dos sacerdotes; (iii) Mbânz’a Mbata, local de Nsaku Ne Vunda. Foram criados alguns símbolos desta Dama bonita, em forma de cânticos codificados que circulavam em cerimônias específicas. É assim que no kimpasi surgiu a personagem de Ñdûndu que, por norma, deveria ser o gêmeo mais velho [ñsîmba]. Significa dizer que ñdûndu simboliza o Espírito do mar que associa a origem dos evangelizadores ao passo que gêmeo simboliza o “Espírito de Deus das nascentes”, na cosmogonia kôngo. A topografia social de kimpasi explica quanta importância era dada a ngwa Ndûndu (mãe Ndûndu) e os integrantes acreditam – caso analisemos os cânticos e vários provérbios – que sejam a fonte da paz face às aflições que assolam a sociedade.
Em 1491, o cristianismo foi visto como uma arma com a qual o Kôngo poderia alargar a sua influência no exterior, principalmente, em busca de qualidade na educação e comércio que foram os interesses discutidos. Em contrapartida, a Corte cristianizou-se com baptismos públicos. Além de manter a poligamia, nunca os kôngo convertidos deixaram de realizar o “culto dos ancestrais”. Na cosmogonia kôngo, o culto dos ancestrais e a poligamia constituem o suporte da organização social. O culto dos ancestrais é a celebração da união entre municípios através das suas terras. Deixar esse culto seria a desunião dos municípios. Ora, os municípios simbolizam os anéis socioculturais, socioeconômicos e sociopolíticos.10 Se para o catolicismo deveria se abolir o culto dos ancestrais, para os kôngo tal fato resultaria no desmembramento da União. Optou-se pelo “Dia de São Tiago”11 como convergência, mas a radiografia dos factos indica que foram duas realidades antagônicas. O culto dos ancestrais enquanto anel político-cultural é um rendez-vous entre o Poder central e os partidos políticos e esse diálogo é desejado por todos os sectores sociais com fins de alcançar a felicidade social. Ora, a missa para salvação individual não bate certo.
Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga materializou os propósitos da aliança: (i) foram mandados jovens kôngo estudar em Portugal em diferentes especialidades, incluindo a Teologia; (ii) foram construídas igrejas e escolas em Mbânz’a Kôngo. Durante 39 anos, verificou-se uma nova topografia social, anatomia social diferente e forças culturais que competiam para o Poder, isto é, durante o reinado do monarca kôngo nasceu uma cidade europeia que rivalizava com a cidade que ainda aderia à moda local. Daí, nasceu um duelo entre cidade-Estado e cidade-aldeia. A primeira é urbanizada aos conceitos da hierarquia vertical (figura do rei/lei) na base do cristianismo, ao passo que a segunda é urbanizada aos conceitos da hierarquia horizontal (colegial) na base do culto dos ancestrais.13 Essa separação cristalizou-se nos habitantes consoante residirem numa ou noutra cidade.
2. Crise na sucessão dos reis pós-Dom Afonso
Depois de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga falecer, a situação agudizou-se com irregulares competições políticas, assassinatos frequentes e desordem total. A causa situa-se na bifurcação das duas topografias sociais concorrerem a um mesmo espaço. O comércio dos escravizados foi instalado, com a bênção dos padres, com o agravante de despovoar os principais centros populacionais. Já na época de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga, verificavam-se missões militares com exploração prévia dos religiosos: Simão da Silva em 1512; Gregório Baltazar em 1520; Baltazar de Castro em 1526; Manuel Perreira em 1537. Contudo, Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga ergueu a igreja num local chamado Mbîla (ou Mbîlu), que era um lugar sagrado.
Depois da morte de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga, em 1543, Dom Pedro I Ñkânga Mvêmba sucedeu-o sob grandes contestações da cidade-aldeia que não reconheceu a sua consagração por um Nsaku Ne Vunda legítimo.15 Essa revolta foi consentida por grande parte da cidade-Estado. A sua eleição é um ato anticonstitucional que os portugueses – com os seus aliados locais – queriam legitimar, à luz daquilo que aconteceu com o filho de Dom João I Ñzîng’a Nkûwu. Neste conflito político, desenharam-se disparidades econômicas e o mercado financeiro colapsou na cidade-aldeia.16 Ora, a cidade-Estado tem pouca população em relação à cidade-aldeia. Isso reverteu a realidade: riquezas que desde sempre pertenciam aos munícipes passaram a ser reserva exclusiva dos habitantes da cidade-Estado. Uma minoria com riquezas e forças (militares) acaparou-se, também, da legitimidade do Conselho do reino (que, na verdade, era completamente pertencente à cidade-aldeia). Os centros socioeconômicos da cidade-aldeia passaram a fornecer escravizados e foram privados das suas forças sociais. O rei Pedro I Ñkânga Mvêmba foi deposto em 1545 e, por força, exilou-se numa igreja.17 No seu lugar, foi tronado Dom Francisco I Mpudi’a Ñzînga Mvemba com apoio da cidade-Estado. Contudo, ele morre no mesmo ano, deixando o lugar a Dom Diogo I Ñkûmba Mpudi’a Ñzînga. As guerras não cessavam. Desenhou-se uma nova percepção da lei sucessoral: o mais forte com apoio dos descontentes poderia ocupar o trono. 18 Depois de dois anos de intensas guerras, ele consegue – com o apoio das armas dos portugueses – minimizar os ataques contra Mbânz’a Kôngo. Era neto de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga e sua mãe era oriunda de Mbâmba, onde recolheu grande apoio popular. Ele reabriu as relações com o Vaticano com o propósito de manter relações religiosas diretas. Dessa relação, foram construídas grandes escolas e dois complexos missionários: um em Mbânz’a Kôngo onde se construiu a catedral, e outro no nordeste (Madîmba ma Kôngo). O Papa Paulo III apoiou o Kôngo, através de Portugal (rei João III), para fazer face às reformas protestantes e em conformidade com a metodologia da evangelização adotada no Concílio de Trento (1545). Em 1549, Dom Diogo I Ñkûmba Mpudi levanta-se contra o tráfico negreiro, principalmente em Mbâmba (Luanda) e descobre que os portugueses nessas zonas apoiavam o retorno de Dom Pedro Ñkânga Mvêmba (filho de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga). Ele expulsou os portugueses de Mbânz’a Kôngo, como retaliação. Perdem aliados em Mbâmba de maneira que os sobas mbûndu rebelam-se em toda a parte do sul. “No dia 4 de Novembro de 1561, foi anunciado o assassinato do rei assim como do seu sucessor”. 19 Logo foi sucedido pelo Dom Afonso II Mvêmba Ñzînga. Esse último completou apenas um mês de reinado, tendo sido assassinado por seu meio-irmão, Dom Bernardo I Ñzînga Mvêmba, no dia 1 de Dezembro de 1561.
Dom Bernardo I Ñzînga Mvêmba reinou durante cinco anos (1561-1566) 20 sob grandes contradições entre instituições públicas e aliados portugueses. De outra parte, a inimizade entre cidade-Estado e cidade-aldeia foi mais expressa na batalha liderada por Dom Henrique Mpûdi’a Ñzînga, na qual Dom Bernardo I veio a falecer. O seu ato não foi aplaudido, de modo que ele reinou apenas entre abril de 1566 até fevereiro de 1567. Com a morte de Dom Henrique I Mpudi’a Ñzînga, a cidade-Estado legitimou Dom Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba. Na visão dos portugueses, era necessário manter a descendência de Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga no Poder. O novo rei restabeleceu as relações Kôngo-Portugal e delegou os poderes religiosos aos católicos com objetivo de evangelizar as aldeias longínquas – mas sem perdê-los de vista através de outros mecanismos (os Nsaku). Ele reinou entre 1567-1587.
De forma breve, vamos citar François Bontinck que nos resume a desordem semeada da inconstitucionalidade cometida por Dom Afonso I Mvêmba Ñzînga:
Depois da morte do primeiro rei batizado, D. João I (c. 1508), D. Afonso I apoderou-se do Poder expulsando da capital o seu competidor Mpânzu. Ao Dom Afonso I sucedeu D. Pedro I, seu filho. Este rei veio também a morrer e não tinha filhos. Foi o seu irmão, de nome Dom Francisco que o sucedeu, embora o seu reinado tenha sido efêmero. O quinto rei [cristão] subiu ao trono: chamava-se D. Diogo e foi o mais próximo da linhagem real […] Depois da sua morte (D. Diogo, 1545-1561), três pretendentes reclamaram o trono. O primeiro era o filho do rei, mas não tinha o apoio popular suficiente […]. Restavam os dois outros… Um deles foi feito rei pelos seus apoiantes, mas contra vontade dos portugueses e alguns senhores que, para eles, visavam colocar o terceiro pretendente. Assim, foram à igreja, onde o coroado foi decapitado. Em tempos diferentes, os do partido adversário assassinaram o eleito dos portugueses […]. Desta maneira, na mesma hora e nos locais diferentes, os dois príncipes foram assassinados […]. Por causa dessas conjurações e assassinatos, ninguém se aventurou a pretender o trono, ainda que tenha legitimidade. Como já não restava ninguém do sangue real para “entregar” o Poder, escolheu-se um irmão do rei Diogo, chamado Dom Henrique. Dom Henrique morreu durante a guerra pouco tempo depois da sua coroação. Dum acordo unânime, escolheu-se Dom Álvaro (1568-1587) que foi reconhecido como soberano, pertencendo à antiga linhagem dos reis do Kôngo sendo desligado com Dom Henrique.
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