O PAPEL DAS MULHERES DA UPA/FNLA NA LUTA ANTICOLONIAL EM ANGOLA: A Trajetória De Luzia Macungo.

Por Nsambu Vicente*

Resumo: Este artigo esboço biográfico com enfoque na militância política de Luzia Macungo, uma figura emblemática da UPA/FNLA e da Associação da Mulher Angolana (AMA) na clandestinidade e da luta de libertação nacional de Angola. Pretendemos divulgar a sua experiência singular, destacando o seu contributo no contexto da luta de libertação nacional. Nesse contexto, a escolha do tópico decorre da escassez de estudos a versar sobre as mulheres desse movimento. Metodologicamente baseamo-nos em fontes orais e documentais. Os resultados indicam que, apesar da participação ativa dessa mulher na luta anticolonial, o seu papel ainda não é reconhecido na historiografia e na História oficial de Angola.

Introdução

Entre 1960 e 1974, a participação das mulheres na luta anticolonial foi significativa, com algumas atuando de forma individual e outras integradas em associações, como a Associação da Mulher Angolana (AMA), conforme relatam diversas fontes históricas.

Apesar de haver o envolvimento das mulheres, a sua participação na luta anticolonial em Angola é um assunto que tem merecido pouca atenção dos investigadores das áreas das ciências sociais e humanas. De modo geral, a grande preocupação tem sido, sobretudo, estudar o contributo daquelas mulheres e associações femininas cujos partidos não estejam no poder na atualidade, como acontece com a UPA/FNLA e a sua organização feminina, a Associação da Mulher Angola (AMA).

O artigo se concentra nos fatos objetivos da participação das mulheres da UPA/FNLA (União das Populações de Angola/Frente Nacional de Libertação de Angola) na luta anticolonial, olhando para o percurso militante e a experiência contributiva de uma mulher, Luzia Macungo, através da sua biografia histórica. O objetivo é divulgar a sua experiência que julgamos peculiar no conjunto das mulheres daquele movimento, hoje partido político que lutou durante a época do regime colonial português em Angola. A escolha por essa mulher justifica-se por dois motivos: carência de estudos que abordam o contributo da UPA/FNLA e da sua organização feminina, a AMA na luta anticolonial; à sua trajetória é de resistência e sacrifícios durante o período colonial em Angola. À semelhança de outras mulheres da época, Luzia sofreu intensas torturas e abusos físicos, incluindo agressões sexuais forçadas, como uma forma de represália da autora.

Metodologicamente o estudo baseou-se em fontes orais e documentais. Orais: realizamos entrevistas, inicialmente, com a própria protagonista em 2020 e 2023. Também, dialogamos com alguns familiares e companheiros de luta em Luanda; Fontes documentais: analisamos uma vasta documentação no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)1 e Arquivo Histórico Diplomático2 , em Portugal, onde achamos documentos que fazem alusão ao contributo e perseguição dessa mulher na época do regime colonial.

Nesta perspetiva, a proposta temática que trouxemos tem ganhado espaço na historiografia recente angolana, embora a discussão, até agora, não apresenta um quadro satisfatório, visto que o discurso produzido está sob a ótica masculina, e os poucos estudos que abordam a participação das mulheres referem-se maioritariamente a um movimento, o MPLA e a sua organização feminina, a OMA. Essa situação está na base da carência de estudos, quer em obras literárias, quer em artigos científicos, referentes à participação das mulheres da UPA/FNLA e da AMA.

Mas, importa ressaltar que, apesar de exígua a literatura, o debate historiográfico em volta da participação das mulheres na luta de libertação de Angola tem despertado o interesse de alguns investigadores nas áreas das ciências sociais e humanas. Olhando para o fluxo de estudos relativos ao assunto, tivemos como critérios de inclusão asteses e artigos científicos publicados entre os anos de 2014 a 2023. Essa escolha possibilitou olhar para a dinâmica da historiografia angolana às questões voltadas para o contributo dessas mulheres enquanto sujeitos produtores da História.

De modo a traçar um quadro teórico exequível da participação das mulheres na luta anticolonial em Angola, num estudo pioneiro produzido no campo da Antropologia, Margarida Paredes (2014) em Mulheres na Luta Armada em Angola: Memória, Cultura e Emancipação, numa articulação entre a Antropologia e a História mostra como as mulheres participaram na luta de libertação em Angola. Devido à carência de investigações sobre estas mulheres, o estudo centralizou-se no resgate de memórias das ex-combatentes conseguidas por meio das entrevistas focadas na vida militar das protagonistas. Nisso, a autora investigou as incertezas entre o trabalho forçado e a resistência das mulheres na luta de libertação nacional e as intrigas da guerra civil protagonizadas pelo MPLA e a UNITA durante vinte e sete anos. Segundo a autora, o MPLA, no âmbito da sua propaganda, embora proclamasse que a mulher fosse parceira na luta, na prática, limitava o seu contributo direto na luta armada e na ocupação de funções de topo na hierarquia do movimento (Paredes, 2014).

No caminho crítico sobre a visibilidade das mulheres, o estudo da Margarida Paredes, sinaliza como a participação delas era decisiva na frente de combate e na retaguarda ao longo da luta anticolonial. Ou seja, no sentido de indicar que as mulheres eram ativas nas diferentes conjunturas já que atuavamde modo a contrapor o avanço do domínio colonial nas respetivas zonas operativas, contribuindo na logística e na condição de agentes de ligação, fundamentalmente. Margarida Paredes conclui afirmando que as mulheres foram afastadas das negociações dos processos de paz e dos benefícios da desmobilização e desmilitarização dos exércitos, a pretexto que numpaís onde quase todos os homens combateram, as mulheres não são importantes. A isso, as mulheres recusaram-se que as suas vozes fossem silenciadas. Terá sido a razão da criação do Ministério da Família e Promoção da Mulher, atualMinistério da Ação Social, Família e Promoção da Mulher3 ? (Paredes, 2014, p.331). Com essa visão oficial do governo angolano, terá sido resolvida a questão do silêncio e da invisibilidade das mulheres, ou o papel e a contribuição de muitas delas ainda permanecem pouco conhecidas?

Na mesma senda, o estudo de Patrício Batsîkama (2016), A Mulher na Luta de Libertação e na Construção do Estado-Nação em Angola: o Caso de Luzia Inglês VanDúnem, emabordagem de longa duração e com o olhar antropológico, fala da herança social e económica das mulheres no contexto africano. Esse estudo permite perceber como as mulheres angolanas, o caso da Luzia Inglês Va-Dúnem “Inga”, movidas pelo legado antropológico, participaram na luta de libertação nacional. Trabalhando com três categorias de fontes: (i) documental onde consultou diferentes fundos arquivísticos em Angola e Portugal; (ii) história oral, com entrevistas; (iii) ensaios onde consultou a pouca bibliografia que existe sobre as mulheres, diz que a participação das mulheres na luta de libertação de Angola foi efetiva e árdua, ainda que centralize a sua discussão numa mulher integrada na OMA, a Luzia Inglês acima referida (Batsîkama, 2016, p.73).

O interessante nesse estudo é o modo como o autor apresenta o contributo feminino no âmbito social, económico e político. Entende que, apesar da pertença social ser uterina nas sociedades angolanas, com a excepção nos Lunda que é patrilinear, as mulheres quase mantinham um “silêncio simbólico” nas questões políticas. Na sequência, o autor expõe que elas eram supostamente representadas pelos seus irmãos (mais velhos ou mais novos) de forma pública. Na verdade, foram e são elas as decisoras: osseus irmãos se limitavam apenas a cumprir as suas orientações. Compreendidas essas dimensões antropológicas da mulher em Angola, facilmente percebe-se como e porque tiveram de participar nas guerras de libertação e, seguidamente, nos diferentes processos históricos de Angola pós-independência até a realização das primeiras eleições em setembro de 1992 em Angola. Patrício Batsîkama conclui dizendo que a presença da Mulher na Luta pela Libertação de Angola é inquestionável e evidente. O que preocupa o autor é a rentabilização da figura de Luzia Inglês nos instrumentos educacionais do “Homem Novo” entoado no Hino Nacional: «Angola Avante». Também, segundo ele, a participação da Mulher na institucionalização do Estadonação é evidente (Batsîkama, 2016, p.86).

Ressaltar ainda a investigação da Dayene Augusta Santos da Silva em Na Cobertura da Retaguarda Mulheres Angolanas na Luta Anticolonial (1961-1974). Pretendeu saber como se dava o envolvimento das mulheres na História angolana no período de 1961-1974. Trata-se de um estudo sobre mulheres anónimas e com registo lacunar no que se refere à atuação delas nas fontes escritas. Para a escrita da sua tese, a autora recorreu a um conjunto de documentos nos arquivos localizados em Luanda e Lisboa. Também realizou e visualizou entrevistas, o que lhe permitiu captar as nuances e as dinâmicas das mulheres protagonistas da luta de libertação nacional. No seu estudo, cita a atuação das mulheres no período da luta anticolonial em espaços geográficos como Moxico, Vie (Bié)4 , Wizi (Uíge), Lunda, Kwanza Norte, Kwanza Sul, Wila (Huila), Kwandu Kubangu, Wambu (Huambo), Kabinda (Cabinda), Lwanda (Luanda) e Malange (Silva, 2021, p.46).

Parece-nos que ignorou a província do Nzandi (Zaire), antigo distrito do Zaire, outro espaço considerado bastião do teatro das operações da luta de libertação de Angola. Por que será? Terá sido uma omissão voluntária por se tratar de uma região exclusivamente de atuação da UPA/FNLA pelo menos até a década de setenta? Ou seriam as dificuldades de entrevistar os protagonistas e de encontrar documentos que falem dessa zona ou ainda se ignorou simplesmente a ação e da UPA/FNLA, a par do Wizi e Kwanza Norte?

Constatamos que, ao longo da narrativa, a autora menciona bastantes vezes «mulheres anónimas»; em que perspetivas o faz, no sentido de não estarem reconhecidas nos discursos políticos oficiais de hoje, sendo evocadas os seus nomes, como se procede, por exemplo, com a Deolinda Rodrigues e as suas companheiras? Essas mulheres anónimas são de que movimento? O interessante foi notar a autora em ter optado sinalizar as particularidades de atuação das mulheres nas diferentes regiões e grupos, como ela mesma faz questão de reconhecer, embora nos parece que essas particularidades por região não foram muito esclarecedoras pelo seguinte: se por um lado menciona “mulheres anónimas”, por outro, fala das regiões onde elas atuavam. Nesse caso, se atuavam numa determinada região políticomilitar ou zonas “libertas” quais eram os espaços onde os movimentos de libertação se estabeleciam e organizavam a vida das populações no trabalho, bem como à saúde, ensino (Silva, 2022, p.48). Certamente essas mulheres estavam agrupadas ou tuteladas por um determinado movimento nessa zona. O que levou a autora a não identificar essas mulheres nos movimentos onde estavam integradas? Qual foi a razão de generalizar a atuação delas se assume haver particularidades em função da região e do movimento? No cômputo geral, o estudo da Dayene da Silva pretendeu dar visibilidade histórica e visibilidade historiográfica às mulheres angolanas anónimas, algumas delas camponesas que participaram na luta anticolonial de 1961-1974.

Em vista as discussões dos autores anteriormente citados, compreendemos que ainda não foi realizado um estudo centrado nas mulheres da UPA/FNLA e na sua organização feminina, sobretudo a uma figura feminina desse movimento, hoje partido político. Portanto, esses historiadores e antropólogos têm produzido trabalhos de excepcional mérito, mas as suas perspectivas são diferentes, uma vez que à sua maioria ocupam-se em estudar as mulheres no geral, mas destacando as mulheres do MPLA e da sua organização feminina — OMA.

Com base na comparação e discussão historiográfica, decidimos estudar exclusivamente as mulheres da UPA/FNLA e a AMA, olhando para a biografia de Luzia Macungo. Com isso, queremos marcar o nosso estudo traçando o seu percurso militante ao longo do processo da luta de libertação nacional de Angola.

Quanto ao conceito de biografia, Joaquim Pintassilgo e Anabela Teixeira (2015) entendem como “um género tradicionalmente associado à história, mas que, durante muito tempo, foi olhado com desconfiança por parte dos historiadores profissionais” (Pintassilgo e Teixeira, 2015, p. 57). Os autores percebem que a biografia nos últimos tempos tem passado por um momento de renovação e tem ganho legitimidade como fonte e objeto da História e, ainda, como género historiográfico. Por isso, qualificá-la de “biografia histórica”.

Apoiando-se nesse ponto de vista, pretendemos alargar o horizonte da nossa abordagem à micro-história, biografando como referimos Luzia Macungo, numa perspetiva de “História vista de baixo”, uma vez que se trata de uma personalidade com contribuições excepcionais durante a luta anticolonial, mas desconhecida pela maioria dos angolanos.

Biografia de Luzia Macungo: Descrição da vida e ações na luta anticolonial

Luzia Macungo nasceu no dia 5 de Janeiro de 1945, no antigo posto administrativo do Kyaji, Concelho de Bula a Tumba (atualmente município do Kibaxe, província do Bengo), filha de Macungo Kadieque e Guinhenhe Lutezo. Entre as irmãs, cita-se Maria Macungo e Rosa Macungo.

A Senhora. Luzia Macungo nasceu igualmente no seio de uma família de nacionalistas, da qual destacamos o seu tio, Kyangala Viti, que após a obtenção do registo português, passou a chamar-se Almeida Victor, também conhecido como “Velho Kyaji”. De acordo com osrelatos da família, e de alguns naturais de Bula a Tumba, terá sido o fundador da aldeia de Kyaji.

Em 1961, ano que assinala o início da guerra de libertação nacional, Luzia Macungo e os familiares fugiram para as matas do Kyaji. Devido às dificuldades em adquirir comida, alimentavam-se de frutos recolhidos nas matas. De modo a contornar a escassez de sal, trituravam banana madura com saca folha (folhas de mandioqueira), o que lhes servia simultaneamente como condimento e alimento. Assim, motivada pela sua insuficiente nutrição, as pessoas contraírem determinadas doenças como, por exemplo, a anemia. A maioria das crianças levadas para as matas não sobrevivia à dureza das suas condições.

Quando, em 1962, astropas portuguesas se deslocaram para Bula a Tumba, ocupando o posto administrativo do Kyaji, tentaram recolher todos os que se encontravam nas matas. Algumas pessoas apresentaram-se voluntariamente junto das tropas portuguesas, apesar de cientes dos riscos que corriam. De acordo a informação da documentação “Fernando Cassumba e assuas esposastambém se apresentarame maistarde tiveramde fugir 6 ”. Talvez Luzia Macungo já fosse noiva de Fernando Cassumba quando o documento se referia a “suas esposas”. Com o tempo, alguns conseguiram escapar e retornar às matas, uma vez que se sentiamenganados pelastropas portuguesas que continuava a cometer atrocidades contra os seus familiares. Nisso, tiveram de se dirigir onde estavam a ser formadas as tropas do já cri ado ELNA. O que esperavam ser ocasião de segurança. A próxima figura mostra o rosto da Sra. Luzia Macungo, numa fotografia por nós tirada aquando da nossa entrevista em 2020.

Figura 1 – Luzia Macungo em sua casa no bairro Malueca, em Luanda.

A família de Luzia Macungo fugiu para as matas em 1963, tendo sido pouco depois encontrados pelas tropas portuguesas, que os capturaram, obrigando-os a apresentarem-se no posto administrativo do Kyaji.

Luzia Macungo era já noiva de Fernando Cassumba, um importante ativista da UPA/FNLA na região, muito procurado pelas autoridades coloniais. Anos mais tarde, contraíram matrimónio pela Igreja Católica, no dia 15 de maio de 1964, no Kyaji.

Após o matrimónio, viveram em Kyaji apenas três anos, de 1965 a 1967, tendo, em 1968, de voltar a refugiar-se nas matas, de modo a escapar das rusgas e dos ataques dastropas portuguesas, acompanhados do filho primogénito, Luís Fernando7 . Permaneceram nas matas durante meses até a situação regressar à normalidade.

Em 1969 surge um novo ataque, com o objetivo de capturar os homens da localidade com ligações à UPA/FNLA. Numa manhã, apareceram dois carros e levaram alguns homens do Kyaji suspeitos de atividades terroristas, que foram assassinados e sepultados em valas comuns e ao rio Dange.

Quando o terceiro carro apareceu, Luzia Macungo, acompanhada do filho Luís Fernando, identificou homens ao serviço do exército português, tendo conseguido fugir para as matas, onde se reencontraram com Fernando Cassumba. À data, Luzia Macungo encontravase de novo grávida, com oito meses de gestação.

Fernando Cassumba era, como já foi referido, procurado pelas tropas portuguesas, devido ao seu envolvimento na resistência contra a presença colonial em Angola, em particular na localidade do Kyaji. Durante as várias incursões das autoridades portuguesas à residência de Luzia Macungo, a fim de a questionarem sobre o paradeiro do seu marido, esta resistiu corajosamente nunca satisfazendo as pretensões dos seus inquisidores.

As tropas portuguesas, malograda a sua tentativa de localizar Fernando Cassumba, dirigiram-se à localidade do Nkulo, onde ordenaram que se fizesse a recolha de todas as mulheres cujos maridos tinham fugido para as matas e que fossem retidas numa casa reservada para o efeito. Nesta casa, sobrelotada com estas reclusas e os seus respetivos filhos, as mulheres, sobre cujos maridos recaiam suspeitas de atos subversivos, eram submetidas a diversas torturas físicas, como açoitamentos. Também Luzia Macungo, a despeito da sua avançada gravidez, e o seu filho Luís Fernando foram levados para esta casa, onde deveriam permanecer. Todavia, a enorme sobrelotação daquele espaço de detenção acabou por salvá-los desse penoso destino, sendo posteriormente transferidos para uma Igreja. Passou essa noite trancada na Igreja, onde encontraram apenas uma mesa uma cadeira e nada que os protegesse do frio.

Dada a proximidade da Igreja onde Luzia Macungo estava encarcerada e a casa onde outras mulheres angolanas reclusas agonizavam na mão das tropas portuguesas, foi-lhe possível testemunhar a brutalidade dos atos que lá se praticavam. o que se passava na casa onde estavam as outras mulheres. A título de exemplo, algumas mulheres eram obrigadas a pegar em armas e a assassinarem outras prisioneiras. Naquela mesma madrugada, Luzia Macungo foisubmetida a um rigoroso interrogatório, cujo objetivo era descobrir o paradeiro do seu marido, Fernando Cassumba. Enquanto prosseguia o interrogatório, alguns angolanos, incluindo idosos do Kyaji, eram detidos ou fuzilados. O pai de Luzia Macungo era um dos destinados ao fuzilamento, tendo antes solicitado ver a filha que estava detida e de seguida solicitar que lhe oferecessem buscar água-ardente ao seu patrão antes de ser fuzilado pelas tropas portuguesas.

Trouxeram-lhe a filha e a bebida que solicitou, bebeu e quando terminou, disse: “Vocês sois visitas, recebemos as visitas que vieram de longe, mas agora nós estamos a ser castigados” ( Kadieque,1969 citado por Macungo 2020). As palavras por ele pronunciadas terão irritado as tropas portuguesas que o fuzilaram na presença da filha, Luzia Macungo, em 1969, no âmbito da « Operação Robusta ».

Fernando Cassumba, apercebendo-se do que estava a acontecer, dirigiu-se à povoação do Kyaji à procura da sua esposa.

Luzia Macungo, acompanhada de Helena Cunga, Esperança de Almeida e Marcela Augusta, foram levadas para o rio Lufua, numa baixa, para serem mortas, uma vez que os maridos tinham fugido e continuavam a representar perigo pelas atividades subversivas que desempenhavam.

Enquanto se encontravam naquele local, as tropas portuguesas chamaram dois homens que fuzilaram diante destas mulheres, supostamente como forma de as intimidar e forçar a revelarem os paradeiros dosseus esposos. Conta Luzia que os homens pegaram num maço de cigarros e começaram a fumar, antes de serem mortos a tiro. Enquanto ocorria o fuzilamento, as tropas portuguesas perguntavam-lhes: “Digam, o que os vossos maridos foram buscar? Armas para vir matar os brancos e agora vocês não aceitam? É verdade que vão atacar aqui? Falem o dia que irão atacar, sábado ou domingo?” (Anónimo, 1969). Tudo isso acontecia com os olhos vendados. Acharam que estavam molhadas julgando que se tratava de água, mas era o sangue das pessoas que tinham sido mortas no local. Acabaram por não ser mortas, foram postas em carros E, no dia seguinte, foram forçadas a caminhar em direção a Salazar (atual N’Dalatando). Assistiam a novos a fuzilamentos, com as tropas portuguesas sempre a pressionarem as mulheres para que denunciassem os paradeiros dos esposos e outros membros das suas famílias considerados terroristas. Pela resistência que apresentava, Marcela Augusta, esposa de Francisco de Almeida, foi morta, juntamente com mais dois homens. Fizeramuma paragemde um mês na Fazenda Camuaxi de Santo António.

O ataque do ELNA a caravana da chamada «Operação Robusta» por retaliação aconteceu no sábado um mês depois de terem sido levadas. Foram queimadas muitas casas, sobretudo nos bairros de Kyaji, Kisecula e Ngaianga. Quando astropas portuguesas ouviram os tiros, ordenaram que as mulheres fossem conversar com os maridos, por entenderem que protagonizavam tais ações por causa delas.

Para disfarçar o sangue, uma vez que as mulheres tinham saído das suas aldeias e não tinham tido a oportunidade de se lavar, as tropas portuguesas entregaram-lhes fardamentos. Subitamente ouviram: “Recuem, Recuem”. Assustadas, correram de volta para os carros e foram colocadas na cadeia, sob vigilância de guardas com cães.

Após um período de permanência naquele local, chegaram a N´Dalatando, ainda com sangue na roupa. Fernando Cassumba, o seu esposo, tinha deixado uma carta que as tropas portuguesas apreenderam e chamaram Luzia Macungo para a interrogar novamente sobre contacto que mantinha com o marido. A carta continha ameaças dirigidas às tropas portuguesas e exigia que deixassem a sua esposa10 . De modo a proteger o seu marido, Luzia Macungo resistia aos interrogatórios a que era submetida, negando perentoriamente ter conhecimento acerca do paradeiro de Fernando Cassumba ou sobre a origem da sua carta. Por várias vezes foi vítima de abusos sexuais por parte dos agentes da polícia portuguesa ou a mando deles por outros homens, para quebrar a relação matrimonial com o seu marido Fernando Cassumba. Depois disso, comunicavam para o Concelho de Bula a Tumba o sucedido. Enquanto faziam o trajeto para o São Nicolau e Distrito do Zaire, a algumas mulheres eram-lhes entregues rede e panelas. Luzia Macungo não recebeu nada.

Luzia relata que as mulheres detidas pelas tropas portuguesas eram obrigadas a procurar homens brancos em N’Dalatando com quem manter relacionamentos, para desencorajar os maridos de as continuarem a procurar. Como se encontrava grávida, não conseguiu arranjar outro homem, ao contrário das outras mulheres que a acompanhavam, nomeadamente, Helena Cunga e Esperança de Almeida11 . No caso de Esperança de Almeida, a escolha recaía ao senhor Manico, um capitão da tropa.

Se as novas relações que as autoridades coloniais obrigavam estas mulheres a manter com homens brancos resultassem numa coabitação, não eram transferidas para o campo de São Nicolau. Luzia Macungo, preocupada por não encontrar um homem branco que a pudesse fazê-la de parceira, com receio de retaliações, perguntava a si mesma: “Agora eu, com a gravidez, quem é o branco que vai aceitar a gravidez de um preto?” (Macungo, 1969). Importa dizer que a gravidez de Luzia Macungo não resultou da sua relação amorosa com Fernando Cassumba, mas sim de uma relação sexual forçada com um homem branco durante o trajeto para N´Dalatando, quando se encontrava nas proximidades do Kyaji. Como a própria expõe:

[…] Encontrei um senhor, cumprimentei e disse que vim para me manter, mas ele negou. (…) Disse que já tem duas pretas e não vai mais manter uma terceira preta. (…) Rodei, rodei e ninguém aceitou. Depois fui ter com o Administrador explicar que não estava a aparecer homem (…) Depois pedi ao senhor Administrador, posso ir ao Bula a Tumba onde tem muitos brancos, porque aqui na comuna do Kyaji não temos? (Macungo, 2020).

Nos dias seguintes, deu à luz. A criança faleceu horas depois, sem que Luzia tivesse visto onde o recém-nascido tinha sido enterrado.

Por esse motivo, assim que teve autorização para procurar um homem em Bula a Tumba, foi acompanhada por um alfaiate e funcionário da administração, juntamente com a sua comadre Maria Tito12, ao bairro Camungua, uma vez que para as mulheres percorrer aquele trajeto poderia significar serem violentadas e abusadas sexualmente pelas tropas portuguesas ainda no Kyaji. Algumas destas violações resultaram em gestação, como foi o caso de Luzia. Na eventualidade de se recusarem, eram torturadas e ameaçadas de morte. Luzia Macungo continuou a ser negada pelos homens, que se preocupavam com a reação de Fernando Cassumba, chefe de um quartel, quando se apercebesse que alguém mantinha uma relação amorosa com a sua esposa. As chacinas nas várias povoações da região continuaram a ocorrer, no âmbito da “Operação Robusta”. Às buscas nem sequer poupavam osidosos e os meninos. Por pouparem as meninas das buscas, davam saiotes aos meninos para se disfarçarem.

Durante a gestação, astropas portuguesas interrogaram-na várias vezes, tentando que confessasse que a gravidez era de Fernando Cassumba, o que Luzia Macungo negou sempre categoricamente, afirmando que tinha mantido uma “relação amorosa” com outro homem, que resultara na gravidez.

Perante a dúvida, foi solicitada a presença do homem que Luzia afirmava ser o pai, que negou a autoria, dizendo: “É maluca, só uma vez que lhe vi. Está a prestar testemunho falso. Não sou o dono da gravidez” (Macungo, 2020).

Durante estes interrogatórios, Luzia Macungo foi torturada com água, na cadeia em N’Dalatando, enquanto as outras mulheres que tinham sido levadas pelas autoridades coloniais permaneciam no acampamento em Santo António do Camuaxi. Neste acampamento permaneceu Luzia Macungo até ao momento do parto do seu filho. Aí, foi levada ao hospital, acompanhada por uma senhora desconhecida. Luzia Macungo estava desprovida de tudo, não tinha sequer panos com que tapar a criança ou alguém que a acompanhasse. Foi maltratada no hospital pela parteira que a assistiu, mas não pelo médico, que a reconheceu dos tempos em que frequentava a casa do seu primo, Tito Maria de Almeida, filho do velho Kyaji, como carinhosamente era chamado. Era um Dembo, como já foi referido, fundador do povo com o mesmo nome. Foi o médico quem foi buscar um lençol em boas condições para cobrir a criança. Perante o gesto, a biografada diz: “Rasguei aquele lençol, vesti bem para pôr a criança, são a criança ficaria só assim” (Macungo, 2020).

Ainda no hospital, foi requisitado pelos militares e pela PIDE-DGS um teste de paternidade, que comprovaria se o filho era ou não de Fernando Cassumba, onde também compareceram os outros filhos seus, Luís Fernando13 e Ana Fernando14 . Depois de extraírem as amostras de sangue, foi enviada de volta para o acampamento onde se encontravam as outras mulheres.

Dias depois, pediram que fosse ao hospital receber os resultados do teste, onde lhe perguntaram: “A senhora reza?”. Luzia Macungo respondeu afirmativamente e, em seguida, foi informada que a gravidez não era de Fernando Cassumba. A seguir, acompanharam-na de volta ao acampamento. Naquela mesma noite, partiram para São Nicolau. Luzia Macungo foi forçada a viajar apesar de ter tido um parto recente, tendo levado consigo o filho. Antes da partida, tiraram fotografias às mulheres que tinham parceiros considerados terroristas.

Saíram de N´Dalatando e seguiram para Quibala, no Cuanza Sul. Relativamente à forma como eram tratados, Luzia Macungo recorda: “Mas nos levaram como se fossemos c abras. Ali mesmo no carro, quem tem necessidade de urinar, poderia fazer (Macungo, 2020)”. Passaram por Huambo (na altura Nova-Lisboa) e por Lubango (na altura Sá da Bandeira), e de lá caminharam toda a noite e todo o dia seguinte até chegarem à prisão de São Nicolau. A maioria das mulheres que estavam detidas nesta prisão era originária de Bolongongo, Uíge e Maquela do Zombo. Destas últimas localidades, tratavam-se principalmente de mulheres ligadas a atividades religiosas, nomeadamente kimbanguistas e tokoistas, que tinham sido o primeiro grupo a integrar aquele campo prisional, em 1962.

Figura nº 2- Lista nominal das mulheres e crianças transferidas do Distrito do Cuanza Norte para os campos prisionais de São Nicolau.

Esteve quase quatro anos no campo prisional de São Nicolau, teve mais um filho de uma relação sexual forçada. Saiu de São Nicolau nas vésperas do 25 de Abril de 1974. Regressou à sua terra de origem, onde se reencontrou com o marido, Fernando Cassumba, e reataram o seu casamento.

Teve novamente de fugir para as matas, desta vez não para fugir à perseguição das forças coloniais, mas pela guerra civil entre os três principais movimentos, UPA/FNLA, MPLA e UNITA, que disputavam a hegemonia política após a proclamação da independência. Enquanto estava nas matas, teve outro filho com Fernando Cassumba, ao qual foi dado o nome de Hendrick Vaal Neto16, em homenagem ao antigo chefe do seu esposo, o último filho do casal.

Ainda nas matas, devido às rivalidades entre a UPA/FNLA e a UNITA, num dos confrontos, foi capturada e levada para a base destes últimos, tendo sido resgatada do cativeiro pela UPA/FNLA. Só saiu das matas definitivamente em 1991, por altura da assinatura dos acordos de Bicesse com vista ao fim da guerra civil em Angola17. Nesta altura, o braço armado da UPA/FNLA, o ELNA, contava com aproximadamente 7.000 soldados estacionados nas matas do Cuanza Norte e Bengo, sem contar as suas famílias. Este contingente era comandado por Fernando Cassumba.

Atualmente Luzia Macungo tem 78 anos e vive com o esposo Fernando Cassumba em condições de extrema pobreza no Bairro Malueca, município do Cazenga, em Luanda. Apresenta sinais de desgaste físico, encontrando-se doente e com dificuldades de locomoção, como pudemos constatar na a última visita que lhe fizemos, no mês de setembro de 2023.

Figura nº 3 – Luzia Macungo comdificuldades de locomoção e Fernando Cassumba, seu esposo.

Consideraçõesfinais

Este artigo tratou da participação de Luzia Macungo na luta anticolonial. Nascida num contexto de colonização na região dos Dembos. Em função das condições de violência e dos vários abusos de que eram vítimas decidiu juntar-se à luta, motivada também pelas ligações dos familiares ao ativismo político. Luzia Macungo destacou-se no ativismo em defesa do esposo e da sua zona de origem, o Kyaji, após ter visto a invasão das tropas portuguesas na área de Bula a Tumba, Distrito do Kwanza Norte.

Durante o período colonial, Luzia Macungo, percorreu uma trajetória espinhosa quando foi transferida do Kyaji para o campo prisional de São Nicolau. É uma mulher desconhecida na sociedade angolana, que hoje vive em condições precárias, sem nenhuma assistência ou apoios sociais da parte do Estado, situação que contribuiu para o agravamento do seu estado de saúde. Ao longo da nossa observação, constatámos que a forma como Luzia e o marido enfrentam e dão sentido às condições de vida difíceis em que, como muitos veteranos de guerra, se encontram, é sustentada pela sua fé católica, remetendo tudo a Deus.

(*) Instituto Superior Politécnico Atlântida. Doutorando em História Contemporânea na Universidade de Évora. É Mestre em Ciências da Educação com especialidade no Ensino de História de Angola pelo ISCED-Luanda e licenciado em História pela Universidade Agostinho Neto. Concluiu diversos cursos não conferentes de grau, como a Pós-Graduação em Agregação Pedagógica (2018) e cursos nas áreas de Gestão de Arquivos e Metodologia de Investigação Científica. É Presidente do Conselho Científico do Instituto Superior Politécnico Atlântida (ISPA) desde 2023, onde também já foi Vice-Presidente para a área Científica e Pós-Graduação e docente na disciplina de História de Angola. O seu currículo científico inclui várias comunicações em colóquios e seminários nacionais e internacionais, focando-se na luta de libertação de Angola, na participação das mulheres na resistência e no estudo da toponímia angolana. É autor de publicações em livros e artigos científicos, como o estudo “Toponímia de Luanda: Casos da Ingombota e Mayanga” (2018). Colabora em projetos científicos de relevância, como o “Kongo Prophets and UNESCO Technocrats”, coordenado por Ramon Sarró, financiado pela Leverhulme Foundation.
Contato: nsambubaptista82@hotmail.com
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