SEMFOKO: Escrita de Afrika

[Esta crónica é dedicada à Celebração de Mbanza Kongo como Património da Humanidade]

Por Ana Koluki

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“(…) Não aprendi a ler em Lingala (ou em Kikongo), nem em nenhum outro idioma Afrikano. O primeiro texto que li foi em Francês. Por isso seria díficil para mim escrever em Lingala ou numa outra língua Afrikana, embora eu saiba falar sete dessas línguas. A produção literária em línguas Afrikanas está limitada a experiências de sucesso, como a de Ngũgĩ wa Thiong’o. Ainda temos muitos desafios pela frente, começando pela questão de qual a grafia a adoptar. E outros, decorrentes da colonização, como por exemplo: se numa aldeia do meu país fossem construídas duas escolas lado a lado, uma ensinando em Francês e outra em Lingala (ou em Kikongo), a maior parte dos alunos, senão todos, iriam para a escola em Francês – aliás, essa seria a escolha dos pais. Portanto, há ainda uma certa mentalidade a ser ultrapassada.

Mas isso não significa que ao escrever em Francês ou em Inglês deixo de ser Afrikano. A língua é apenas um meio que o escritor usa para alcançar o seu objectivo, que é expressar, dar corpo, à sua criação. Nas minhas obras, qualquer que seja a língua original que eu use, ou em que elas sejam traduzidas, a narrativa, as temáticas, os locais, os personagens, são inconfundívelmente Afrikanos – porque me são familiares, conheço-os, neles e com eles vivi e convivi. Mas, seja como for, se nós, escritores Afrikanos, escrevermos em Francês, eles (os “donos da língua”) dizem que “não é Francês”, se escrevemos em Inglês, a mesma coisa, portanto, seja como for, a nossa escrita é Afrikana!… (…)”

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Alain Mabanckou: “O Mundo e’ a Minha Lingua”

A divisão que se faz em França entre “literatura francesa” e “literatura francófona” (em que esta é entendida como a “escrita por gente com sotaque das ex-colónias afrikanas”) é uma visão retrógrada. Ao contrário do mundo anglófono em que o Inglês está mudando e evoluindo com o mundo, por causa de escritores como Henlon Habila ou Salman Rushdie, em França tudo tem que vir do “centro”, da Academie Française, para ser aceite como “literatura francesa”. Mas essa visão tem que mudar, porque o “centro” já não é apenas de Sartre, Camus ou Proust. Já não é apenas da França – é também dos Camarões, dos Kongos, do Benin, etc. – portanto, essa catalogação dos escritores afrikanos francófones, como eu ou, digamos, um Mwanza Mujila, como “franco-congolês”, só existe para estabelecer uma linha divisória com a literatura produzida no e para o “centro”. Mas se o escritor for da Bélgica e branco, como no caso da Amelie Nothom, aí está tudo bem!… Não se estabelecem linhas divisórias do tipo “franco-belga”…

Mas o interessante é que agora são precisamente os escritores “afro-francófones” que estão a dominar a paisagem literária da França: eles são os mais traduzidos e os mais seleccionados para prémios internacionais, assim reavivando a língua Francesa. Porque quem a pode salvar não são os “seus donos” que a estão a matar a partir do dito “centro”. Somos nós, porque trazemos uma nova abordagem, novas preocupações, múltiplas conexões e diferentes entoações. E fazemos a diferença, porque, como Afrikanos, a nossa escrita não é motivada primeiramente pelo dinheiro ou pelos prémios no ocidente, mas pelo espírito de quem tem um testemunho a passar, uma mensagem a transmitir ao mundo, e dispomo-nos a fazê-lo de borla…

(…)

Nós não representamos exactamente uma “nova geração do Movimento da Negritude”. Este foi um movimento que se desenvolveu entre as décadas de 20 a 50 do século passado, como uma luta pela afirmação da nossa Identidade Negra. A sua mensagem era a da valorização e do orgulho pela Kultura Afrikana. E essa mensagem é ainda válida e necessária hoje. Mas não podemos simplesmente transportar aquele movimento do passado e colocá-lo no presente: isso seria mera nostalgia. Não podemos viver no passado. O que podemos e devemos fazer é resgatar o seu espírito e ajustá-lo à nossa realidade actual. Um exemplo de como podemos fazer isso é, por exemplo, o que fiz num curso sobre a Negritude que leccionei no College de France, em que coloquei a ênfase nas mulheres do Movimento da Negritude e não apenas nos homens, Senghor, Césaire e Damas, como é usual. Porque na altura, embora mulheres negras fossem activas e até seminais no movimento, quem escrevia e falava por elas e pela Kultura Negro-Afrikana eram homens negros e mulheres brancas.

E ao adaptarmos aquele movimento ao nosso presente, temos que ser capazes de o fazer com um sentido de autocrítica, assumindo os nossos erros e responsabilidades históricas. Isso não é facil, mas temos que o fazer. Temos que ser capazes de admitir, por exemplo, que muitas vezes quem tenta impedir-nos de sermos bem sucedidos nos nossos projectos é alguém com a mesma côr de pele que a nossa. Apenas porque quer calçar os nossos sapatos e colocar-se no nosso lugar – não é capaz de perceber que quando eu, ou qualquer um de nós, está à frente, está a abrir caminho para ele também vir partilhar este lugar de sucesso, visibilidade e proeminência. Mas não, ele (ou ela) quer este lugar só para si, quer ser o/a único/a lider… Então, precisamos entender que o nosso avanço também depende da autocrítica como uma reflexão muito importante para o nosso futuro … Sim, a Áfrika é maravilhosa, sim, temos grandes kulturas, mas temos que pensar sobre o que podemos fazer pelas pessoas que sofrem, pelas crianças de rua, pelas vítimas de genocídios e de ditaduras, etc. Precisamos de resolver esses problemas em vez de apenas ensinarmos às pessoas a história, porque apenas com isso não ajudamos a aliviar o sofrimento que têm vivido há demasiado tempo. “(…)”

A.K. com Alain Mabanckou

Assim falou o Mfumu Alain Mabanckou – Kongolês da ‘rive gauche’ do Nzadi, jornalista, professor de literatura na UCLA, EUA, e no prestigioso College de France, autor de mais de uma vintena de obras, incluindo poesia, romance, ensaio e dramaturgia, que lhe valeram numerosos prémios literários e distinções em Afrika, em França e um pouco por todo o mundo (e.g. Prix de la Société des poètes français,  Grand prix littéraire d’Afrique noire, Prix des cinq continents de la francophonie, Prix Renaudot, Chevalier de la Légion d’honneur de la République Française, Grand Prix de littérature de la Académie Française, so’ para citar alguns).. No Reino Unido, foi finalista do ‘Man International Booker Prize’ em 2015, pelo conjunto da sua obra, e novamente em 2017 com o romance ‘Petit Piment’ (“Black Moses”). Os extractos que acima transcrevi são da sua ‘conversa pública’ como convidado de honra para o encerramento do ‘Africa Writes’ 2017 – um festival dedicado exclusivamente às literaturas e línguas Afrikanas em todas as suas vertentes e manifestações: desde os provérbios Swahili nas kangas da antiguidade, ao ‘R.A.P.’ (‘Rhythm And Poetry’) da modernidade, passando pela magia encantatória das oraturas tradicionais do passado, do presente e do futuro.

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A.K. com Ben Okri & Friends @ ‘Africa Writes’ 2015

Agora na sua sexta edição, este festival patrocinado pela Royal Africa Society do Reino Unido, tem trazido todos os anos à British Library, em Londres, o que de melhor a Afrika tem a oferecer ao mundo das idéias, da criação, da invenção e da representação. E, muito salutarmente, debates e controvérsias… Uma das mais marcantes foi protagonizada, há dois anos, por um outro vulto da literatura Afrikana, o Nigeriano Ben Okri. Tal como Mabanckou o fez este ano, Okri delineou, durante o ‘Afrika Writes’ 2015, no seu ‘Reflections on Greatness’, uma linha de água enunciando um diferente ‘modus pensandi’ sobre Afrika, os Afrikanos e o seu lugar no mundo – em termos literários, sobretudo, mas também, e não menos importante, em termos político-identitários. Eis um extracto do artigo que sobre a questão publiquei na altura no ‘Cultura – Jornal Angolano de Artes & Letras’:

“Ao multi-premiado escritor Ben Okri – galardoado, entre outros, com o maior prémio literário da Anglofonia, o ‘(Man) Booker Prize’, em 1991, pelo seu livro “The Famished Road” – coube a honra de proferir a ‘Aula Magna’ de encerramento do certame. Sob o título “Reflections on Greatness” (…) ele apenas retomava e expandia um tema que se lhe tornou pessoalmente bastante caro, desde que publicou um artigo afirmando que “A mental tyranny is keeping black writers from greatness (Ha’ uma tirania mental impedindo os escritores negros de atingirem a grandiosidade)”, que gerou uma grande polémica nos meios intelectuais, culturais e literários Afrikanos e Afrikanistas… Durante uma entrevista na véspera do evento, indagado sobre a questão, ele respondeu simplesmente: “eu estou a tentar soltar um tigre e há pessoas que pensam que quero ensinar um cordeiro a andar”…

Mas, em se tratando de Kultura Afrikana, tais debates e controvérsias acabam sempre por trazer contribuições valiosas para o entendimento e o avanço do mundo das idéias. Assim, este ano tivemos o jovem escritor JJ Bola – Kongolês da ‘rive droite’ do Nzadi, que foi um dos maiores opositores de Okri naquele debate, fazendo a ponte e passando a bola para a frente, com a leitura em Inglês do extracto de ‘Petit Piment’ de Mabanckou, que este lera em Francês, como introdução à sessão de encerramento do ‘Africa Writes’ 2017… E porque é de Afrika e de Afrikanos, com toda a sua congenialidade e convivialidade, que vivemos, tive a oportunidade de ter esta alegre e calorosa ‘conversa privada’ com Mabanckou, meio em Francês, meio em Inglês e traduzida para o Português (menos os risos e gargalhadas):

– Ele é o meu publicista (o que tirou a foto), portanto não poderia ser mais apropriado…

– Ah bon?… Então muito obrigada!… (para o fotógrafo) ‘Nous sommes le sapeur et la sapeuse’…

(…)

– Ana Koluki… (para a dedicatória do seu “The Lights of Pointe Noire’, ele começa a escrever Kon…)

– Não: K – o – l…

– l… onde, antes do n?

– Não: K-o-l-u-k-i

– Oh, Koluki!… Mas percebi Konluki… Koluki!… Mas nós temos este nome no Kongo!

– Ah sim? Na tua família?

– Sim!… Significa “aquele que se busca”…

– A minha avô disse-me que significa “aquela que tem visão”… A minha família materna é de Mbanza Kongo…

– Oh!… Maravilha!… Então somos família, somos Bakongo… E tu és a Rainha!…

– E tu és o Rei!

(…)

– Conheces algum escritor Angolano?

– Não, só o Agualusa… Ah, e o Neto – ele era poeta não é?

– Sim. E o que achas dele como poeta?

– Oh, eu não o li, infelizmente…

Uma algo perturbadora revelação do quão pouco a generalidade dos escritores Angolanos são divulgados fora do mundo lusófono… Mas, resta-nos a consolação de que, ‘slowly but surely’, os escritores afro-lusófonos estão a chegar ao ‘Africa Writes’. Depois de, há um ano, ter assistido, na mesma sala em que falaram Okri e Mabanckou, a sessão de apresentacão dos finalistas do ‘Man International Booker Prize’, que incluia a versão em Inglês da ‘Teoria Geral do Esquecimento’ de Agualusa (que ganhou recentemente o ‘International Dublin Literary Award’), este ano o ‘Africa Writes’ trouxe-nos Abdulai Silá, autor de “A Ultima Tragédia”, primeiro livro da Guiné-Bissau a ser traduzido para a língua Inglesa. E concedeu uma plataforma de lançamento no mundo anglófono ao Angolano Kalaf Epalanga, sugerindo-o como um de cinco escritores da Afrika lusófona a ser lido – os outros sendo o já citado Abdulai Silá, Alda do Espírito Santo, Yara dos Santos e Mia Couto.

 

Via correioangolense.com

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