Dimensão proto-bantu e identidade cultural de Angola

Por Simão Souindoula (*)

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No quadro da celebração da dinâmica da Paz e da Reconciliação Nacional é historicamente justo de interrogar-se, mais uma vez, sobre a substância que constitui a identidade cultural nacional do nosso país.

Este conjunto de particularidades que permite uma estampilhagem cultural distinta da nação angolana, em plena edificação, tem vertentes de carácter antropológico, histórico e linguístico. E, esta última dimensão é justamente o objecto do presente artigo

Neste contexto e tendo em conta o facto de que o actual território de Angola é povoado, maioritariamente, de populações que falam línguas, que são classificadas como bantu, tentaremos, portanto, de pôr em relevo, em primeiro lugar, um dos pontos de parentesco genético desses falares, que é o proto-bantu.

Este realce nos permitirá de apreciar, em segundo e última instância, as vias podendo desenvolver a referida identidade e garantir, concomitantemente, uma coexistência social pacífica e uma coesão nacional aceitável.

UM TERRITÓRIO BANTU

Uma análise cruzada do conjunto dos dados arqueológicos, linguísticos e antropológicos postos em evidência, nesses últimos anos, atesta que, pouco antes da nossa era, algumas regiões do actual território de Angola eram já povoadas de comunidades metalurgistas e ceramistas, e portanto, pelo este facto, provavelmente, na sua maioria, locutores de línguas bantu.

Essas populações engajarão até o século XIX, um longo processo de sedentarização e de ocupação de territórios que dará ao país a sua configuração etnolinguística actual.

A classificação, hoje, geralmente aceite,dos falares bantu em Angola, permite distinguir uma dezena de unidades-línguas.

Recordar-se-á, assim :

– no noroeste, o kikongo e o kimbundu

– no nordeste, o ucokwé

– nos Planaltos centrais, o umbundu

– no sudeste , o tchingangela

– nos Planaltos da Huila, o olunyaneka

– e , enfim, no sul, o tchikwanyama, otchielelo e o tchidonga

PROTO-LINGUA

No contexto do nosso estudo, utilizaremos, portanto, o sistema de concordâncias das línguas de África central, oriental e austral, reconstituição na qual resultou o ur-bantu , com as suas, aproximadamente, 3000 raízes.

Limitaremos, naturalmente, a nossa apresentação, que será constituída, por cada exemplo, da indicação, em primei- ro lugar, do radical saído da proto-língua e, em segundo, da expressão semântica nos falares actuais., a alguns aspectos sócio culturais tais como a prática agrícola, o domínio tecnológico, o artesanato utilitário, o poder político, a música, a alimentação, a expressão escultural e as tradições orais.

O TRABALHO AGRÍCOLA

Orientaremos a esse respeito, a nossa demonstração partindo do verbo “cultivar”.

A forma geral primitiva indica : – dim

Esta será conservada e dará :

– em kikongo : tima , no sentido de cavar

– em kimbundu : dima , com, pelo menos, dois substantivos, no sentido de agricultor, mudimi ou mukua- kunima

– em ucokwé : ku-dima

– e , em tchingangela : lima

OS CONHECIMENTOS TECNOLÓGICOS

Ilustraremos este campo com o substantivo “ piroga“.

Malcolm Guthrie faz como proposta do radical pre-dialectal para este termo: -ato

A perpetuação a este respeito, será feita e , hoje, atesta-se:

– em kikongo: bwatu

– em tchingangela: wato

A CERÂMICA

Estabeleceremos a linha de similitude, neste domínio, partindo da principal matéria-prima utilizada nesta modalidade artesanal, a argila.

A base proto-bantu é: -umba.

A perpetuação dará :

– em kikongo: tuma, buma, luma

– em kimbundu: utuma, utumua

– em ucokwé: uma

O PODER

O velho radical vindo da região dos Grassfields, para designar o chefe é : umu

Os Bakongo e os Cokwé o chamarão

“nfumu” e os Nganguela, “lu-nfumu”.

O RITMO

Tomaremos, aqui, com exemplo, o do inevitável tambor.

A base lexical geral é : – goma, – noma,

– gomb

Em kikongo e kimbundu, reencontramos ngoma , enquanto que em umbundu e tshielelo, ongoma.

O MODO DE COZINHAR

As populaçoes bantu angolanas utilizam, tradicionalmente, a panela em barro que Guthrie chama “cooking pot”.

E, assim que os bakongo cozinham em nzungu ou em kinzu enquanto os Nganguela usam a djingu.

A ESCULTURA EM MADEIRA

Escolhemos o verbo cortar para demonstrar a concordância semântica.

– em kikongo: senga

– em kimbundu: songa

– em ucokwé: ku- songa

– em tshinganguela: ku-conga

OS PROVÉRBIOS

Constituem um dos domínios, por ex-celência, da codificação da tradição oral. Os locutores bantu guardaram o radical pre-dialectal -ana

E assim que, naturalmente, encontramos:

-em kikongo: ngana, kingana e o verbo ta ngana argumentar com um provérbio.

-em tshielelo: o-wano

O QUINTAL

Os grupos bantu conservaram, em Angola e não só, o seu modo de residên-
cia milenar, perpetuando a raiz -lumbu

– em kikongo: nlumbu

– em kimbundu: kilombo

– em umbundu: guilombo, ocilombo . otji-lombo com plural ovilombo ou ilombo. Pode-se assinalar ocilombo caswali, no sentido de acampamento militar.

– em olunyaneka: otyilombo

PALEO-LINGUÍSTICA

A similitude dos elementos linguísticos que acabamos de pôr em evidência prova bem que uma das bases da homogeneidade cultural em Angola é, incontestavelmente, o quadro reconstruído do proto-bantu.

A cobertura linguística das principais expressões civilizacionais angolanas tem, invariável e maioritariamente, como base, este fundamento pré-dialectal.

E, o facto que todos os grupos bantu actuais tivessem, muitas das vezes, adoptados as suas particularidades na base deste fundo comum, significa, logicamente, um comportamento antropológico similar.

E evidente, a partir da dezena dem exemplos tomados, aqui, que os grupos bantu que constituem a maioria do composição humana de Angola e que se encontram no mesmo nível de desenvolvimento histórico. E, apesar das particularidades decorrentes da diferença dos ecossistemas e da própria evolução, perpetuam os mesmos conceitos na prática da agricultura, na produção artesanal, na consideração do poder, na organização social, na sensibilidade a música e na expressão das suas tradições orais.

O exercício de comparação linguístico que fizemos, pode ser estendido a outros domínios tais como, precisamente, a organização da família (parentesco, matrimónio), as actividades económicas tradicionais (caça, criação de gado, pesca), a medicina tradicional, a administração da justica, o artesanato utilitário (cestaria, tecelagem, bordaria, metalurgia, fabricação de instrumentos de música, arquitectura), as artes (música, dança, vestuário, adorno, pintura mural), as tradições orais (mitos, lendas, contos, fábulas) e a religião.

CONCLUSÃO

A análise que acabamos de fazer, prova que além dos seus trunfos agrícolas, haliêuticos e mineiros, Angola possui um trunfo sociocultural excepcional, as similitudes linguísticas e antropológicas dos principais grupos que povoam o seu território.

Essas semelhanças não surgiram, por acaso ou por coincidência, mas sim, re- sultaram duma história comum feita de contactos multiformes, de influências recíprocas e, sobretudo de fusões. A paleo-linguística permite confirmar esta evolução do início da nossa era até o século XIV, e , a partir deste período, as fontes escritas.

Após terem sido, várias vezes, confrontadas umas contra as outras, durante o período mercantilista (1500 1885), as formações históricas bantu serão neutralizadas depois da desenfreada expansão das ordens coloniais e reunidas nas fronteiras actuais, auto-legitimadas pela Conferência de Berlim (1884-1885) e serão submetidas a uma verdadeira política de dividir para reinar.

Mas, apesar desta estratégia de fragmentação, os efeitos cumulativos da própria história favorecerá a cristalização de projectos políticos, invariável e finalmente, de envergadura nacional.

Com efeito, os angolanos, qualquer que sejam as suas regiões de origem, tinham plenamente consciência que eles subiram os mesmos fenómenos históricos (articulação ao tráfico mercantilista, ocupação colonial, opressão política, exploração económica, assimilação cultural) e que eles tinham, finalmente, desde que foram reagrupados nas mesmas fronteiras, no século XIX, um mesmo destino.

Notaram, igualmente, que exprimiram as mesmas reacções contra o mercantilismo e o colonialismo (resistências e revoltas).

E claro, em última análise, depois da nossa exposição que uma das bases da identidade cultural nacional em Angola é de natureza linguística, domínio cujo um dos fios federativos é o proto-bantu.

O desenvolvimento das línguas nacionais em Angola deverá, em todas as circunstâncias, realçar esta realidade, que deve constituir um solido argumento para uma coexistência pacífica dos diferentes componentes da nação angolana hoje na via da consolidação da unidade nacional, condição essencial para prosseguir os actuais progressos económicos e sociais.

(*) Historiador e Perito da UNESCO

C.P. 2313

Luanda – Angola

Tel. + 929 74 57 34

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