Continuação do artigo: NDONGUTI, O FILÓSOFO AFRICANO
Por Patrício Batsikama
O elogio à vida intelectual no espaço Kôngo era desejado por todos, mas poucos o alcançavam, devido às exigências formativas e à capacidade e inteligência de cada um. Os jovens que terminavam nzo ñtonono (escola de Filosofia) constituíam uma esperança da classe de sábios na sociedade. Ao terminar a escola de sábios, o formado ñtoni via o seu prestígio pessoal aumentado, visto que, dali em diante, lhe seria permitido assistir ao Conselho dos sábios. Cedo, aprendia a deontologia dos ndônguti, filósofos, ou seja, manter se cismático e tolerante.
O ndônguti esperançava a sociedade em três aspetos, entre outros. O primeiro era a presença deles em toda a cadeia da educação, desde nzô lusân-sa (escola primária) até nzo nzikudi (escola de adultos). Eles influenciavam o período de transformação de criança para adolescente. Logo, os jovensfaziam elogio à inteligência olhando nela a base de todo o prestígio social.O segundo aspeto era o Conselho de sábios que cada aldeia possuía. Entre as várias tarefas, essa instituição de sábios era guardiã da integridade social. As diferenças, querelas, dificuldades no seio de qualquer aldeia eram resolvidas pelo Conselho de sábios. Ora, todos eles eram ndônguti, isto é, filósofos.O terceiro aspeto tem a ver com a administração pública, desde o município até a realeza, pois todo líder é filósofo, diz o adágio: kimfûmu kiñtona. Ou, bumpati, buzayi. Ou ainda, ñtudi’a wantu ndwêngi. Aqui temos uma proxi-midade muito intensa com Platão, quando este aborda a necessidade do rei filósofo em sua obra intitulada A República. Neste diálogo, Platão descreve sua visão ideal de uma sociedade justa e ideal, na qual os governantes devem ser filósofos, possuindo conhecimento e sabedoria para liderar de forma justa e benevolente. O rei filósofo é aquele que possui a verdadeira compreensão do bem e da justiça, e sua função é governar visando o bem estar de todos os cidadãos. Dito isso, temos nas canções do nzo ñtonono, a musicalidade e as rimas ajudam a memorizar o conteúdo semântico. «Kimfûmu kiñtona» significa «ao chefe, exige se sabedoria metódica e virtudes», ao passo que «Bumpati, buzayi» é especificamente um espaço político: para ser político, melhor armar se de consciência, erudição e conhecimentos sólidos. Final-mente, ñtûdi’a wântu, ndwêngi. Quer dizer, todo líder é filósofo. Apenas os iniciados na Filosofia podem garantir a coesão de qualquer sociedade, assim pensavam os Kôngo.
A Tradição histórica oral ressalvou a linhagem com nome de Tona cujo ndûmbululu (narração histórica) diz o seguinte: Mazînga ma Tona watona makanda mawôngo; wakabula mpûngu makanda mawônso. Tradução: Mazînga ma Tona – que é director da escola – educa e conduz todos os clãs e ilumina os chefes de terras (líderes de terras). O refrão de um cântico invocação a Nzâmbi Kalûnga diz o seguinte:
Kota ñsutu, vayika muntu
Kunda ndwêngi, Ya Mwinyâdi
Mpûngu Kalûnga, Na Tona
Wûti Tônta, yâdika ndônguti.
Entramos virgens, saímos virtuosos
onramos sabedoria de Ya Mwinyâdi
Poder dos ancestrais veio de Na Tona
Maternidade de sábios para meditações.
O que nos chama aqui a atenção é mwini yadi ou mwinyâdi a que Karl La-man dá a morfologia de mw iadi para traduzir por ‘monarca’, ‘soberano’. No nzo nzikudi, há duas figuras: Ntêmoni e Mwîni Yadi. A primeira ensina as virtudes com o objetivo de acender a luz interna da pessoa e torná la inteli-gente. Já a segunda tem duas funções: (a) os saberes práticos da luz interna; (b) o uso de virtudes no exercício do Poder. Literalmente, mwîni yâdi quer dizer: luz do Poder. É metáfora para dizer «Poder na base de virtudes». Os antigos exerceram com brilho o poder; eles aprenderam essa arte de gover-nar com virtudes graças ao pensador chamado Na Tona (ou Mazînga Tona). Com relação a Wûti Tônta, referenciado no fim do cântico invocação, tudo indica que seria Yûti ñtônta, que era um tipo de Ordem de Filósofos, para salvaguardar a deontologia.
Com isso, notamos que ser filósofo neste território era prestígio máximo, visto que interfere em quase todos os domínios para garantir conhecimento, sabedoria, virtudes, entre outros.
Direito à Filosofia em África e Cheikh Anta Diop
Olhemos finalmente a questão do direito à filosofia na África inde-pendente em função de uma ratio cognoscendi (identidade do conceito),ratio fiendi (oposição no predicado), ratio essendi (analogia do juízo), ratioagendi (semelhança na perceção) para perceber o olhar diferente atribuído ao longo dos tempos. Talvez assim se perceba o projeto científico de Cheikh Anta Diop nessa questão.
A filosofia não é um direito grego “doado” à humanidade. Tal pensa-mento precisa ser evitado. Diferentes pensadores escreveram consideráveis contribuições sobre África. Discutiram, de forma notável, a epistemologia da independência filosófica da África e os tópicos relacionados com o tema foram esclarecidos. Atualmente, a exclusão da filosofia africana é frequente-mente repetida como um eco do legado colonial.
Que utilidade teria tal discussão sobre a independência filosófica em África? Na sua tese, Arminda Filipe refletiu sobre a democracia em África à luz dos paradigmas endógenos. É interessante, visto que a democracia foi “validada” pela filosofia (Sócrates, Platão, Aristóteles). A autora esforçou se de sistematizar o ondjango, de tal sorte que, face a perda de sensibilidade na “modernidade líquida”, inspira duas possibilidades. Primeira: explorar a realidade interna da África, se for possível, aquilo que a colonização não “colonizou”. Segundo, revisitar a etnografia colonial e, na base de revisões necessárias, trazer novas interpretações à discussão. Ela optou pela segunda.
Ainda assim, a questão permaneceu não solucionada devido ao grau de influência da educação (o centro), onde esses saberes endógenos africanos (periferia) não se integram. Nem são incluídos no sistema de Ensino na maior parte dos países africanos. A Faculdade das Humanidades da Uni-versidade Agostinho Neto tem feito grandes esforços nesse aspecto, com fim de estimular a consciência social dentro das diferenças sociais. Ainda assim, nota se ainda certo desinteresse conjetural da permissibilidade de qualquer diálogo, por razões económicas: o que aportaria a filosofia na modernida-de e, pior ainda, uma filosofia africana mal conhecida e muito contestada? A Lei 10.639 de 10 de janeiro de 2003 no Brasil estimula a História e Cultu-ras de África no ensino. Ainda assim, é preciso mais bolsas de pesquisa que se debrucem sobre esse aspecto. A sofisticação do neoliberalismo, tal como já o notavam Foucault e Bourdieu, redefiniu o ser e o social na metamorfose das sociedades capitalistas. Ora, nas sociedades outrora oprimidas – como é o caso das sociedades africanas – a redefinição requer (re)mapear o pensar prático (filosofia intervencionista) a partir dos saberes locais. Nessa senda, o antigo decano da Faculdade de Ciências Sociais, professor Victor Kajibanga, realça saberes locais na problemática da Filosofia africana. Passar se á na deselitização do conhecimento por via da afirmação cultural. Talvez seja a via menos dramática de perceber o direito à filosofia a todo ser pensante.
Entendemos que a influência da elite educada na base de pressupostos ocidentais predefiniu uma certa filosofia africana, que se encostou na orto-doxia ocidental e olhou a África com duas lentes: (a) uma de fora; (b) outra de dentro. Talvez se situe aqui a base das dificuldades verificadas no início da edificação da independência filosófica, que tanto os filósofos africanos esforçaram se provar. Foi pena que essa elite intelectual africana não tenha percebido quão a diversidade sustentável é uma potência simbólica. Era pre-ciso associar a démarche de legitimação da filosofia a um projeto de defesa da soberania e implantação em África das economias fortes. É necessário saciar as necessidades fisiológicas, para pensar melhor, tal como se diz em kikôngo: bânza fwa nzala, luvûnga. É preciso rigor e vigor para produzir o conhecimento. Quer dizer, era inconcebível desempregar o filósofo profis-sional. Em maio de 2006, desembarquei no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa; o polícia de imigração que verificou a minha profissão e meu passaporte perguntou me amigavelmente o seguinte: “por acaso, é rentável empregar filósofo em Angola?”. Respondi, amigavelmente: “sim, mas não por muito tempo”.
A colonização foi fortalecida pelas ciências sociais e humanidades, o que parece não ter sido mera coincidência. A sociologia do colonizado desenvol-veu uma prisão psicológica estratégica, capaz de alienar o oprimido de sua própria identidade, levando o a adotar a fé alheia e a desinteressar se de suas próprias riquezas. O Presidente Sékou Touré era de opinião que a desco-lonização consiste em eliminar “todas as más consequências morais, inte-lectuais e culturais do regime colonial”. Concordamos, parcialmente. Não obstante, é preciso identificá las (ratio cognosciendi), reapreciá las (ratio fiendi), confrontá las com outras opções (ratio essiendi) com fim de recons truir a África diversificada e competitiva face aos desafios atuais. O sistema da Educação foi minado; sendo preciso desminá lo através da filosofia como forma de libertar as estruturas ontológicas do legado colonial.
Na sua História do ensino em Angola, publicada em 1970, Martins dos Santos fornece nos três leituras diferentes. Uma tem a ver com o ensino como espaço do poder da elite estrangeira cuja divulgação tende a remode-lar os costumes endógenos. Victor Kajibanga questiona a descolonização e desdogmatização nesse processo. Outra leva nos a perceber que as tenta-tivas de uniformizar o capital cultural não objetivou quebrar as assimetrias. A última resume se nos efeitos do ensino, entre os quais a luta de libertação que conduziu à independência. Duas perguntas permanecem por responder: qual era a filosofia pedagógica? Qual foi o lugar dos saberes endógenos no desenvolvimento do ensino de África, especialmente em Angola?
Agostinho Neto terá dado uma resposta parcial, no seu discurso datado de 7 de fevereiro de 1974, na Universidade de Dar ès Salam (Tanzânia) ao dissertar sobre os três aspectos supracitados. Primeiro: a liberdade é uma autorealização vital de todo ser, de tal sorte que os angolanos tomaram cons-ciência dela e predispuseram se em conquistar a sua independência: “vitória ou morte” era o slogan dos independentistas do MPLA. O segundo: o di-reito à liberdade prefigura a inteligência abstrata de qualquer ser pensante. O terceiro: direitoao pensamento, este é inalienável e configura a dignidade vital desde Homo faber. António Agostinho Neto abre nos aqui uma bre-cha para entender quanto a invalidação da Filosofia Africana é uma quimera neocolonial. Porém, no seu poema Comboio africano, Manguxi observou o seguinte: «um comboio subindo de difícil vale africano?; «muitas vidas ensoparam a terra onde assentam os rails e se esmagam sob o peso da máqui-na e no barulho da terceira classe». Depois, ele concluiu: «lento, caricato e cruel: comboio africano». Está quase tudo dito.
Era necessário, portanto, descolonizar o sistema educacional através de uma política cultural que promovesse o orgulho ontológico, com uma filo-sofia pedagógica voltada para os conhecimentos endógenos. O professor Horace Campbell apreciou a filosofia de libertação de Agostinho Neto. Por sua vez, o professor Wamba dya Wamba escreve o seguinte:
Obenga aliou se a Diop para militar a favor de que a Filosofia nasceu em África. As evidências históricas são nos irrecusáveis. Apenas receio que, com isso, os intelectuais africanos caíam no erro de afro filosofismo. Con-cordo com a anterioridade da “Filosofia clássica” no Egipto pois não se pode esquecer que o modelo socrático era estrangeiro na própria Grécia. Então, devia vir de algum sítio. Eu acho que todo povo produz símbolos e dispõe de língua ou conjunto de sistemas de pensar. Logo, esse povo expõe capacidade de filosofar. A Filosofia nasceu onde o ser a pensou.
Os estudiosos lusófonos citam, geralmente, o moçambicano Severi-no Ngoenha e (depois de várias traduções) o camaronês Achille Mbembe. A obra do filósofo ganense Kwame Appiah foi traduzida, também. O profes-sor moçambicano fez perceber que o conceito de capital humanopassou a ser coisa, instrumentocom todas as condições de ser explorado.Concernente a filosofia africana, Ngoenha debateu sobre interculturalidade que fomenta a filosofia, desde que não fixe as diferenças culturais. Evitar se á as particula-ridades (filosofia africana, etnofilosofia) em benefício da universalidade da filosofia. Essa forma ajuda a evitar um certo relativismo ou antropologismo que foram as dificuldades de afirmação da filosofia africana. Na mesma pro-porção, embora um pouco diferente, temos o professor Nkolo Foé. No seu artigo, ele expõe as diferentes etapas da evolução da Filosofia africana como uma força emancipatória face ao colonialismo. Por um lado, “reprova” a negritude face as imposições capitalistas e neoliberais. Por outro, percebeu quão é a disceptação (ou falta de concordância) entre as sinergias descolo-nizadoras da Filosofia Africana perante as obstruções impostas pela colo-nialidade e cujo padrão do poder herdado mantém os saberes endógenos em África sob alçada da dominação simbólica ocidental. Atenas, Paris, Londres e Roma continuam a ser, para os pensadores descolonizadores africanos, os “lugares sagrados”. A subalternização das nações africanas – sempre redu-zidas em etnias: etnofilosofia – armadilha nos na articulação da Filosofia Africana. O pós colonialismo reforça o dogma pós moderno do complexoque aceita que a realidade do mundo é opaca e inacessível à razão. Kwame Appiah faz críticas consideráveis à Filosofia africana, colocando acento tóni-co no intencionismo que moldou os argumentos. Melefi Asante chamou o de anti africano.
O professor Mogobe Ramose publicou, entre outros, dois textos interes-santes. O primeiro discutiu a legitimidade da Filosofia Africana, e o segundo realçou o exemplo de Ubuntucomo um modelo de Filosofia Africana. Para ele, os preconceitos lavrados em um período de dominação, substanciam o fio lógico que constrói a negação do homem africano. A Filosofia Africana tornou se a démarchepara ilustrar a racionalidade do africano em busca de honradez ontológica de ser homem. Fundada no epistemicídio, a Filosofia Africana perde o tempo em provar a sua essência numa plataforma onde está, a partida, excluída pela ideologia da força simbólica não africana. Daí, Ubuntunada deve à ortodoxia filosófica ocidental. O ubuntualicerça se na interpretação lógica e construção epistemológica válida sobre o ser pensan-te.Isto é, o Ubuntué manifestamente prova da validadeda filosofia afri-cana, pelo que não é necessário nem obrigatório que essa legitimação passe pela ortodoxia ocidental. Nessa linha, Ivy Goduka é tida como profícua pen-sadora sul africana, em busca da legitimação da Filosofia local.
Outra filósofa é Nadya Yala Kisukidi que traz duas ideias: (a) descolo-nizar a disciplina de Filosofia que é, por princípio, a revisão da genealogia anticolonial a partir da configuração de outros espaços epistemológicos não europeios; (b) direito à Filosofia a todos os povos que retoma a reflexão em torno da possível hegemonia de uma Filosofia ocidental face aos saberes não ocidentais. Podemos, do modo igual, citar Séverine Kodjo Grandvaux que publicou Philosophies africaines. Para ela, as filosofias africanas des-montam o discurso hegemónico colonial, como sequência à luta de liberta-ção: descolonização conceptual. As três plataformas desta luta são: (a) ser para si; (b) ser no epicentro da cidade; (c) ser como produtor do conheci mento. Logo, a Europa já não é a farmácia do mundo, tanto é que o mundo já não tem uma farmácia única. A própria Europa precisa de subsídios de outras farmácias do mundo.
A África independente foi, no início da época pós colonial, o objecto de reflexões. Os objetivos não variaram tanto. Quer ontem, quer hoje, a «valo-ração da África» no prestígio simbólico continua a ser o principal objetivo visto que desde a alta antiguidade, África foi “pintada” de Inferno e o afri-cano aceitou inconscientemente pelo imperativo da educação veiculada na linguagem do ex colonizador. Piorou no século XIX. O Ocidente decretou que África não tinha Filosofiae garantiu a reprodução da opressão simbólica para “libertar” o espírito africano.Será que África deve absolutamente de-pender do exterior para afirmar ou legitimar as suas filosofias?
Ao tomar consciência da luta, o africano ergueu uma afirmação iden-titária que o valora a partir de uma reapropriação simbólica da sua cultura associada ao algoritmo do patriotismo e sentimento de regozijo cultural. Kwame Nkrumah o entendeu que deverá pelo consciencialismo, cuja parte dele tratar se de identidade de linguagem, patriotismo para fortalecer a supe-restrutura cultural.Mas a questão é tão complexa que, no individualismo moderno, remove se os corpos que sejam eles racializados (neoliberalismo) ou etnicidades corporizadas (pluri universalismo). Achille Mbembe sublinha o seguinte:
As antigas metafísicas africanas podem considerar se metafísicas do devir e não da substância. As tecnologias informáticas que agora capturam o mundo inteiro permitem nos, melhor do que as filosofias ocidentais sobre o sujei-to, pensar a identidade enquanto movimento contínuo, nunca igual, sempre aberta ao devir, que cessa de se sintetizar de novo, ao encontro de outros fluxos de energia.
Vamos terminar com o professor Tshiamalenga Ntumba, criador do con-ceito bisoïté (bisonidade: “biso na biso”, em lingala). Ele apresentava nos esse conceito de duas maneiras: (a) um que se torna múltiplo; (b) a unidade de “nós unificador” em construção. Há semelhança de base com Ubuntu, comparando o argumento e os pilares epistémicos: eu e nós. O suporte ontológico de ngayi (eu, em lingala) realiza funcionalidade e estrutura epis-témicas de biso (nós, em lingala). É anti ética e anormal falar se de eu, na realização das coisas. Daí, o «um múltiplo» (biso) resolveria o dualismo ontológico. Em 1994, após a nossa formação no ndonguta, sugerimos uma revisão de “nós unificador” em construção comparando os com o fenómeno de octeto em química. Em língua cilubatetu tem dois aportes (te e tu), como em língua kikôngo (ye e to), que fazem com que o nós seja uma unidade múltipla que evoluiu em três dimensões complementares: (a) espaço inte-gracional; (b) indivisibilidade personalística; (c) marcha heterotópica. Esta última foi a novidade, na época (1994). Na compreensão iniciática de tetuou yeto há dois entendimentos caso decompomos te tu e ye to: (a) te ou ye; (b) tu ou to. O primeiro (te/ye) é uma dimensão atemporal, ao passo que tu/to pressupõe inteligência, criação. O “velho” Tshamalenga Ntumba sugeriu nos incluir a estrutura (cabeça) e articulá la na sua diversidade semântica e unicidade estrutural.
O tempo, segundo os Bantu, é sol. Símbolo primitivo de Ñzâmbi, uma entidade atemporal. O te ou ye é tudo que nos precede, tudo que existe antes da existência. Por isso a antropomorfização de Ñzâmbi é: Te, Ta ou Ye ou Ya. Quer dizer, Pai, Sumo, Extraordinário, Superior. Daí, ao associar «te/ye» e «tu/to» delimitamos o nosso “antes” e prevenimos o nosso “futuro”. Isso não pode ser possível com ngayi/eu. Só é possível com biso/nós. O eu morre, ao passo que o nós sobrevive. Mas para sobreviver esse biso (nós) existe em mesmo tempo e em vários lugares (heterotopia), dentro do princípio do mo-vimento: marcha. Essa marcha começa pela organização/estrutura (sugestão do velho Tshiamalenga Ntumba com a estrutura), passa pela produção sé-ria (na ciência, economia, política, arte, etc.) e não termina devido a garan-tia da transferência geracional regular de competências. Nas sociedades de tradição oral, a memória articula o tempo e o eu com relação a duração e matéria. Mas, o nós/biso simboliza a estrutura permanente.
Na nossa aceção, a bisonidade (bisoïté) é uma articulação de visão endó-gena de filosofia prática que recusa vergar se perante a hierarquia da colonia-lidade. Ela pressupõe que o ser humano existe em função de toda realização do nós como fundo. Porém, o investimento simbólico de nós na forja do indivíduo como parte integrante de nós define a sua inquebrabilidade social. O elemento to|tu (no yeto = nós | no tatu) enquanto estrutura refere se à terra, domínio dos ancestrais. Não é possível quebrar o nós/biso e a filosofia da bi-soïté erguer se na contramão da colonialidade. E face ao brutalismo, a bisoïtépode ser vista como uma das opções por armar se, uma memória reivindicada. A escola filosófica de Kinsâsa tem honrado Tshiamalenga Ntumba pela sua bisoïté. Na realidade, o filósofo congolês atualizou apenas uma das correntes da Filosofia luba dentro do contexto da autenticidade unitarista naquele país e naquela época.
Antes de concluir essa secção, importa nos olhar algumas contribuições de Cheikh Anta Diop. Ele nasceu no dia 29 de Dezembro de 1923 e faleceu no dia 7 de fevereiro de 1986. Estudou química e física em Paris, tanto como Egiptologia e História. Sob orientação de Marcel Griaule, defendeu a sua tese em 1960 provando que o Egipto antigo era povoado pelos povos africa-nos (negros). A mesma tese foi apresentada – com alguns contra argumentos que foram respondidos – no Colóquio Internacional de Cairo em 1974, orga-nizado pela UNESCO, onde Diop afirmou que o “Egipto antigo era africano (dentro da África) quer na sua cultura quer na sua maneira de pensar”. Cheikh Anta Diop montou o Laboratório do Radiocarbono (C14), no IFAN (Instituto Fundamental da África Negra), na Universidade de Dakar. É uma figura contestada, mas a sua obra densa determinou o Renascimento Africa-no e constituiu ainda base de discussões.
Cheikh Anta Diop tentou mostrar que era possível alcançar a liberdade através da ciência. Sem ser racista, ele questionou toda a racialidade que legitimou as teses sobre a inferioridade do negro africano. O processo da escravatura foi decisivo. Importa dizer que a expressão negro africano em Diop tem dois sentidos: (a) o colonizado que a Europa estigmatizou de ser bárbaro, selvagem e não civilizado; (b) conjunto de povos da África com parentesco fundiário aos egípcios que criaram civilizações. Isto é, não um discurso racista, mas uma categorização que optou devido a classificação de Lucien Levy Bruhl, na Sociedade Francesa de Filosofia. Também, África negra não significa que a tez de todos africanos seria negra, mas sim na di-versidade existente com relação a melanina os egípcios se identificavam em kala (preto, castanho) e seu país de Kemet (terra dos pretos, castanhos). Ele deixa várias questões explícitas94, tal como Théophile Obenga nos expõe, na sua dissertação proferida no dia 2 de Outubro de 2018:
Dire que Cheikh [Anta] Diop était raciste, c’est n’importe quoi… Vous savez, em 1974, au Colloque du Caire,… il a démontré que l’Egypte ancienne était d’abord peuplée de noirs de l’Afrique, bien avant que d’autres peuples n’y immigrent et ne s’y naturalisent, par la suite… Dans les années 1960, Chei-kh Anta Diop avait précisé des catégories de noir, blanc et la race. Claude Lévi Strauss ne l’a pas contredit. Diop a démontré dans son laboratoire, à l’IFAN96, que l’eumelanine des pharaons n’était pas un pigment brun foncé(brown), mais três noir (black)… C’est pour dire que Kemet a lancé les bases de la Philosophie que les grecs Anaximandre de Milet, Pytagore, Socrate, Pla-ton ont emprunté pour les reféxions, comme je l’ai exposé dans mon livre.
Ao defender a tese segundo a qual o povoamento do Egipto antigo era negro africano, sem negar os aportes orientais, o egrégio professor sene-galês construiu o âmago da filosofia crítica da História que se associava à Filosofia africana. O professor Molefi Kete Asante retomou a questão para averiguar os alicerces teóricos do afrocentrismo. Com isso, Cheikh Anta Diop influenciou o pós modernismo africano e subsidiou a pós crítica da descolonialidade. Ao falar da unidade cultural da África, que na verdade é oriunda de uma diversidade histórica e da pluralidade identitária, ele tentou afirmar na ciência a inquestionabilidade histórica da União Africana: Eis um plano político!
Mas para isso, havia necessidade das autenticidades, e delas sobressaiu o racismo científico que era preciso descolonizar a partir dos modelos das universidades em África. Cheikh Anta Diop considerou a raça como cons-trução fenotípica e sociocultural que foi estigmatizada enquanto negra, de tal sorte que a ciência seria remédio para descolonizar os conceitos impostos aos africanos durante a longa colonização. O pensamento racional de Diop foi retomado na Escola de Filosofia de Kinsâsa, nos anos 1991 1995, para responder a três questões:
- Filosofia Africana: mito ou realidade?
- Descolonização: científica ou ideológica?
- Unidade cultura africana: como reforçar OUA/UA ou países
A negação da História e da Filosofia à África, especialmente ao território negro africano, parece ser infundada. As evidências da existência de Filosofia são abundantes. Desde o Egito antigo até as nações que se estendem do Senegal à Etiópia, do Sahara ao Kalahari, desde a região dos grandes lagos até o Atlântico, encontramos vestígios de pensamentos e sagacidades locais. A palavra philo sophia pode ter sido emprestada da Grécia, mas seu exercí-cio era uma realidade no Egito desde 2.700 a.C. e em muitas partes da África antes da chegada colonial. Théophile Obenga vai além, demonstrando os empréstimos que a Grécia fez, traduzindo hieróglifos cujos símbolos ainda caracterizam inúmeros aspetos dessa região africana, do Sahara ao Kalaha-ri. Importa realçar que com relação à Filosofia, o Egipto está em África tal como a Grécia está na Europa, assim observou o físico senegalês.
Entre 1983 e 1996, a Revue Philosophique de Kinshasa da Faculdade de Teologia Católica publicou vários números com artigos de qualidade, com ele-vado rigor e uma lógica notória. Esses artigos foram de consumo obrigatório aos estudantes na disciplina de Filosofia Africana, onde foram amplamente criticados nas salas de aulas visto que seus autores eram professores. Nessas discussões, a legitimidade da Filosofia Africana não se fez sentir, por ser uma questão ultrapassada. Esse tema foi abandonado no fim de 1991. Quais seriam as razões para o abandono desse debate de legitimação? Vamos repertoriar as fases principais dessa discussão para se perceber essa renúncia do debate.
No final do século XVIII na Europa, a universalidade da razão de Des-cartes assumiu o papel de hegemonia no Ocidente graças às grandes revolu-ções francesa, americana e inglesa. Isso levou Voltaire a classificar os povos com base em seu nível de razão, atribuindo estupidez e imbecilidade aos africanos, enquanto a Europa (e América) desfrutava(m) de uma razão apri-morada. Jean Jacques Rousseau lamentou a desigualdade do século XVIII e que o africano tenha sido limitado aos relatos dos aventureiros e merca-dores negreiros. Já Hegel associou a filosofia à liberdade, de sorte que o africano escravizado não terá alcançado a razão, nem a História103. Quem desenvolveu isso é Georg Gusdorf que, ao olhar o africano bárbaro, advogou que este último se limitou apenas no instinto de sorte que é modelo perfeito de homo mythicus. Logo, deve se excluir o africano do domínio da razão e da humanidade. Daí, Martin Heidegger acha que a filosofia foi um acidente ocidental na sua essência, uma vez que falar de Filosofia Ocidental seria uma tautologia. No início, nos debates dos pensadores africanos misturavam se críticas e controversas, às vezes paixão ao alento racista e descoloniza-ção filosófica. O discurso de Patrice Lumumba sobre a independência no Congo Kinsâsa é uma marca de mistura de ideologia política, ressentimen-tos e consciência histórica. Jean Marie Van Parys, outrora professor na Universidade de Lubumbashi, fez uma consideração sobre as contribuições concernente a Filosofia Africana entre os anos 1960 e 1973.
Celui qui voulait présenter la philosophie africaine s’est heurté jusqu’il y a peu et se heurte encore en bien des cas à l’affirmation d’une fausse évidence: «il n’y a pas de philosophie afriaine… Les mots Philosophie africane ne peuvent évoquer que la pensée de l’Afrique Noire traditionnelle et précoloniale.
Entendemos que a leitura de Jean Marie Parys não nos parece de rigor metodológico, além deste ilustre professor ter provavelmente extrapolado o conceito de filosofia africana, pois herdou de Georg Gusdoef e deu primazia à noção de homo mythicus. Jean Godofroy Bidima e Ernest Wamba dya Wamba desapropriam a história da escravidão do africano e assumem todo o compromisso da aceitabilidade do homo philosophicus. Por um lado, Bidima mostra que as evidências da filosofia negro africana, no plural, ultrapassam a ideia de pré colonial. Kwasi Wiredu articulou esse debate no caso dos Akan, completando a acepção de Bidima. Por outro, Wamba dya Wamba ilustra quão é irracional negar a qualquer ser humano a arte de filosofar e expõe os desafios que os filósofos africanos têm. Paulin Hountondji critica a etnofilosofia que dilui o conceito ocidental de Filosofia para dar lhe uma dose cultural, sem esquecer o espaço político para o desenvolvimento intelectual e do social. Isto é, será necessário que os militantes da Filosofia Africana desenvolvessem a universalidade da filosofia, associando esse exer-cício à afirmação cultural, política, social nos espaços académicos. Kwame Appiah fez uma síntese dessa trajetória, com uma releitura interessante. Em Angola, o professor Luís Kandjimbo publicou um texto que sintetiza as linhas gerais deste debate, de forma pedagógica. Recomendo a leitura desse livro aos leitores de língua portuguesa por tratar de um texto atuali-zado no que diz respeito à discussão sobre o “direito à Filosofia em África”(publicado em 2023).
A etnofilosofia terá legalizado o dogmatismo, como se a filosofia fosse atividade coletiva e inconsciente, sob cobertura da razão local e da regiona-lização da lógica. Era preciso manter a dialéctica entre a universalidade da razão e a especificidade cultural. Essas polémicas diversificaram o debate metodológico. Paulin Hountondji considera a Filosofia africana um conjunto de textos escritos pelos africanos e qualificados pelos seus autores de filo-sóficos. Para ele, só há filósofo onde existem escritos como base de reflexão e de debate. O professor Tshiamalenga Ntumba faz uma revisão nesse aspeto, ao diferenciar a metodologia na filosofia face ao ativismo filosófico que conduziu a História da Filosofia em África, cuja génese pode se enqua-drar relativamente à etnofilosofia. Por outro, realçar a importância de alguns rituais iniciáticos (aspectos culturais locais) que preservam de forma nítida dois aspetos: (a) textos; (b) seus autores. Lá se encontraria o novo ponto de partida para discussão atualizada sobre a Filosofia Africana.
Considerações Finais
O nosso artigo apresentou de forma breve cinco pensadores, com as suas contribuições. A publicação do livro de Théophile Obenga em 1991 apresen-ta aspetos técnicos, com um pendor metodológico, para provar os emprés-timos egípcios no início da acidentalidade ocidental da Filosofia. Por outro, revoga a ideia do dogmatismo e regionalização da lógica falando de etnofilosofia, fase inicial que, na base de metodologia, proporciona ponto de partida na discussão. A discussão deixou de centralizar se sobre a legitimação daFilosofia africana, visto que terão sido respondidas as questões levanta-das por Descartes, Voltaire, Hegel, Gusdorf, Heidegger, Levy Bruhl, comrelação a África. Uma nova fase da discussão nasceu, com uma pluralidade impressionante de temas. O nosso interesse aqui foi concernente aos nomes de pensadores africanos e seus pensamentos. A antiga escola de Ciências Políticas, para os funcionários públicos, testemunha a dinâmica da Filosofia no antigo Kôngo. Nota se que o objetivo era formar um líder pensador,semelhante à visão de Platão concernente rei filósofo. O líder pensador kôn-go é, a priori, um educador mobilizador dos seus seguidores (aqueles que partilha sua visão), estando sujeito à crítica. Paralelamente, o poder é ver-tical devido ao sagrado inquebrável que faz concorrer virtudes e hierarquia.
A discussão sobre a legitimidade da Filosofia Africana – iniciada com a Filosofia Bantu em 1948 1949 – ficou imbuída no pré conceito de selvagem, bárbaro e civilizado ou ainda de pobre, não pobre nem rico e rico. Isso estig-matizou, sobremaneira, a produção de pensamentos sobre a descolonização filosófica. Cabe à filosofia africana redefinir o espectro ambiental, cultural, económico, político, etc. para fazer face à complexidade dos desafios atuais. Para isso, é preciso dignificar a profissão do filósofo com o propósito de pre-venir qualquer não legitimação da Filosofia Africana que venha a traumatizar as gerações vindouras e comprometer todo o futuro. Isto é, filosofar sim; mas, paralelamente, deve se olhar as ciências exatas, tecnologias, medicinas, etc.
A partir de pesquisas específicas, fica nítida a necessidade de intervir para melhorar a situação – tal como o tentamos fazer aqui com ndonguti. O presente artigo identificou pensadores antigos de origem africana e as suas contribuições na filosofia, o que poderá ampliar os conteúdos que se ensinam na Filosofia Africana espalhados em diferentes Departamentos de Filosofia de várias universidades no mundo.
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