A EDUCAÇÃO TRADICIONAL AFRICANA, SEUS VALORES E SISTEMA DE ENSINO.

Por Camilo Afonso  Nanizau Nsaovinga

Na definição de H. Marrou (1948):

Uma sociedade inicia a nova geração nos valores e nas técnicas que caracterizam a vida da sua civilização. A educação é, pois, um fenômeno secundário e subordinado em relação a essa, que normalmente, ela representa como um resumo e uma condensação. (MARROU 1948, p.17).

Na África, de uma maneira geral a educação da nova geração fundamenta-se nos seus valores que as comunidades acumularam ao longo dos tempos e que têm como principal epicentro a pessoa humana. E no caso das comunidades bantu do noroeste de Angola trata-se do “Muntu”, pessoa humana, é o ser dotado de inteligência, é a vida dota de uma inteligência ímpar que a distingue dos outros seres. Ninguém vive só. Na lógica da cultura tradicional bantu o ser humano só tem sentido na sua vivência e convivência com o outro. Daí a vida em comunidade.

E por isso, se ensinam os aforismos para darem sentido às coisas. E neste contexto os Bakongo utilizam o seguinte aforismo: “E nlunga umosi, ka ulendi sika ko mu koko. O significa dizer, uma única pulseira não pode tintilar ou fazer barulho no braço. Um outro; “Zilunga kazi zi vova”. O que significa dizer; Só reunidos é que se pode dialogar. E nòkò ukumba, matadi: significa que; as águas do rio só marulham com a existência das pedras ou rochas. Finalmente, E olé atù, e mosi ninga; significa que: Duas pessoas não seres, uma única é sombra!

Todos estes aforismos visam educar as novas gerações obedecendoa lógica dos valores que foram elaborados pelos seus antepassados, que ninguém vive só neste mundo. A vida só tem sentido vivendo em colectivo e na comunidade trocando idéias, conhecimentos e saberes com os outros dentro duma realidade que lhes é comum. E por isso, para elucidar a criança ou o jovem, se usa o aforismo: E ngangu, ntùlu ye ntùlu! O que quer dizer; Todo o saber ou conhecimento só é válido na troca de experiências com os outros. Assim, segundo Ulisses F. Araújo (2007):

A aquisição de valores é um processo de aprendizagem pelo qual lidamos com os valores de uma comunidade, que inclui tantos valores transmitidos de modo consciente quanto os transmitidos de modo informal. Desse processo resulta um sujeito que tem uma parte, talvez boa parte, dos valores presentes em sua comunidade (…). Portanto, os valores são hábitos que aprendemos – comportamentos que aprendemos que podemos repetir -, mas que, além disso, tornamos nossos, considerando e avaliando – reflectindo – as motivações que nos são oferecidas pelas emoções e razões. (ARAÚJO 2007, p. 110).

Na concepção africana do ser, os valores têm um lugar específico na educação das novas gerações. Estas devem conhecer que, o Ser é dotado do sagrado que o Nzambi-a-Mpungu, o Deus todo poderoso, colocou sobre a terra. Assim, o “Muntu” é o seu valor fundamental da sua criação. Nada se faz e se tem como princípio sem o ser, a pessoa humana. Este é o primeiro valor número um do homem africano, a pessoa humana. A pessoa humana, como criatura de Nzambi-a-Mpungu polariza, valoriza e relativiza os outros valores criados. E para os bantu o ser humano está cima de tudo que existe na terra e ninguém o pode tocar ou violar. Ele está acima de tudo quanto foi criado e colocado ao seu redor.

Paulo VI (1969) ao visitar pela primeira vez o continente africano e na sua Mensagem à África, nº 9.8, do reconhecimento da importância da pessoa humana que os africanos têm dele, afirmou:

Outra característica comum da tradição africana é o respeito pela dignidade humana (…). O homem, em particular é concebido só como matéria, limitado à vida terrena, mas reconhece-se nele a presença e a eficácia de outro elemento espiritual pelo qual a vida humana está sempre relacionada com a vida do além. (PAULO VI, 1969).

No entanto, diante desta realidade da pessoa humana em África e reconhecida pelo Papa Paulo VI, Muanamosi Matumona (2008) ao referir-se a Teologia da Adaptação em África, esclarece:

A Teologia da Adaptação encontrou uma maior legitimação nos referidos documentos do Vaticano II, (a Constituição Dogmática Lumen Gentium, o Decreto Ad Gentes, a Constituição Pastoral Gaudium etSpes e o Decreto Nostra Aetate), como também no discurso de Paulo VI, quando falou da necessidade de o cristianismo se adaptar às culturas de África. Na mesma altura, recordou que os africanos têm os seus próprios valores que a Igreja deve respeitar e convidou-os a promoverem um cristianismo de rosto africano e a serem missionários na sua própria terra. O apelo do Papa veio reanimar as tentativas de adaptar o cristianismo às realidades locais. (MATUMONA 2008, p.57).

Esta realidade é reconhecida por todos os estudiosos do continente africano, de o africano ser profundamente religioso e em comunhão permanente com os seus antepassados, que são os mediuum, entre os vivos e os do mundo do além. Eis um dos princípios basilares dos valores da educação tradicional africana, o respeito escrupuloso da pessoa humana, “Muntu”. Ninguém tem o direito de tirar-lhe a vida, a não ser Nzambi-a-Mpungu!

E como se entendem estes valores africanos? Segundo a óptica de A.S.Mungala (1982) sobre valores esclarece:

Por valores nós entendemos como qualquer facto social ou cultural que é consistente com a razão, a natureza do homem e responde positivamente às necessidades fundamentais da maioria dos membros de uma comunidade humana. A partir deste ponto de vista os valores são de natureza dinâmica e, assim, capacitar o indivíduo a viver em equilíbrio harmonioso tanto com ele próprio e com os outros. (MUNGALA 1982, p.3).

Assim, somos a entender que todas as sociedades humanas têm os seus próprios valores com os quais educa as novas gerações e o asseguramento da preservação dos mesmos, como patrimônio cultural da sua própria identidade e realidade existencial.

No caso concreto da região da África Central, e em relação à identidade cultural Bakongo, Come Kinata (2013, p.117), escreveu:

Os Bakongo, assim como todos os outros povos do mundo, construíram e desenvolveram ao longo da sua história, um universo de valores que suportaram a sua vida a despeito de numerosas vicissitudes encontradas e duramente ultrapassadas ao longo da sua existência. É graças a estes valores e ao seu espírito de abertura que os Bakongo conseguiram tecer laços indefectíveis e fraternais com outros povos. (KINATA 2013, p.117).

Neste âmbito, esta realidade expressa por Kinata, em relação aos valores dos Bakongo, na região da África Central, ainda se faz presente apesar dos ventos da globalização que perturbam o mundo de hoje quanto aos valores dos povos. É assim, que constatamos estes valores na realidade sociocultural dos afrodescendentes de Salvador e Recôncavo Baiano. Nos diálogos com Pais e Mães de Santo é comum referenciarem-se a estes valores humanistas trazidos de África pelos seus ancestrais, que por um lado, se lamentam pela perca desses valores que se vai conhecendo fruto das informações da mídia, da cultura da globalização e das tendências da exclusão e não reconhecimento dos valores culturais dos outros povos.

Entretanto, coloca-se a seguinte questão: De que valores se tratam, neste processo da educação tradicional africana? Como ficou expresso acima, quando nos referimos ao valor primaz da pessoa humana, ao lado deste existem outros valores que substanciam a totalidade. Retomando C. Kinata (2013), ao referir-se aos valores no contexto da realidade sociocultural Bakongo, justifica:

Os valores fundamentais inventariados, inerentes ao humanismo Bakongo, são: a hospitalidade, a solidariedade, a confiabilidade, o sentido de partilha, o dom de si, o sentido do sacrifício, o trabalho bem feito, a justiça, a equidade, a promoção da mulher, a educação dos filhos, o cuidado para com os mais-velhos, a liberdade de expressão, a cultura da paz. São valores cuja universalidade é evidente. (KINATA 2013, p.117)

Assim, tal como acontece em qualquer sociedade humana, os Bakongo elaboraram os seus princípios morais e éticos para a educação das suas novas gerações que se resumem em Kimuntu ou kimutu. Para Dominique Ngoie-Ngalla (2013), sobre o Kimuntu, esclarece:

Esta vontade do Bakongo de se conduzir de acordo com as exigências morais e éticas se chama Kimuntu, kimutu. Derivado de muntu, mutu, o kimuntu aparece como uma etiqueta da alma. O termo muntu, mutuderivam assim de dois outros termos. Em primeiro, bumuntu, bumutu, depois Kimuntu, a alma em acto. Bumuntu/bumutu num sentido puramente descritivo significa a alma, o feito de ser homem, a espécie humana. Kimuntu, kimutu é qualidade, é virtude; esforço, força, excelência. Esta afirmação chama a razão a si. A propósito de bumuntu, ao valor, kimuntu, kimutu, da natureza à cultura, a vocação, como o ideal do muntu a realizar. O Kimutu (kimuntu) é mérito, entendido como, o conjunto do homem, da mulher, das qualidades morais e intelectuais que apresentam o indivíduo digno de estima. Ele é encorajado a encarnar os valores e a sabedoria, quer dizer, a existência organizada com vista ao bem. Finalmente, ele estabelece a relação que liga o indivíduo a si e aos outros num projecto que lhes é comum e nele se reconhecem. (NGOIE-NGALLA 2013, p.82).

Contudo, o Bumuntu tem a ver com o humanismo do homem bantu, com o seu ser e do próximo, do respeito que reserva aos seus valores ancestrais, do seu passado e a preservação do patrimônio sociocultural que lhe foi legado pelos Bakulu, seus antepassados. É nesta base que os Bakongo se revêem como seres humanos e com responsabilidades perante a sua história e a sua natureza.

Na óptica de Nicola Abbagnano (2007), em relação ao humanismo esclarece que é assente em quatro bases fundamentais:

A primeira, o reconhecimento da totalidade do homem como ser formado de alma e corpo e destinado a viver no mundo e a dominá-lo; a segunda, o reconhecimento da historicidade do homem, dos vínculos com o seu passado, que, por um lado, servem para uni-lo a esse passado e, por outro, para distingui-lo dele; a terceira, o reconhecimento do valor humano das letras clássicas. (…) as boas artes, que ainda hoje são denominadas disciplinas humanísticas, não tinham para o Homem, valor de fim, mas de meio, para a formação de uma consciência realmente humana, aberta em todas as direcções, por meio da consciência histórico-crítica da tradição cultural. (ABBAGNANO 2007, p.602).

O humanismo do Homem africano em geral, e do Bantu em particular, situa-se nas mesmas bases acima descritas. O ponto crítico situa-se na visão ou no olhar diferenciado, que o homem europeu tem sobre a dimensão humanista do africano, da sua identidade, da sua natureza e da sua realidade sociocultural.

Com efeito, dentro desta grande dimensão humana das culturas bantu, Raul Altuna (2006), traz-nos a seguinte justificação:

Os Bantu zelam pela vida interior da pessoa, pela sua realização vital, e descuidam as obras materiais nascidas da individualidade criativa. Assim se explicam a sua profunda religiosidade, a emoção, a solidariedade e as suas manifestações artísticas: ritmo dança escultura, poesia e, por outro lado, o descuido da manipulação utilitária da natureza. O homem não é estimado pela sua riqueza ou pobreza, mas pela sua categoria de pessoa, nobreza inata. Chegam a considerá-lo “sagrado”, pois possui a vida imperecível que brota de Deus, revive aos antepassados e vem para a sua companhia. (ALTUNA 2006, p.255).

A aquisição dos valores na cultura bantu e dos Bakongo do noroeste de Angola, significa inserir e adpotar a nova geração na lógica e no espírito que deve nortear a sua conduta, o seu comportamento e da assunção destes como sendo parte integrante e inalienável do seu Ego. Isto é, a aquisição dos valores pressupõe ter aprendido as normas, os princípios e os comportamentos que ele insere e aceitar como próprias as razões e motivos que dão crédito àqueles valores.

Retomando Kinata (2013), este reconhece que existem ainda na realidade sociocultural Bakongo, valores específicos que foram desenvolvidos pela comunidade, tais como: a amizade, a concórdia, o sentido do dever, a coesão, o respeito pela palavra dada, o amor do bem, a colecta da felicidade individual e colectiva, a submissão do indivíduo a comunidade, a liberdade da consciência religiosa, a boa gestão do patrimônio. Na actualidade esta educação é feita na escola. Assim, uma das funções do ensino da história na actualidade africana é de propor aos jovens referências que lhes permitem compreender a dimensão universal dos valores sobre os quais deve repousar a coesão das nossas nações e o seu futuro.

Entretanto, nem todos os valores são assimiláveis. Os assimiláveis são aqueles que têm um valor e sentido histórico e que são preservados para toda a vida, e consideráveis como valores positivos, dotados de objectividade. Outros, são os considerados de anti-valores, aqueles que ao longo do percurso da vida humana se vão eliminando e que demonstram certa subjectividade na sua utilização e aplicação no contexto da vida. Na visão de B. Mondin (2010):

O valor enquanto transcendental é essencialmente dotado de objectividade como de subjectividade. Possui objectividade porque se funda no ser. O valor não é uma quimera, mas um aspecto primário, fundamental, constante, perene do ser e dos entes. Mas o valor é objectivo não à maneira de uma idéia subsistente, mas à maneira de uma relação. É objectivo porque o primeiro termo da relação axiológica é precisamente o ser. Mas, o valor é também dotado de subjectividade, porque o segundo termo da relação axiológica é o sujeito: o homem ou outro ser inteligente. Em virtude do polo subjectivo, o valor só pode desabrochar onde há predisposição e preparação para acolhê-lo, para reconhecê-lo. (…) sem uma educação adequada da faculdade dos valores, particularmente quando se trata de valores absolutos, transcendentes, perenes, perde-se a capacidade de percebê-los. Então os valores se ofuscam, eclipsam, desaparecem. Infelizmente, é o que está acontecendo em nossa cultura e em nossa sociedade. (MONDIN, 2010, p. 197).

Assim, se entende na educação tradicional africana, o respeito que se reserva aos valores culturais tradicionais, pela sua objectividade e subjectividade. Eles são parte integrante da consciência histórica dos povos africanos na sua identidade e da importância destes, no processo educativo das novas gerações. O respeito da personalidade dos povos africanos passa pela sua solidariedade cultural, como garante da salvaguarda e respeito dos seus valores civilizacionais e da própria dignidade do ser humano.

A valorização da identidade africana e da pessoa humana passa precisamente pela sua educação, que se fundamenta em um conjunto de valores. Esta é uma situação sine qua non que se coloca nos nossos dias e nas nossas sociedades. Ki-Zerbo (2003), sobre a sua preocupação com a identidade africana e uma educação embasada em valores, escreveu:

O homem novo do século XXI. Um homem aberto a alteridade que, na base num mínimo econômico e social, esteja aberto às relações, aos laços humanos, a uma ética universal e aos valores. Quando falo de valores, penso nos valores morais, psicológicos, ideológicos e religiosos, mas não unicamente. Proponho, pois um projecto, um foguetão de três andares: os bens econômicos, os laços sociais (…) e os valores. Este projecto humano não visa simplesmente maximizar o consumo material, ele construir-se-á com base nos valores da solidariedade, da conviviabilidade, da alteridade, da compaixão, do controlo de si próprio, da piedade e do equilíbrio inspirado pelo Maât faraônico. (KI-ZERBO 2006, p. 164-165).

A prática educativa é fundamentalmente embasada numa modalidade técnica de política de expressão do universo simbólico e um investimento formativo dessas práticas. Aoser considerada de actividadetécnica, implica dizer que ela é uma prática cultural, que se realiza mediante ferramentas simbólicas, no sentido que responda pela produção cultural. Segundo António Joaquim Severino (2007).

O conhecimento é o instrumento fundamental para oferecer referências na condução da existência humana. Estas são necessárias na prática produtiva, política e cultural. Ao agir, o indivíduo se referência a conceitos e valores, de tal modo que todas as situações vivenciadas e todas as relações que estabelece são atravessadas por um coeficiente de atribuição de significados nascidos de uma referência conceitual e valorativa. As experiências não são apenas representadas simbolicamente por conceitos, mas também são apreciadas por valores. (…) A moral é uma experiência comum à humanidade. A sensibilidade moral possibilita que os sujeitos avaliem suas acções, geralmente como boas ou más lícitas ou ilícitas, correctas ou incorrectas. (SEVERINO 2007, p.91).

Eis, a razão, da educação das novas gerações nas sociedades africanas obedecer às normas e aos princípios valorativos da pessoa humana e assentes numa lógica da educação moral, do respeito aos comportamentos e aos hábitos culturais. Nesta óptica, A. Joaquim Severino (2007), justifica:

A moral se constitui de usos e costumes, práticas e atitudes que carregam essas características e configuram o agir nas diferentes culturas e sociedades. A moralidade é a qualificação desses comportamentos e força os indivíduos a praticá-los em função dos valores que produz. Em decorrência desses valores, as culturas históricas elaboram seus códigos morais, impondo a seus integrantes modos de agir adequados. (SEVERINO 2007, p.92).

Assim, uma criança bem-educada deve reflectir à imagem da acção educativa da comunidade, porque, os valores recebidos devem se impor como uma força normativa e prescritiva. Daí o provérbio Bakongo: Mwana ngango ye wa longwà, luzitu! O que significa: Uma criança esperta e bem-educada impõe respeito! Ela é digna e deve merecer o respeito de toda a comunidade. Ela passa a ser vista como uma pessoa de referência, modelo e o espelho na continuidade da defesa dos valores culturais e morais do meio que o viu nascer.

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