A CATEDRAL DE SÃO-SALVADOR DE ANGOLA: HISTÓRIA E MEMÓRIA DE UM LUGAR MÍTICO

Kulumbimbi é a primeira igreja construída na África subsaariana e é monumento nacional Fotografia: Vigas da Purificação | Edições Novembro

Por Patrício Batrikama e  Álvaro Campelo

Introdução

Em maio de 1992, o Papa João Paulo II percorreu Angola. E fez questão de visitar a antiga cidade cristã do reino do Kôngo, dando particular destaque às ruínas da antiga catedral de São Salvador3 . A “Tradição Oral” que diz que estas ruínas da catedral se tratam de uma “obra de Deus”, ficou confirmada perante a comunidade e reforçou-se com essa visita! Entretanto, a memória deste lugar, construída na tradição histórica e renovada a partir deste acontecimento, expandiu-se aos países vizinhos, Congo Brazaville e Congo Kinshasa. Ao abordarmos, neste trabalho, um “lugar” como o das ruínas da catedral de São Salvador de Angola, que está relacionado na sua origem ao antigo reino do Kôngo, entramos num campo de análise no qual teremos em conta vários conceitos e várias abordagens científicas. Cruzando a investigação histórica (em cujos documentos disponíveis nos situam na memória escrita) com a investigação antropológica (material bibliográfico) que versou a cultura das populações que aqui viveram e vivem, e da própria tradição oral dessas populações, tentaremos uma aproximação aos sentidos e vivências deste lugar. Por sua vez, os conceitos de “lugar”, “espaço”, “memória” e “identidade” possibilitam uma compreensão para analisarmos os processos de apropriação e de negociação dessas populações com as ruínas da catedral de São Salvador de Angola. A concepção antropológica do espaço pode ajudar-nos a compreender os processos de apropriação das comunidades de determinados lugares, bem como da forma como neles constroem sentidos, reconhecem memórias coletivas (e individuais), ou seja, como eles, lugares, integram a sua identidade cultural. Michel de Certeau, ao dizer que “o espaço é um lugar praticado”4 , transporta-nos para as vivências do lugar, sendo que sem a prática do lugar não existe espaço. Antes de ser um lugar identitário, relacional e histórico, é a sua condição de “lugar praticado” que faz do espaço um assunto antropológico. Enquanto lugar praticado, as ruínas de São Salvador de Angola constituem-se como espaço de memória. Ao serem apropriadas pelas populações, e tendo em conta os sentidos que as informam (sagrados, mágicos), as práticas sociais que lhe estão associadas, bem como as narrativas que as interpretam, configuram um mundo simbólico, no qual os atores sociais investem cognitivamente, conformando as experiências e as emoções que delas decorrem.

Assim, a memória deste lugar vive-se da crença e do desejo, fazendo com que o grupo social se aproprie do lugar, inserindo-o na sua própria história coletiva (mítica e real). É desta forma que a memória do lugar confere segurança ao grupo6 . Se durante muito tempo a questão da memória coletiva, levantada por Maurice Halbwachs (1990) e da sua relação com a história foi depreciada, o mesmo não acontece atualmente.

Como perguntas de partida temos: qual será a origem da catedral de São Salvador, e por que é que a memória local a associa a uma proveniência divina? Para a primeira questão teremos de pesquisar o que nos dizem os documentos históricos; já para a segunda, a tradição local deverá informar-nos sobre esta percepção das ruínas. Há, de fato, uma história sobre estas ruínas e este lugar. E é essa história que se conjuga com os outros sentidos comunicados, pois, tratando-se de ruínas de uma catedral/ igreja/ templo, onde se invoca o divino, não é estranho que esse divino, o maravilhoso e todos os mistérios que lhes possam estar associados, façam parte da tradição local. A primeira aproximação que fizemos partiu do conhecimento dos sentidos misteriosos dados pelas comunidades a este lugar. Só depois a pesquisa histórica procurou contextualizá-los. Confrontou-se, assim, a “tradição oral” (recolhida por Patrício Batsîkama, um dos autores desse artigo) com os “documentos escritos”, esperando esclarecer as questões levantadas. Para isso, propuseram-se os seguintes objetivos: (1) buscar a história da evangelização da antiga capital do reino do Kôngo e as memórias dessa experiência; (2) compreender o comportamento coletivo das populações na apropriação desse “lugar”, não só em relação às ruínas da catedral, mas e, sobretudo, à integração e operacionalidade delas no restante espaço envolvente, seja ao nível das narrativas do extraordinário, seja nas vivências do quotidiano; (3) saber por que, nos conflitos armados de 1961, quando a União das Populações da Angola (adiante UPA) vandalizou várias aldeias nos arredores, a catedral e as pessoas que nela se refugiaram foram salvas. E se os “rebeldes da UPA” são responsabilizados de profanar o lugar, então porque o seu líder, Holden Roberto – que terá autorizado a profanação –, é enterrado justamente ao lado de Kûlumbîmbi?

Tradição Oral: Descrição e Tipificação

Vamo-nos basear em três tradições orais (representativas) que explicam a origem das ruínas de São Salvador, em Mbânza Kôngo. Importa salientar que essas recolhas foram feitas em língua local – kikôngo – mas contentaremos em expor apenas da versão portuguesa. Apresentamos, em seguida, as versões existentes:

a) Versão 1

Os Nsaku reclamavam a terra vermelha que pertencia aos Ñzînga. Ambos grupos eram ‘povos irmãos’, mas a divergência criou inimizade e afastamento [sentimental] entre eles. Dessa sua fragilidade, surgem os povos Yaka que, por falta de água, acabaram por ter abrigo dos Nsaku… Da colusão [dos Nsaku e Yaka], os Nzînga serão vencidos, maltratados e reduzidos à escravatura… Surgiram epidemias e inúmeras dificuldades. Os três grupos celebraram na noite de nsona de mbângala9 a sua união inquebrável. Ao amanhecer no dia seguinte, kulumbîmbi apareceu… e simbolizava os mpûngi za bakulu.

b) Versão 2

Antigamente existia uma floresta chamada nkûmb’a Wungûdi. Viviam nkuyu e ntêbo. Os padres que vieram explorar foram interditados pelas populações locais. Insistiram, e começaram por desflorestar a zona. Todos eles morreram, e tornaram-se ntêbo. Para vingarem-se, amaldiçoaram as populações locais com diversas doenças sem cura [doença de Deus]… daí que todas as populações reuniram-se e decidiram queimar a floresta e seus espíritos. Depois das chamas [que duraram todo dia] a terra mudou para cor avermelhada e estava erguido Kulumbîmbi, símbolo da união.

c) Versão 3

Na floresta de Nkûmbimbi wa Ngûndu que ocupava todo planalto que é hoje Mbanza Kôngo, existia um sítio específico onde se celebravam cultos dos ancestrais: Nsânda. Ao lado, nas noites, o fogo aceso que se chamava kisîku kya balûndu afugentava as populações. Dois grupos de Mankunku ma Kôngo e Mayaka ma Kôngo montaram seu exército e marcharam toda noite. A luta durou até amanhecer [no dia dos ancestrais], de modo que todos eles queimados no fogo tornaram-se pedras onde apenas podiam entrar as famílias do grupo Mazînga ma Kôngo.12 Vamos estabelecer um quadro de comparação das três versões:

 

No início, há uma floresta chamada Nkûmb’a Wungûdi (versão 2) ou ainda Nkûmbîmbi wa Ngûndu (versão 3). O primeiro termo significa “Nó materno onde todos Kôngo têm sua família”, isto é a Capital; e o segundo seria, de fato, Ñkûmb’a Mbîmbi wa Ngûndu que – além de significar a mesma coisa que o precedente – quer dizer “Nó materno/ Capital onde permanece a nossa Origem”. Esse segundo termo implica um cemitério dos ancestrais (Ngûndu: Mãe Ancestral), local de culto.

Nessa primeira linha A, pode-se compreender que, antes da população ter contato com as ruínas, a memória retém duas imagens: (i) Capital, (ii) lugar de Culto. Convém esclarecer aqui que “lugar (ou sítio) de culto” não teria – inicialmente – nada a ver com a catedral.

A linha B explica três intervenções: (i) os Yaka aqui identificados como guerreiros, de acordo com um texto de 1591, vieram do Sul13 para invadir o reino do Kôngo14; (ii) os Padres: várias vezes, os católicos intervieram em Mbânza Kôngo, primeiro para impor Dom Afonso I Mvêmb’a Ñzînga como rei (em 1506), logo depois da morte do seu pai, e sucessivamente na construção de igrejas e escolas, e nas competições dos candidatos ao trono; (iii) o que significaria kisîku kya Balûndu afugentador do povo? Traduzindo o termo, diremos que se trata de leis dos Portugueses, antes de serem considerados invasores, isto é, antes de 149015. Como se pode notar, trata-se de uma época cristã no Kôngo, mas antes de Afonso I ser coroado com o apoio dos portugueses16. Nesse sentido, as leis dos “Homens com pele semelhante aos albinos” e, sendo albino assimilado a “espíritos de deus” – sîmbi, espírito das águas – kisîku kya Balûndu, significariam “leis cristãs”, como aliás, ainda é para os retóricos em kikôngo.

A linha C estrutura a colusão entre Yaka e Nsaku contra Ñzînga (versão 1), ou a constituição do Exército pelos Kôngo da linhagem Mankûnku e Mayaka ma Kôngo (versão 3). Pode-se considerar aqui três aspectos: (i) Yaka, de que se fala aqui, seriam os Jagas que destruiram o reino do Kôngo, no final do século XVI; (ii) a primeira versão junta Yaka e os Nsaku contra os Ñzînga. Das nossas leituras, notamos uma aproximação da Tradição Oral aos documentos escritos: o monarca kôngo Ñzîng’a Mpûdi (Dom Bernardo I), que reinou entre 1561-1567, era da linhagem Mazînga ma Kôngo, e a tradição confunde os dois outros reis que sucederam a este: Mpûd’a Ñzînga Dom Henrique (1567-1568) e Mpûdi’a Ñzînga Dom Álvaro I (1568-1578). São da mesma linhagem: Mazînga ma Kôngo; (iii) Dom Álvaro I Mpùdi’a Ñzînga, que expulsou os Yaka/ Jaga com ajuda do capitão Francisco de Gouveia. Pode-se compreender internamente com as expressões Mankûnku e Mayaka. Mankûnku é lembrado pela Tradição Oral como um instrumento jurídico da colusão com os portugueses na época. Além de ser uma linhagem variante de Nsaku, parece personificar Francisco Gouveia

A linha D identifica as calamidades como: (i) doenças de Deus. Entre os Kôngo – Kimpianga Mahaniah consagrou um estudo sobre isso17 –, quando a doença não é identificada, alega-se que é “doença de Deus”18. A seu turno, os padres irão atribuir as calamidades no reino do Kôngo como causa do desrespeito a Deus. Daí nasce o paralelismo entre a ideologia kôngo, na compreensão das “doenças de Deus”, com a ideologia católica, que atribui o desastre à causa divina; (ii) as raras populações que ainda ficaram nas periferias da capital, por falta de acesso à água, à comida e à segurança, enfrentarão enormes problemas, entre eles, as epidemias. Curiosamente, Ngûndu pode significar a “cova da Mãe ancestral” como também a “vala comum onde se enterra cadáveres”. O topônimo “Ngûndu” designa, também, uma “terra que não pode ser habitada”, “cemitério” e, por analogia, “floresta/ fonte dos seres sobrenaturais”. A versão 3 menciona uma destruição pós-guerra, o que, se por um lado, parece retratar os Jagas e outros, por outro pode ser considerada como memória dessa época19 .

A linha E, finalmente, apresenta-nos alguns aspectos: (i) Kulumbîmbi é tido como “Mpûngi za Bakulu” ou “Instrumentos da Paz dos Ancestrais”. O que, de fato, significaria isto? A informante Ernestine Bumputu advoga que “Mpûngi za Bakûlu” seria a mesma coisa que “Mpângu za Bakulu”. Essa opinião é semanticamente falsa, pois a primeira quer dizer “Tranquilidade dos Ancestrais” e a segunda seria “Constituições que deixaram os Ancestrais”. Talvez a autora nos queira dizer que ambos os termos (com significações discrepantes) designam a mesma coisa, ou tenham um denominador comum (ancestrais). Religiosamente (política e religião estando concomitantes), o cumprimento dos “Mpângu za Bakûlu” implica a Tranquilidade, mas não dos Ancestrais. Parece que Mpûngi za Bakulu que designa especificamente “cova dos ancestrais” passa para um outro nível de interpretação, que vai do sentido literal, para o metafórico/ simbólico, onde “repousam em paz, os reis antigos que tombaram na busca da Paz no reino do Kôngo”, tal como se verifica no terreno em Mbânza Kôngo; (ii) Kûlumbîmbi surge depois das chamas na floresta. Essa memória parece antiga e recente, simultaneamente, por causa de: (a) floresta Nkûmb’a Wûngûdi precedeu a chegada dos europeus em Mbânza Kôngo, e aqui Ngûndu seria o “conjunto dos reis da linhagem Mazînga ma Kôngo”20; (b) “as chamas na floresta” parece recente, podendo ser traduzida por destruição, que já adiantamos atrás (o que é confirmada pelas fontes escritas), como também, pode ser a mistura entre “chamas” dos séculos XVI, XVII e XVIII em Mbânza Kôngo e a “floresta que germinou depois do século XVIII, no local onde estão as ruínas da antiga catedral de São Salvador”21; (iii) “depois das chamas, surgem as ruínas: lar dos Mazînga ma Kôngo”. Ultrapassada a questão de identificação dessas “chamas…”, o que significaria “lar dos Mazînga”? No local, a expressão é sinônimo de Ngûndu, que já abordamos anteriormente. Jean Cuvelier registou, em 1934, um texto ligado à linhagem “Ñkânga’ Mvêmba”, que se diz Mazînga também. Nesse texto, as ruínas pós-guerra são tidas como “lar dos Mazînga”. Se nos permitir cruzar fontes escritas e orais, veremos que pode se tratar de um episódio do filho de Afonso I, chamado Dom Pedro I Ñkâng’a Mvêmba, que sucedeu seu pai, em 1542. Depois de ser derrotado – ou seja “depois das chamas…” – refugiou-se na igreja, a mesma que será feita Catedral de São Salvador (como veremos a seguir). Posto na igreja, Dom Pedro I Ñkâng’a Mvêmba terá salvado a sua vida em 1543, somente porque nessa época as populações consideravam o local como “Ngûndu”, a ‘cova dos reis ancestrais’ onde os restos mortais do seu avô Ñzîng’a Nkuwu (primeiro rei cristão) repousavam, e ‘Igreja como local santo’, para esse povo evangelizado (ou sob evangelização). Algumas questões encontram possibilidades da resposta: (a) sacralidade do lugar/ Kûlumbîmbi –parte das razões político-religiosas, quer dos Kôngo pagãos, quer dos Kôngo evangelizados, justificaria as “tradições orais” a respeito dessas ruínas; (b) “lugar dos Mazînga ma Kôngo” confunde-se com a sepultura de “Ñzîng’a Nkuwu” que terá sido enterrado no ‘Ngûndu’ (floresta que alberga as ruínas) e com o refúgio do seu neto, Ñkâng’a Mvêmba (que era também da linhagem Ñzînga), na mesma igreja. Os hagiônimos que identificam a Catedral de São Salvador, nomeadamente “Mpûngi za Bakulu”, “Ngûndu” e “Kûlumbîmbi”, correlacionam-se semanticamente – pela memória que trazem do passado – para considerar sagradas essas ruínas até nossos dias. A seguir, iremos consultar algumas escritas da época para construirmos uma ideia geral sobre o ensino na catedral de São Salvador.

Catedral de São Salvador: Escritas e Iconografias

Testemunhos Escritos

No dia 19 de Dezembro de 1490, três navios – sob comando de Gonçalves de Sousa – embarcavam missionários (padres seculares, franciscanos e dominicanos), soldados aguerridos, pedreiros e carpinteiros… a caminho ao reino do Kôngo.

Com a evangelização que começa no Soyo em Abril de 1491… inicia-se a edificação da igreja de Mbânza Kôngo que acaba em Julho de 1491.2

Sabe-se, a partir da mesma fonte, que “Dom Afonso Mvêmb’a Ñzînga fez construir os locais onde se instalou a Escola para quatrocentos estudantes”23. Mais tarde, o monarca kôngo “ordenou construir um muro alto, armado de picos, para evitar qualquer invasão”24 . Kôngo dya Ngûnga (país de sinos) foi o nome que Mbânza Kôngo recebeu por causa das igrejas construídas entre 1491 e 152625. Vamos parafrasear:

A primeira edificada sob ordem de João I, parece ter conhecido o mesmo destino que a primeira tentativa de evangelização: caiu tão cedo em ruínas. Uma outra – talvez aquele da Santa Cruz – foi construída antes de 1517, data em que Dom Afonso Iº a menciona. A igreja principal, São Salvador, que deu seu nome à Mbânza Kôngo no fim do século XVI terá sido erigida entre 1517 e 152626. Enfim, em 1526, o rei ordenou a construção de Nossa-Senhora-dasVitórias, conhecida pelo povo sob título de Ambila, ‘aquela das fosses’27, porque encontrava-se situada na vizinhança da floresta sagrada onde repousam os reis desaparecidos… Um documento de 1595 deixa entender que existiam a esta data seis igrejas para aproximadamente dez mil lares.28

Igrejas e a Catedral de San Salvador

Percebeu-se que, a uma dada época, com a chegada dos portugueses ao reino do Kôngo, em 1491, a evangelização introduziu outro tipo de urbanismo na cidade real: (i) construção das igrejas; (ii) construção das escolas; (iii) construção de dormitórios dos padres (encarregados do ensino).

Para a localização geográfica antiga, Georges Balandier escreve:

Duas cidades coexistem em Mbânza Kôngo: uma concebida e construída para durar, o que resulta das iniciativas estrangeiras. É domínio dos Europeus, do comércio, da religião importada, com as suas seis ou sete igrejas e a sua sede episcopal no fim do século XVI… A outra cidade mantém as estruturas da cidade-aldeia. Ela permanece frágil e as suas ruínas, salvas as sepulturas dos reis defuntos, são totalmente levadas pelas guerras e o tempo.

Essa admoestação parece interessante para compreender duas questões fundamentais: (i) separação de vários ngûndu em relação ao Ngûndu, que se encontrava na cidade europeizada; (ii) discrepância urbanística numa mesma cidade. Isto se traduz pela confusão das “duas cidades” ocupadas, por um lado, pela autoridade religiosa Nsaku Ne Vunda (Madîmba) que permaneceu cidade-aldeia; e, por outro, pelo Ñtôtil’a .

Kôngo (Mbâzi’a Kôngo), onde se encontrava o trono. Localmente, alguns relatos confundem as duas cidades e seus ngûndu.

Ao que parece: (i) Ngûndu que se confunde com catedral significa de fato as ruínas de Kûlumbîmbi (cidade europeia), mas a memória coletiva regista-o ao mesmo tempo como a Madîmba (cidade-aldeia). Trata-se aqui de duas cidades antelusitanas principais na capital do Kôngo que, depois da evangelização, resultarão nos conflitos das civilizações (europeia e kôngo). Madîmba será retomada por Mbâzi’a Kôngo, logo, kûlumbîmbi passará a ser as ruínas da catedral, ainda que inicialmente seja o contrário; (ii) o fato que os Mayâka ma Kôngo invadiu a Mbâzi’a Kôngo e destruir também a Madîmba. A versão 3 sintetiza-o, dizendo que “kisiku kya balûndu” afugentavam as populações. Ora, serão os Nsaku a derrotar os Mayaka e, mais tarde, a se juntarem a eles, para restabelecer a tranquilidade no país. De acordo com a cosmogonia kôngo, Mbâzi’a Kôngo pertencia aos Mazînga, razão pela qual Mankunku (Nsaku) e Mayaka serão vinculados contra os Mazînga. Isto significa que as obras dos padres, os seus “kisiku kya balûndu”, foram vencidas e destruídas, entre as quais as antigas igrejas, e principalmente a catedral de São Salvador. Ora, as ruínas de Kûlumbîmbi – que, na verdade, são as da catedral – passam a ser “obra de Deus”, ngûndu.

Parece, aqui, estarmos a assistir a uma descolonização da memória local. A obra dos padres é queimada, as populações confrontaram-se mortalmente… até surgir essa “obra de Deus” que, desta vez, transmite uma mensagem: união! A véspera da consciencialização das populações kôngo com Aleixo, Nicolau e Álvaro Mbuta30, coincide – como veremos a seguir – com a desflorestação31 do local onde se encontram as ruínas de Kûlumbîmbi. Curiosamente, foram encontradas três pedras da mítica união dos Kôngo. Talvez seja por isso que os Kôngo interpretam sua unidade como forma de resistir à colonização portuguesa no reino do Kôngo. Pois, não poderia ser a cidade europeia porque só a cidade-aldeia descolonizadora se pronuncia sobre isso: ngûndu-madîmba.

Resumo da História das Igrejas de Mbânza Kôngo: 1491-1885

Em 1506, morreu o primeiro rei cristão João I, Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido por seu filho, Dom Afonso, Mvêmb’a Ñzînga, cuja sucessão foi reprovada pelos constitucionalistas kôngo mas, graças à força aliada dos portugueses, ele alcançou o trono. É na sua época que a Igreja será instalada na sua capital, doravante dividida em duas cidades: (i) cidade-aldeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) cidade europeizada, com os modernistas em Mbâzi’a Kôngo. Dom Afonso morre em 1542. Nkâng’a Mvêmba, Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá sucedê-lo em 1543, mas também será contestado, como tinha sido o pai. Vencido pelos seus rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igreja São Salvador, escapando da morte .

Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assola a capital e Dom Diogo I (o novo rei) estabelece um tempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Na verdade, era um “tradicionalista” que, por razões políticas e econômicas, aceitava cinicamente o cristianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os “tradicionalistas”, que nessa época serão tidos como os verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, que eram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”. Ambicionava uma diplomacia direta com o Vaticano, sem ter Portugal como intermediário, no que não teve êxito e, descontente com isto, expulsa todos os europeus, salvo alguns padres (no final de 1555 e início de 1556). Em novembro de 1561, Dom Diogo I morre de forma trágica, e subirá ao trono Afonso II, um modernista que será mais tarde morto pela insurreição dos tradicionalistas contra os “estrangeiros” e aliados Kôngo.

A necessidade do consenso levou Bernardo I Ñzîng’a Mvêmba ao trono, que morre em 1567. Seu sucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas, morrendo em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba, que lhe sucede, reinará durante quase vinte anos, dispondo de uma diplomacia forte como plataforma de estabilidade. É durante o seu tempo que os guerreiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir Mbânza Kôngo33. Nesse período da invasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal como se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será reconstruída e elevada ao estatuto de catedral, em 1596, e vários padres forão enviados para essa cidade. O rei Álvaro I enviará Dom Antonio Manuel (Nsaku Ne Vunda), como seu embaixador junto do Papa, que depois da sua captura pelos piratas portugueses e espanhóis – chegará doente a Roma, morrendo no dia seguinte. Da morte de Álvaro I, sucedeu Álvaro II, mas, entre 1613 e 1641, os monarcas kôngo são “fabricados” pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são demasiado jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para a situação do reino; outros são de fato crianças (Dom Álvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença de holandeses, franceses e outros europeus, que se interessam pelo comércio com Kôngo. Os holandeses chegaram a guerrear com os portugueses, na tentativa de expulsá-los do Kôngo (e Angola), logo no fim desse período.

Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em 1661, depois de muitos monarcas assassinados. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candidatura os padres europeus não aconselhavam, chegando alguns a orquestrar contra a mesma. Tudo isso porque ele intencionava expulsar do seu reino todos os europeus, tal como o fez Dom Diogo I, conforme mencionado anteriormente. Dom Antonio I convocou todos Kôngo do país a lutar contra a opressão portuguesa. Todo Kôngo foi sensibilizado porque pensava assim terminar com a colonização portuguesa. A luta entre os modernistas e os tradicionalistas, favorece vitoriosamente os primeiros, na grande batalha de Ambwîla. Mas são as consequências que nos interessam: (i) os tradicionalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhar a “cidade europeizada”, destruindo igrejas. Umas desapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Salvador, que tinha os “seus murros ainda de pé”34; (ii) a cidade europeizada “transformouse numa floresta… não habitada… e abandonada aos animais selvagens”35. Nem tradicionalistas nem modernistas pretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará, doravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo, que ainda permanecia no imaginário de todos; (b) abriu-se uma capital, Kibângu; (c) uma terceira capital estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papa chegou a reconhecer a capital de Kôngo dya Lêmba. Com as duas outras capitais, Mbânza-Kôngo ficou sem povoação. O “corpo religioso” e “corpo diplomático” saíram, então, de São Salvador, para a capital reconhecida por bula papal.

No princípio do século XVIII, surge um movimento “antonista” liderado por Chimpa Vita (1700-1702). Dos seus objetivos, conseguimos sintetizar os seguintes: (i) criar plataforma de negociação entre os tradicionalistas e os modernistas; (ii) mobilizar as populações a reconhecer Mbânza Kôngo como capital e destituir os dois reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente, em 1706, a líder deste movimento foi capturada pelos padres e queimada viva36. Os poucos habitantes que já ocupavam Mbânza Kôngo fugiram e se distanciar da “cidade europeizada”.

A sua repovoação foi entre 1842-1884, e depois da Conferência de Berlim (1885). Nessa altura, Mbânza-Kôngo era uma parte de Angola, colônia portuguesa, e sua povoação obedeceu a uma política colonial portuguesa de povoar as cidades. Primeiro, porque lá se encontravam algumas infraestruturas a serem aproveitadas e, segundo, porque se construíam outras novas.

Durante essa época, as velhas cidades perdidas foram descobertas, inclusive os muros chamados Kulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade, porque existia apenas na oralidade com hesitações de localização, de modo a convergir as versões existentes; (ii) lembrança da união entre as populações, o que incentivou a povoação das próprias populações; (iii) responsabilidade acrescida da administração colonial em conservar a memória local. Mas tudo indica que a memória coletiva tem dificuldades em separar as duas cidades, porque ambas cidades pré-existem no comportamento psicossocial como “um todo”, assim como, quando os Kôngo evocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ou Kôngo dya Ngûnga ou ainda Ñkûmb’a Wungûdi…), reconhecem a pluralidade como base da sua união. Esta é atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ou Mazînga.

O Nacionalismo Kôngo e a Catedral de São Salvador

O príncipe kôngo Dom Aleixo recebeu educação portuguesa e, em 1841, orientou o chefe Dembo (chefe Nambwa Ngôngo, na atual província do Bengo) a se revoltar contra a imposição portuguesa, porque só podia obedecer às ordens oriundas de São Salvador. Ele foi preso, em 1842, e libertado em 1856. Mas em 1845, o viajante alemão Georg Tams, que o visitou, informa-nos que Aleixo ter-lhe-á dito que “as autoridades portuguesas não tinham o direito de o manter prisioneiro” porque ele “identificava-se com o Reino do Congo, e não com a Angola portuguesa”37. A ideia nacionalista kôngo aqui é simples: o reino do Kôngo é um reino amigo de Portugal e não uma colônia como o foi Angola.

Dom Nicolau, filho do rei Henriques II, do reino do Kôngo, foi educado em Lisboa e em Luanda, e recorreu às técnicas ocidentais para manifestar o seu nacionalismo kôngo. Ele solicitava a independência do seu reino numa carta publicada no Jornal do Comércio, no dia 1º de dezembro de 1859, e chamava à união do seu povo: makukwa matatu malâmb’e Kôngo. Ele ganhara uma grande notoriedade, de maneira que o Brasil já lhe disponibilizava suporte diplomático: exílio político. Mas,

A história de Nicolau terminou de um modo trágico, pois, ao tentar embarcar num navio britânico em Quisembo, a norte de Ambriz, foi morto por um ajuntamento de africanos que o consideravam um farsante pró-europeu, um traidor ocidentalizado à independência tradicional dos africanos a norte de Luanda.

Consequência: entre 1860-1870, a colonização portuguesa enfraqueceu no espaço angolano que pertencia ao antigo reino do Kôngo39 .

Ora, é justamente nesse período que Kulumbîmbi reaparece, desconhecida de duas gerações, na execução de plano urbanístico agregado ao relançamento da colonização portuguesa na região. Apenas a memória coletiva mencionava a catedral, mas – como já vimos – com uma larga deformação informativa. Será por isso que nas versões citadas, kûlumbîmbi aparece como símbolo da união. Essa ideia da união é a compilação da velha tradição oral sobre (i) Nkûmb’a Wungûdi, (ii) Kôngo dya Ñtôtila e (iii) Kôngo dya Ngûnga. Com o neo-nacionalismo kôngo nos finais do século XIX, é compreensível que a velha tradição oral se tornasse como ícone da união. Os fatos históricos aumentavam a credibilidade: (i) foram encontradas três pedras da união kôngo, makukwa matatu…; (ii) foram encontradas tumbas dos antigos reis, cuja interpretação local agregava a ideia da união; (iii) o Ngûndu, que é local da Mãe ancestral, invocava a “união nacional”. Mais tarde, em 1885, a administração colonial afirma-se de novo.

Entre 1913-1914, o católico Álvaro Mbûta lidera a insurreição que irá envolver muita gente e muitos territórios, pretendendo alcançar dois objetivos: (i) destituir Dom Manuel Kiditu do trono Kôngo, que mantinha graças ao auxílio dos portugueses, ou exonerar os técnicos administrativos portugueses na coroa kôngo, a fim de substituílos pelos Kôngo; (ii) responsabilizar o entronado quanto à defesa dos trabalhadores kôngo que foram entregues aos trabalhos forçados com pouco rendimento.

A época que se seguiu foi a da concorrência das tendências políticas kôngo que divergiam às associações políticas NGWIZAKO, NTO-BAKO e UPNA. A primeira defendia a monarquia; a segunda sustentava uma independência exclusivista dos territórios kôngo de Angola e não Angola na íntegra; e a última, que defendia ideias republicanas, converteu-se em UPA. Nos três partidos políticos, o lugar da catedral de São Salvador, vulgo Kûlumbîmbi, foi utilizado inicialmente como ferramenta unificadora das populações. E, como já tentamos ver anteriormente, foi um penhor potente na mobilização do povo durante a execução das ideias independentistas.

Depois do declínio do Kôngo até 1885

Em 1665, depois da derrota do Vit’a Ñkânga (Dom Antonio I), Mbânza Kôngo foi desocupada, tal como relatado anteriormente. Vamos lembrar alguns aspectos que achamos importantes para compreensão da perda das influências políticas/ religiosas na região e o novo rosto que a cidade irá ter: (i) a transferência da cidade episcopal de São Salvador para Luanda favoreceu alguma da caducidade para a primeira, o que permite a sua ascensão à sacralidade da catedral de São Salvador/ ngûndu (passível de mistificação dentro dos valores culturais locais); a segunda cidade, emergindo, exerce, comparativamente a Mbânza Kôngo, uma força de influências para que a primeira desapareça, quer em termos de referência religiosa na região, quer como uma potência econômica e política; (ii) desde então, Mbânza Kôngo passava a significar a derrota. Isto é, a origem de todos os Kôngo (Mbânza Kôngo), que outrora era o sustento da união das populações, ilustrava doravante uma “conquista” (colônia). Mais tarde, a derrota de São Salvador pelos Mayaka, que se traduz pela vitória dos tradicionalistas sobre os modernistas, confundir-se-á com o sentido de “São Salvador como colônia portuguesa”. E Ngûndu, que passava a significar o vitorioso, traduziu-se por Kûlumbîmbi; eis a razão pela qual as ruínas são obras dos ancestrais Kôngo ou, sobretudo, obra de Nzâmbi (nome que se atribui ao Deus católico).

No século XVIII, existe um grande silêncio sobre essa catedral de São Salvador. Podemos buscar três motivos: (i) o reino do Kôngo está dividido, e todos têm horrores da capital, quer por causa dos sangrentos Jagas, quer por causa de vários assassinatos dos monarcas kôngo: “Nsi yifwîdi” (país morreu), cantará o povo; (ii) o reconhecimento papal de mais uma capital criou a ansiedade de viver numa outra capital e causará o despovoamento de Mbânza Kôngo, do que os padres reclamavam constantemente; (iii) a derrota do movimento antonista de Chimpa Vita se traduz pela derrota de povoar mais uma vez a cidade-capital do Kôngo. Isso tudo fez com que o século XIX seja, logo no início, um período de esforços – por parte dos portugueses – na redefinição das políticas coloniais: colonização demográfica40 . Simultaneamente, nascia o nacionalismo kôngo.

Com a colonização de Angola – oficialmente desde 1885 – desenha-se outro mapa da sociedade kôngo: (i) Mbânza Kôngo fica na colônia portuguesa; (ii) uma parte que reclama ser fundadora desse Mbânza Kôngo vive no Congo belga e outra na colônia francesa. Os movimentos sincretistas kimbanguismo e mpadismo, que irão suceder, criaram – já no início do século XX – outro axi mundi (centro) além de Mbânza Kôngo. É nessa época que se começa uma profanação passiva das ruínas Kûlumbîmbi sem haver força institucional ou costumeira para impedir. Um dos testemunhos pode ser as primeiras fotografias das ruínas, que indicavam um Kûlumbîmbi muito alargado, ruínas da igreja, outros recintos arruinados. Ora, hoje em dia, sobram apenas alguns muros da igreja. Ainda assim, há uma versão, segundo a qual, os “terroristas” da UPA terão saqueado (incendiado) as ruínas, em 1961 .

UPA e Kûlumbîmbi: 15 de Março 1961 até hoje

Depois de Holden Roberto (1923-2007) – um dirigente da UPA – União das Populações de Angola –, falecer, como obrigam os costumes, foi enterrado na sua ‘terra natal’, Mbânza Kôngo. Mas o que é mais significativo é o de pretender ser enterrado no cemitério dos antigos ‘reis do Kôngo’. Resultado: as instituições conservadoras da Tradição Oral negaram a pretensão. Mas, em consenso, foi enterrado ao lado do ‘cemitério dos reis do Kôngo’. O que terá originado isso? Vamos partir de duas versões:

  1. Primeiro, Holden Roberto não poderia ser enterrado ao lado dos reis porque ele não era da linhagem dos reis.42 Esta justificação é, em parte, verdadeira: apenas os Ñzînga poderiam reinar. No entanto, alguns reis ali enterrados não eram da linhagem de Ñzînga, mas de outras (incluída a de Holden Roberto).

II) Segundo, pela dimensão histórica angolana, Holden Roberto é um gigante. Mas, localmente, as instituições costumeiras responsabilizam a UPA pela vandalização de Kûlumbîmbi. Quase todas nossas fontes (ligadas às instituições) expressam “nostalgia” das “tropas da UPA” que expulsaram o colono. E a religião católica? Aliás, os Tokoistas, foram, no período de 1962-1964, interditados a aderir à UPA, no quinto preceito. O próprio Holden Roberto terá dito: “o meu partido assemelha-se à igreja Toko. Entra aquele que quizera (sic)”.

A igreja católica, outrora assimilada à colonização portuguesa e cuja catedral já era ícone, parece aqui significar duas coisas, se partimos da “reação tokoista”: (i) cristianismo; (ii) pátria. Não se esquecerá que a efectivação da revolta de 15 de Março de 1965 tinha, na sua maioria, militantes tokoistas. Ora, para o tokoismo, a UPA era contra o cristianismo e inimiga da pátria.

Em 15 de Março de 1961, os comandos da UPA massacraram várias famílias portuguesas, Umbûndu, e mesmo os Kôngo que não aderiram à causa. Assim começou a “luta armada pela Libertação Nacional de Angola”. Kûlumbîmbi não foi poupado, ainda que estivesse em ruínas, de acordo com alguns depoimentos. Há depoimentos também que advogam o contrário: todos aqueles que se refugiaram na igreja salvaram suas vidas, porque não foram [não podiam ser] atacados.

O quase silêncio dos acontecimentos é de cunho político. Os arquivos da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) sobre a UPA, a este respeito, contêm informações gerais, e quase silenciosas. Contudo, nessas versões, há várias incorreções que nos vão permitir compreender o que terá acontecido: (i) os “rebeldes da UPA” obedecem, antes da operação, aos rituais atribuídos ao tokoismo. Ainda que haja a probabilidade de que os rituais pertençam à liturgia tokoista, curioso é que não são “chefes espirituais tokoistas” que operam nesse campo. Quer dizer, pode haver uma imitação (e, por sinal, muito mal feita) dos rituais tokoistas para fins políticos. Os resultados que, num primeiro instante, levaram Holden Roberto, em Nova Iorque, a negar a autoria das atrocidades, não poderiam agradar a Simão Toko (tão popular na época). Resultado: os cartões de membro proibiam os Tokoistas a aderir à UPA; (ii) as zonas de onde são oriundos os “rebeldes da UPA” são mapeadas como de influência tokoista. A PIDE, tendo consciência dessa realidade, trabalha com a Defesa Nacional portuguesa, a fim de prever as eventuais atrocidades. Resultado: estabelece o mapa onde há concentrações tokoistas. Mas um fator que não é considerado são as incompatibilidades: o tokoismo deparar-se-á com o protestantismo batista e o catolicismo romano na zona do norte. No mapa de ataque que publica Álvaro e Dalila Mateus44, notamos o seguinte: na província do Zaire, apenas uma zona poderia ser tokoista e, na província de Uíge, todas zonas são tokoistas, mas aderem à ALLIAZO/PD, que é uma organização quase adversária da UPA. Nessas condições, os “rebeldes da UPA” só poderiam ter influências muito limitadas em relação ao tokoismo; (iii) etc.

É verdade que os “rebeldes da UPA” são angolanos, vivendo nas regiões fortemente influenciadas pelo tokoismo. A sua operação de 15 de março de 1965 terá facilitado o vandalismo das ruínas de uma ou de outra forma: nem todos eram de origem populacional (étnica) Kôngo, ou daquela região da antiga catedral de São Salvador, para respeitar a memória de Kûlumbîmbi. Ainda que assim não fosse, depois dos terrores nessa zona, Kûlumbîmbi já não era o mesmo. Consultamos três fotografias do informante Myêzi Álvaro: (i) a primeira é uma cópia de 29 de Setembro de 1938, que lhe foi oferecido como prêmio de escolaridade por um missionário batista. A catedral está dentro de uma pseudofloresta; (ii) a segunda é cópia de um jornal “Kôngo dieto” e data de 1960 (não figura o mês), onde as ruínas ainda têm as estruturas de outros compartimentos anexos à estrutura da Igreja; (iii) a última, sem data alguma, apresenta a catedral, tal como se apresenta hoje.

Importa salientar que Myêzi Álvaro fazia parte do NTO-BAKO e seu primo era conselheiro do NGWIZAKO, o que talvez poderá esclarecer a sua versão sobre a UPA que, na verdade, não é singular. Há, provavelmente, aqui a ambivalência política da UPA com NTO-BAKO e NGWIZAKO… e procriará (de certa forma) a versão de Myêzi Álvaro, natural de Mbânza Kôngo.

Uma última versão, que reza que as partes da estrutura do edifício de Kûlumbîmbi fotografadas no fim do século XIX, que já não figuram nas imagens atuais, foram suprimidas pelo governo (“Luyâlu”), quando se fez vedação para proteger as ruínas. Duas perguntas: (i) Luyâlu é tradução de autoridades governamentais: será governo provincial ou governo central, ou ainda o governo colonial, a que se refere aqui?; (ii) a vedação? Será para proteger as ruínas da constante profanação ou eventual vandalismo? Ainda que o governo provincial cumpra com as orientações do governo central, não encontramos placas que classificam as ruínas como património nacional (ainda que assim sejam). Uns pensam que seria uma iniciativa do governo local que, para proteger as ruínas, que já significavam quase nada para as novas gerações, preferiu vedar e colocar polícia a vigiar sobre Kûlumbîmbi. Outros partilham outra opinião, segundo a qual, a administração colonial classificou as ruínas, depois da sua “descoberta”, nos finais do século XIX, de maneira que as orientações definidas naquela altura só começaram a ser executadas recentemente, em 2007, na Mesa Redonda Internacional sobre Desenterrar Mbânza Kôngo. Foi uma medida inteligente porque, até nos nossos dias, ainda se acredita que o fato de uma pessoa possuir um bocado das pedras dessas ruínas no seu próprio domicílio, expulsaria os espíritos maus. Muita gente vem das repúblicas vizinhas, como peregrinos (para os religiosos e políticos), em busca de bênção. Ora, se tal “crença” existe há mais de um século, é provável que se justifique, ao longo deste período, algum “vandalismo passivo/inconsciente”, como uma das inúmeras causas que terá contribuído para o desaparecimento de outros compartimentos da antiga catedral de São Salvador.

Essa última versão indica as possibilidades das ruínas serem vandalizadas consciente ou inconscientemente (ou ainda passivamente) pelas novas gerações que – se afastando das instituições costumeiras e da memória coletiva – são passíveis de profaná-las. Só que o “mito” sobre Kûlumbîmbi ainda vigora nas repúblicas fronteiriças setentrionais (Congo Brazaville e Congo Kinshasa) e influencia de maneira incalculável as realidades sociais destas comunidades. Neste sentido, isto pode diminuir a ideia segundo a qual tão-somente a UPA seria responsável pelo vandalismo. Também se insere aqui a ideia de que há um vandalismo inconsciente – mesmo para as populações locais, como autoras – em buscar pedrinhas da antiga catedral como proteção contra os espíritos maus. Finalmente, será impróprio apontar o tokoismo como principal impulsionador desta prática. O que parece se desenhar aqui é: o vandalismo ativo e inativo de Kûlumbîmbi pode ser sustentado pela memória coletiva que se tem sobre as ruínas. Para evitar a sua total desaparição – enquanto não existir um projeto da restauração, talvez – o “luyalu” (provavelmente o governo local) tomará medidas para vigiar dia e noite as ruínas.

Como Se Criou a “Tradição Oral” Sobre Kulumbîmbi

Para formular a nossa hipótese, partiremos de três pressupostos:

  1. Tendo em conta que, no passado, “Ngûndu” (‘cova dos ancestrais’ ou ‘sepultura da Mãe ancestral’), local de reverência e de cultos e que passou a ser – durante a evangelização – abrigo das igrejas, em Mbânza Kôngo, e principalmente a catedral de São Salvador (onde se localizava), o que fomentou a ideia do ‘lugar sagrado’ dos ancestrais em convergência com o ‘lugar de casas de Deus/igrejas’;
  2. 2) Na ocupação recente de Mbânza Kôngo, essas ruínas eram desconhecidas, mas, depois de desflorestar (‘urbanizar’) à sua volta, foram localizadas. A ideia da floresta que, localmente, está ligada à do panteão – mundo dos espíritos – será associada ao mistério sobre ‘como surgiram’, ‘quem construiu’ e ‘em que ano’ as ruínas começaram a existir;
  3. 3) Partindo da visita do Papa Paulo II, em 1992, as duas primeiras considerações ganharam outra dimensão: o Papa é considerado como o representante de Deus na terra, e, no cristianismo, peculiar kôngo, isso é interpretado de forma relativamente exagerada: supõe-se que o Papa tenha, realmente, frequências com a divina existência (espíritos e Deus)… Assim, podemos avançar a hipótese segundo a qual, depois da visita papal às ruínas de Kûlumbîmbi e tendo em conta as pompas dessa visita (depois de ser recebido pelo presidente angolano, José Eduardo dos Santos), da curiosidade provocada pelos mitos, em contraste com o realismo racional contemporâneo, compõe-se a versão segundo a qual “Deus terá realmente criado essas ruínas”, que prevalece como explicação exaustiva das populações.

A nossa pergunta inicial, podemos considerar a nossa hipótese a partir dos hagiotopônimos atribuídos à cidade de Mbânza Kôngo – composta de Madîmba e de Mbâzi’a Kôngo/ São Salvador – que são portadores de duas fases da transformação da memória: (i) amnésia coletiva sobre a catedral de São Salvador; (ii) redimensão memorial através de suportes sincréticos (kôngo/ português, cristão/ fetichista). Na primeira fase, o despovoamento da cidade europeizada de Mbânza Kôngo, que se chamava Mbâzi’a Kôngo, parece criar um marasmo, numa primeira instância. No entanto, este marasmo é composto das antecedências: (i) dos temíveis Jagas, que invadiram e incendiaram a capital do reino do Kôngo; (ii) das resistências dos monarcas kôngo, principalmente o Dom António, Vit’a Ñkânga; (iii) da forma que foi queimada a profetisa Chima Vita. Essas histórias resumem-se em Kûlumbîmbi, o que restou dos ancestrais.

Na segunda fase, a ideia da Igreja Santa Maria, que será mais tarde feita São Salvador, elevada a catedral, no fim do século XVI, ainda é lembrada pelo poder econômico e político que, normalmente, se associa ao tráfico negreiro. Curiosamente, onde está erigida essa magna igreja elevada a catedral era um local de cultos aos ancestrais, para os Kôngo, antes da instalação portuguesa. Isto é, a igreja (nzo’a wukîsi) se confunde com ngûndu, cemitério da Mãe ancestral. Serão os príncipes kôngo – com nacionalismo kôngo – que, no final do século XIX, darão início a isso.

Essas duas fases levaram as populações locais a considerar as ruínas da catedral de São Salvador como uma obra divina. A explicação parece simples: os Kôngo católicos/ protestantes (letrados ou não) consideram essas ruínas como misteriosas por estarem no cemitério pagão, anticristão. Esse aspecto permite desconfiar de que se trataria da antiga catedral de São Salvador. Curiosamente, o termo nzo’a wukisi, que serviu para designar – pela primeira vez – essa mesma igreja, tem hoje um sentido pejorativo: casa dos feitiços. Desta feita, é descartada para a memória local a possibilidade de as ruínas serem a antiga igreja católica. Daí, Ngûndu, que é – também – designativo do local, prevalece. Ora, ngûndu constitui o mito pagão da origem do mundo. A memória coletiva será então balizada: Kûlumbîmbi terá uma origem divina porque ninguém o construiu.

Considerações Finais

Na atual capital da província do Zaire, em Angola, encontramos as ruínas de uma antiga igreja católica romana que, em 1492, chamava-se Igreja de Santa Maria, e, mais tarde, em 1591, de São Salvador, após ser reerguida. Com os despovoamentos repetitivos – consequência das lutas entre os portugueses e as famílias aristocratas ou monarcas kôngo, e ainda com o processo da proclamação da independência de Angola – perduraram as sequelas. Um lugar que se apropria, se perde e, novamente, se ressignifica, espelhando, de alguma forma a história desses lugares45 .

A memória coletiva local desconhece essa igreja. No local, a memória salienta o culto dos ancestrais (Ngûndu), que lembrava a origem de todos os Kôngo. E, em relação às ruínas, a tradição oral é unânime: “Deus que criou”. Na impossibilidade de interpretar essa frase em analogia com “igreja” ou “templo de culto de Deus”, tentamos aqui reconstruir os parâmetros da memória coletiva local e buscar nos arquivos antigos – felizmente publicados em livros nos dias de hoje – para compreender a construção dessa memória.

RESUMO

Na cidade de Mbânza Kôngo atual, localizada na província angolana do Zaire, encontramos algumas ruínas localmente chamadas “Kulumbimbi” (quer dizer, “o que restou dos ancestrais”). Essas ruínas constituem, por um lado, a memória local: “Deus que criou essas ruínas”, dizem as populações. Por outro, há documentos históricos que fazem menção dessa catedral desde século XVI, embora as imagens (gravuras) irão surgir no século XIX. Interessa-nos reconstruir os limites da memória e da historiografia dessas ruínas e compreender o processo formador/ transformador dos fatos em memória, na atualidade. O nacionalismo kongo que nasce num espaço dominado por essa memória estereotipou uma angolanidade rizomática da UPA que prevalece ainda hoje na organização política denominada FNLA. É uma angolanidade que defende as identidades locais como modeladoras da identidade nacional (angolana). E, ainda que algumas posturas seja exclusivistas/ autenticistas, a sua intenção fundamental é integrar na globalidade com algum peculiaridade identitária. Este artigo procurar situar a origem disso tudo.

 

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