Por Michel Laban(*)
Ao longo de dez sessões, que vão de Março de 1984 a Junho de 1987, Mário Pinto de Andrade concedeu uma importante entrevista a Michel Laban, maitre de conférences na Universidade de Paris III e especialista em literatura africana de língua portuguesa. Muito para além de uma biografia de Mário de Andrade, esta entrevista oferece-nos uma visão de Angola dos princípios do século através da geração do seu Pai; recria a vivência da Luanda dos anos 30 e 40; retrata as inquietações da sua geração, com ponto de encontro em Lisboa, finais dos anos 40 até 1954; conta-nos da emigração e da atmosfera da vida em Paris, para onde confluíam os intelectuais das várias colónias de África; e, por fim, vêm as memórias e os factos da luta política pela independência de Angola.
Houve vários acontecimentos importantes, e particularmente, por volta de Julho de 1962, a libertação de Agostinho Neto que, na sequência da nossa intervenção em Lisboa, a ajuda do Partido Comunista Português, pôde fugir. Isso um acontecimento importante para a direcção do MPLA — tinha, entretanto, algumas dificuldades de unidade, de coesão. Por outro lado, uma certa propaganda denunciava a nossa «cor vermelha», a etiqueta comunista marcava-nos pelo facto de termos estado em Conakry, de pertencermos ao Grupo de Casablanca. Enfim, como a nossa direcção não estava no interior do país, as divergências internas tomavam grande amplitude: havia uma certa erosão da direcção do MPLA. Por consequência, a vinda de Neto — um homem novo em relação a esta direcção — iria dar um pouco mais de dinamismo: foi o que nós pensamos.
ML. — A participação do Partido Comunista Português nesta evasão foi clara?
M. P. A. – Sim. Na altura, nós não o revelámos, mas foram eles que organizaram a evasão. Quando ele saiu, declarámos que tinha sido a nossa organização no interior, junto com as «forças progressistas». Agora, sabe-se: é ao Partido Comunista que se deve a evasão de Agostinho Neto. Não tínhamos de modo nenhum os meios: fizemos contactos, Viriato da Cruz e eu próprio tivemos uma conversa, com Álvaro Cunhal em Moscovo, foi aí que se deu a negociação para a evasão de Neto.
Há pouco tempo, revelaram-se as condições, os homens, o barco, o comandante do barco… Deu-se numa praia onde Neto passava as férias, para desviar a atenção da polícia, e o barco partiu para Marrocos. Não levou apenas. Neto, mas igualmente Vasco Cabral. Eu devo dizer, e Cunhal deve sabê-lo, que, quando negociámos a evasão de Neto, sugerimos que um outro prisioneiro político, que vivia nessas andanças das prisões, e que era o meu irmão, beneficiasse também dos favores do Partido Comunista… Cunhal respondeu textualmente que «o padre sairia depois, mais tarde»… Ora bem, mais tarde, ele não saiu. Mais tarde, a policia foi buscá-lo… Isto é um facto da história, não polemizo, mas passou-se assim. Infelizmente a testemunha desta conversa está morta: Viriato da Cruz. Bom, mas isto não tem muita importância. O importante é que Neto saiu, com Vasco Cabral, e foi muito bom assim.
Com a vinda de Neto organizámos uma conferência nacional. Foi o acontecimento mais importante do ano de 1962. Era claro que no decurso desta conferência nacional o presidente a eleger era Agostinho Neto. Dei o lugar voluntariamente. Considerei sempre que o meu lugar era provisório, que eu era um presidente interino, porque já no momento em que tínhamos começado a nossa acção política — desde Conakry no ano de 60 —, Neto era internamente, o homem capaz de reunir as organizações que deviam exprimir-se em nome do MPLA. Ele foi preso alguns meses mais tarde, em 1960. Era portanto natural que, de regresso da prisão, ele retomasse a função que devia ser a sua internamente. Portanto, ele retomava essa função no exterior.
Do meu ponto de vista, isto não punha problemas; mas, do ponto de vista de alguns dos nossos camaradas, como Viriato da Cruz, isto punha problemas. Nós tivemos portanto, uma crise interna — antes mesmo da conferência de 62 —, o que foi um factor negativo. O secretário-geral do movimento, Viriato da Cruz,— mais, por razões psicológicas que, verdadeiramente, por questões políticas, de escolha de opções — à direcção, a função que deveria ser a de Agostinho Neto.
ML. – A crise não era portanto política?
M. P. A. – Não, não no início. Tornou-se política depois. No início os ataques de Viriato da Cruz contra Agostinho Neto não tinharn fundamento. Houve sobretudo uma má interpretação das intenções de Agostinho Neto.
M.L. – Qual era essa má interpretação?
M. P. A. — Uma má interpretação sobre algumas escolhas de alianças sobre certas opções. Viriato da Cruz desconfiava que os portugueses o tinham ajudado. Enfim, criticava as futuras intenções de Agostinho Neto, criticava a direcção do MPLA sob sua responsabilidade.
De facto era uma questão de poder. Ele via na personalidade de Agostinho Neto um autocrata em potência — no que não estava de todo errado, mais tarde.
Esta visão que tinha de Agostinho Neto — do homem enquanto chefe afastava-o dele e criava, em Viriato da Cruz, todo um conjunto de pressupostos sobre as opções políticas e ideológicas de Neto. Finalmente, ele criou uma tendência…
M.L. — Com quem?
M.P. A. — Com outros elementos do MPLA, jovens… Evidentemente, quando se cria uma tendência, cria-se uma clientela.
M.L. — Nenhuma personalidade conhecida?
M.P. A. — Não, nenhuma personagem conhecida: alguns jovens quadros, militantes de base… Isso durou, apesar de tudo, algum tempo: nos últimos meses de 62 digamos, entre Setembro – Outubro até ao mês de Dezembro — arrastámos esta crise no interior do MPLA.
A direcção do MPLA, no seu conjunto, e eu próprio, decidimos a favor de Agostinho Neto. Viriato da Cruz ficou de fora, até saiu de Kinshasa, mas foi-lhe permitido participar na Conferência Nacional. Quando se pôs a questão da direcção, houve duas listas: uma que incluía o nome de Viriato da Cruz, e outra que não o incluía. Houve uma escolha da Conferência a favor de uma lista de direcção que era uma ruptura definitiva — uma ruptura que Neto tinha exigido. Neto exigia uma direcção que excluísse Viriato da Cruz. Os outros membros da antiga direcção tinham aceite esta exigência. Talvez tenhamos errado. Visto de longe, com os olhos de hoje, parece que não fizemos — e eu, pessoalmente tudo o que era preciso para não afastar Viriato da Cruz deste grupo. Porque era um homem de uma grande capacidade de organização, com uma grande audiência interna. É um facto que se lhe deve a emergência das forças mais progressistas em Angola. Tinha, naturalmente, como qualquer homem, defeitos, manias, aspectos negativos. Era autoritário também ele. Eu era talvez o único capaz de conciliar as duas personalidades, pois era muito amigo, muito ligado a Viriato da Cruz. Talvez eu me tenha deixado levar um pouco por outras divergências de ordem pessoal que tive com ele num certo momento, e que não soube ultrapassar suficientemente de maneira a ser o intermediário —porque tinha apesar de tudo, o cargo de presidente do MPLA, e Neto era ainda um presidente de honra. Eu devia, talvez, ter ido mais longe na conciliação das duas personalidades. Mas eles eram totalmente opostos. Enfim eram duas autoridades, duas forças autocráticas, e era muito dificil fazê-las coabitar numa estrutura organizacional do tipo africano — que não é necessariamente democrática… Ambos tinham vocação para chefe – mas a de Agostinpo Neto era mais acentuada, a meu ver que a de Viriato da Cruz. Viriato da Cruz tendo o complexo de mestiço, era mais um homem da sombra, da organização na sombra. Era um líder, mas que não se sentia suficientemente, apoiado pelas massas negras para ser o chefe. Ele aspirava mais a ser o chefe espiritual chefe, o chefe ideológico enquanto Neto era naturalmente aquele que devia conduzir os homens, que tinha nascido para dirigir: «Sou aquele por quem se espera» está num dos seus poemas. Toda a sua vida foi pautada pela idéia de conduzir homens, parece-me. Bom, descobri-o mais tarde, era bem isso.
A acumulação de ataques de Viriato da Cruz era tal que atingiu o nível de ofensa pessoal, atingiu o amâgo do pensamento de Agostinho Neto – que não era um pensamento de estilo neo-colonial, como Viriato da Cruz suspeitava. Assim quando Neto pôs como exigência afastar Viriato da Cruz do caminho e da direcção, nós cedemos. Esta Conferência Nacional teve portanto uma nova direcção, com Agostinho Neto à cabeça. Eu fiquei nas instâncias dirigentes, responsável das Relações Exteriores: era o meu verdadeiro domínio.
Esta crise interna do MPLA saldou-se pelo afastamento de um homem importante, um homem-chave, do nosso movimento. E isto foi muito grave porque esta crise voltou imediatamente a surgir, em 1963, quando o governo de Holden, o GRAE, foi reconhecido pelo Governo de Kinshasa e este recomendou ao conjunto de África o seu reconhecimento, nas instâncias da OUA. Viriato da Cruz viu aí o fracasso da politica da nossa direcção e conduziu, por seu lado, um pequeno grupo que se apresentou no Comité da OUA como uma tendência do MPLA. Contei tudo isto em dois artigos: «A crise do nacionalismo angolano» na Revolution Africaine de 27 de Junho de 1964, que é uma repetição de «Angola: agonia do império e crise do nacionalismo» publicado em Remarques Congolaises & Africaines de 11 de Julho de 1964. Estes textos explicam — um só texto é suficiente – toda esta nova crise do MPLA.
Depois, o MPLA tomou a decisão de se fundir com outros movimentos que, a meu ver, eram movimentos ligados a portugueses, movimentos reaccionários. O MPLA empenhou-se em criar uma frente: a FDLA, Frente Democrática de Libertação de Angola sem o ter dito a todos os membros da direcção, incluindo eu próprio. Então demiti-me publicamente da direcção e como militante do MPLA durante um certo tempo. Era para manifestar o meu desacordo, em meados do ano de 1963, até uma explicação, que tive mais tarde, quando voltei a Brazaville. Porque entretanto o centro de acção do MPLA deslocou-se de Kinshasa para Brazzaville: houve uma verdadeira expulsão da direcção do MPLA de Kinshasa. Em Agosto de 1963 deu-se a famosa revolução dos Três Dias Gloriosos no Congo, e uma mudança de equipa, a queda do abade Fulbert Youlou —o personagem neocolonial da época —, para um movimento dito revolucionário, o que permitiu ao MPLA instalar-se em Brazzaville. A minha demissão deu-se nos meados de 1963…
M.L. — Ela explica-se unicamente por este problema?
M. P. A. — Era o problema da constituição de uma frente que, a meu ver, não reflectia a opinião democrática dos militantes e a minha opinião pessoal, como chefe das Relações Exteriores. Mas essa frente não teve existência real.
M.L. — Houve, portanto, um problema de funcionamento no interior da direccão…
M.P. A. — Sim, de funcionamento. Rebelei-me contra isso.
M.L. — As apreensões de Viriato da Cruz parecem pois, terem vindo a confirmar-se?
M. P. A. — Em certa medida. Mas Viriato da Cruz não teve razão quando se aliou a Holden. Porque, entretanto, ele aliou-se, a Holden. Na sua pressa de pôr em causa a direcção do MPLA, de considerar o fracasso da direcção do MPLA, estabeleceu conversações com o movimento rival, que esse, sim era da CIA: nós diziamo-lo desde há muito tempo e agora está escrito. Você sabe bem que alguns agentes da CIA o provaram…
Fê-lo. Sentou-se mesmo ao lado de Holden numa conferência africana. A sua divergência ideológica com o MPLA esvanecia-se, perdia o sentido, na medida em que se aliou ao movimento rival.
M.L. —Vocês mantinham relacões, nessa altura?
M. P. A. — Não nos falámos mais. Só mais tarde, em Marrocos, muito mais tarde.
Entretanto, dei a minha demissão, voltei a ocupar o lugar, etc. Houve comunicados, mais tarde, em 1963, por causa do mal-entendido: expliquei-me com a direcção de Neto, mas não retomei as minhas funções no interior do MPLA, depois desta demissão. Isto foi também um pretexto para me afastarem mas eu próprio queria afastar-me da direcção. Houve portanto vontades coincidentes.
M.L. Afastava-se por prudência?
M. P. A. — Não. Porque pensava que já não tinha lugar naquela direcção — não em relação a Neto, não particularmente – mas parecia-me que aqueles métodos pressagiavam outros. Aliás, não se insistia para eu ficar como responsável das Relações Exteriores, depois desta demissão. É verdade que a minha demissão foi um choque e deu-se num momento de enfraquecimento do MPLA, mas eu batia-me no plano dos princípios. O plano dos princípios, a meu ver, prevalecia sobre a oportunidade da minha demissão.
A direcção refez-se, estava muito bem assim, e eu retornei a Marrocos, no fim de 63, retomando as minhas funções no interior da CONCP, de que continuava a ser o presidente.
BIBLIOGRAFIA
(*) MICHEL LABAN (nasceu em Argel em 1946 – faleceu a 28 de Novembro de 2008)
Professor catedrático da Universidade de Paris III, Michel Laban, era especialista em literaturas africanas de língua portuguesa e tradutor de autores como Luandino Vieira, Pepetela, Luís Bernardo Honwana e Baltazar Lopes. Michel Laban foi regente da cátedra de Literaturas e Culturas da África Lusófona na Universidade Sorbonne Nouvelle/Paris III, nasceu na Argélia, onde estudara espanhol e português.
Depois de ter obtido o doutoramento em 1979, com um estudo dedicado a José Luandino Vieira, do qual traduziu diversos livros, iniciou a docência na Sorbonne Nouvelle, vindo a ser director do Departamento de Português.
Do português José Cardoso Pires traduziu as obras A Balada da Praia dos Cães, Alexandra Alpha e De Profundis – Valsa Lenta, enquanto de Moçambique tinha particular admiração, do ponto de vista linguístico, por Ascêncio de Freitas.
Michel Laban publicou “Angola, Encontro com Escritores” (1991), um conjunto de entrevistas dos mais importantes escritores angolanos da actualidade e o presente livro, “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista” (1997), traduzido pela poetisa angolana, Maria Alexandre Dáskalos.
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