Por José Eduardo Agualusa
A história oficial do MPLA conta que o partido foi fundado numa noite de 1956, por um pequeno grupo de patriotas reunidos num sobrado de Luanda. E uma mentira piedosa — uma entre tantas falsificações que deformam a história de um dos mais originais movimentos nacionalistas de África.
Na realidade, o MPLA foi-se formando pouco a pouco e a sua sigla parece resultar de uma expressão com que o poeta Viriato da Cruz fecha uma carta enviada a Mário Pinto de Andrade, em Paris: «É necessário – dizia Viriato – criar um amplo movimento popular para a libertação de Angola». O movimento surge, já após o aparecimento
público da UPA, de Holden Roberto, como resultado da unificação de pequenos grupos nacionalistas, entre os quais o Movimento para a Independência Nacional de Angola (MINA), o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUA), e o muito fugaz Partido Comunista de Angola (PCA).
Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, o cónego Manuel das Neves, Aníbal de Melo e Elídio Machado são nomes que estiveram no centro de toda esta febre nacionalista. Tinham em comum o facto de pertencerem à pequena burguesia urbana que prosperou entre o corredor Luanda-Malange, com uma longa tradição de mestiçagem cultural e biológica e que, desde meados do século XIX, vinha defendendo teses nacionalistas. Todos eles cresceram entre memórias, num pequeno mundo atormentado pelas ruínas de um passado onde os «filhos do país» se distinguiam a vida cultural, económica e mesmo política da colónia.
Esta autêntica aristocracia crioula manteve ao longo dos séculos um difícil e complexo relacionamento com as populações camponesas de Angola. Homens como Viriato da Cruz e Mário de Andrade não foram capazes de
assumir a sua origem sociocultural; confrontados com o pensamento africano nacionalista dos anos 50, muito marcado pelas teses da negritude de Leopold Senghor, e pelo discurso populista de Franz Fanon, ocultaram sempre a especificidade cultural da sociedade crioula em que foram gerados, apresentando-se a si próprios como africanos de origem rural.
Esta mistificação foi denunciada por Holden Roberto, que afirma não compreender como é que os filhos dos colonos podiam liderar um movimento de libertação. Também Jonas Savimbi confessou não ter aceite
integrar o MPLA por este ser, no fim dos anos 50, um movimento controlado por brancos e mestiços: «Pode parecer racismo e não será certamente a forma como nós pensamos hoje, porque já aprendemos muito. Contudo, é um facto que era muito difícil, naquela altura, para os africanos, compreender porque é que os mestiços estavam a liderar um
movimento de libertação contra os portugueses. Para nós não se tornava nada claro que os mestiços sofressem em Angola. Eles eram os privilegiados» Franz Fanon chegou a apoiar publicamente a FNLA contra o MPLA, por não acreditar que este último movimento tivesse capacidade para mobilizar as massas camponesas.
Aristocracia rural do Congo forma partido
A FNLA surgiu em 1956 com o nome de União das Populações do Norte de Angola (UPNA). No ano anterior tinha falecido D. Pedro VII, rei do Congo, o que originou uma complicada disputa entre o poder colonial português e a
aristocracia bakongo em torno da sucessão ao trono. E na intenção de fazer valer as suas posições que os monárquicos congoleses, com Barros Nekaka à cabeça, decidem criar a UPNA. Holden Roberto, sobrinho de Nekaka, é escolhido para liderar o grupo. Inteligente e ambicioso, Roberto percebe rapidamente que o ideal da restauração do reino do Congo, defendido pela UPNA, não tem viabilidade em pleno século XX, onde se confunde com o apelo étnico, e cria a União dos Povos de Angola (UPA).
Em 1961, a UPA desencadeou uma vasta insurreição armada no norte de Angola. Nesse mesmo ano, com a intenção de se tornar mais abrangente, tenta algumas alianças com outros movimentos de exilados angolanos e transforma-se em FNLA. A UNITA foi criada em 1966 por um pequeno grupo de dissidentes da FNLA, que acusavam Holden Roberto de não conseguir ultrapassar o espírito tribalista que presidira à formação da frente. A cabeça desta dissidência estava Jonas Malheiro Savimbi, antigo ministro dos negócios estrangeiros do Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE).
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Integravam o núcleo fundador da UNITA pessoas de diferentes etnias angolanas: José N’Dele e Miguel N’Zau Puna, de Cabinda, Smart Chata, tchoquê, Samwimbila ou o próprio Savimbi, ovimbundus do Planalto central. Em comum tinham a origem rural; além disso, a maior parte eram jovens educados nas missões protestantes – quase todas
americanas — com rígidos princípios morais e uma forte ligação ao universo tradicional africano.
Resumindo, podemos dizer que o MPLA se constituiu com base na burguesia crioula, a FNLA como representante da aristocracia rural do Congo e a UNITA a partir de jovens negros do interior de Angola com formação calvinista. Assim, na origem do moderno movimento nacionalista angolano não estão tanto as divergências ideológicas, mas sobretudo factores etno-culturais.
GUERRA DE LIBERTAÇÃO — GUERRA CIVIL.
MPLA, FNLA e UNITA guerreiam-se com extrema violência durante os catorze anos que durou a guerra de libertação. Penso, na verdade, que a guerra civil em Angola teve início com o primeiro levantamento armado contra o poder colonial, em 15 de Março de 1961. Nesse dia, e durante as semanas seguintes, os homens da UPA não mataram apenas colonos portugueses; centenas de trabalhadores ovimbundus, e alguns mestiços, acusados de
colaborarem com os colonos, foram também mortos.
Em 1974, os três movimentos são reconhecidos pelas autoridades de Lisboa como os únicos representantes legítimos do povo angolano e começam a tomar posições nas cidades.
O MPLA, apoiado numa forte estrutura clandestina, domina facilmente Luanda.
A UNITA declara o Huambo como a sua capital e expande-se com rapidez.
A FNLA, com um discurso anticomunista, obtém os favores de parte da alta burguesia colonial, mas é recebida com desconfiança por largos sectores da população, sobretudo nas zonas urbanas; muitos dos seus guerrilheiros apenas falam francês e lingala, a mais importante língua nacional do Zaire, e depressa se espalha a suspeita de que fazem parte do exército regular de Mobutu. O movimento de Holden Roberto consegue, no entanto, estabelecer uma aliança com Daniel Chipenda — um ovimbundu de Benguela, portanto, de formação crioula, líder de uma facção de guerrilha dissidente do MPLA, a Revolta do Leste – fortalecendo-se do ponto de vista militar.
Em 1976, graças fundamentalmente ao apoio cubano, o MPLA pulveriza a FNLA e força a UNITA a recuar para o mato. Holden Roberto reorganiza a sua vida entre Paris e Kinshasa; Savimbi, porém, não desiste. Os primeiros meses depois do desastre são muito difíceis. Os guerrilheiros da UNITA, uma escassa meia centena de homens esfarrapados, bebem a água dos pântanos e comem raízes; dormem de dia, escondidos em buracos, e quando a noite desce avançam aos tombos, imitando o canto das cigarras e dos pássaros para comunicar entre os diferentes grupos. Mas pouco a pouco Savimbi reconstrói o seu movimento e, com o apoio sul-africano, transforma-o num dos mais fortes e bem organizados exércitos de guerrilha de toda a história de África.
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Nos quinze anos que se seguem, até à assinatura dos Acordos de Bicesse, a componente etno-cultural da guerra vai desempenhar um papel cada vez mais importante. Nos documentos internos da UNITA tornam-se comuns
os ataques aos «mulatos do MPLA», conceito que parece abranger não apenas os indivíduos biologicamente mestiços, mas todo o grupo crioulo.
José Eduardo dos Santos e muitos dos altos funcionários da Presidência da República são acusados de serem santomenses; esta acusação será repetidas vezes sem conta durante a campanha eleitoral. O jornal Terra
Angolana, controlado pelo movimento de Jonas Savimbi, faz eco de tal desvario, chegando a publicar artigos onde se investiga a genealogia dos dirigentes do MPLA até à terceira geração. No fundo, aquilo que esta campanha acaba por revelar é a incapacidade da UNITA em compreender e aceitar o fenómeno crioulo e, de uma forma mais geral, o modo de vida urbana.
Incapacidade que será fatal a Jonas Savimbi.
Em 31 de Maio de 1991, data de assinatura dos Acordos de Bicesse, o MPLA era um movimento esgotado. Anos e anos de violência totalitária e péssima governação tinham erodido a base de descontentamento.
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