Por Luena Nascimento Nunes Pereira (*)
Uma das questões fundamentais do debate em torno da Angola contemporânea é a da formação de uma nacionalidade construída a partir da luta armada, seja ela contra o poder colonial (1961-1974), seja a partir da independência, ao longo do conflito civil que determinou, em parte, o caráter de uma nação dividida, até pouco tempo(37) incapaz de gerir conflitos de forma não violenta.
A violência como elemento determinante na formação da nação angolana exige, entre outras coisas, uma avaliação sobre o lugar histórico, político e simbólico ocupado por certos grupos – sociais, étnicos, raciais, culturais – neste conturbado processo de construção. A consideração habitual de que qualquer nação, em seu processo de formação, se funda na eleição de certos símbolos em detrimento de outros, acarretando na hegemonia de certos grupos – produtores ou portadores destes mesmos símbolos – sobre outros, faz pensar que o caso angolano, fundado numa violência muito além da simbólica, pode se configurar num exemplo muito especial de construção nacional.
Uma característica marcante da formação angolana foi seu isolamento, desde o período colonial, como bem apontou J. Pereira (1999: 77 e ss). A marca do salazarismo na política colonial portuguesa, que restringiu a própria vida política na metrópole, foi responsável por este isolamento, tanto do ponto de vista de um descompasso das políticas coloniais empreendidas por Portugal em comparação com as de outras potências coloniais em África, como pela formação tardia dos nacionalismos das colônias portuguesas em relação à maior parte dos movimentos políticos no resto do continente.
O isolamento do nacionalismo angolano e a reação armada ao poder colonial têm sido explicados pela intransigência do regime português de negociar com suas colônias a transição para a independência, como ocorrido na maior parte do continente africano. Mas seu modo específico, tripartido (dividido em três movimentos de libertação(38), possui raízes mais complexas, devido às circunstâncias do colonialismo em Angola, de acordo com as condições peculiares do seu processo interno.
O fato é que este nacionalismo tripartido explica mas ao mesmo tempo reflete parte da problemática, que considero fundamental, de pensar os espaços – político, social, mas neste estudo principalmente simbólico – de determinados grupos na história e na vida social angolana.
Dentro do isolamento angolano – frente à África e diante de si mesmo – proporcionado pela história colonial, o isolamento do norte de Angola do resto da colônia foi uma realidade incontestável.
Sobretudo a especificidade desta região manteve-se, como já apontado, com a continuidade da integração desta área partilhada por diferentes potências coloniais, através da migração entre fronteiras39. A reação ao trabalho forçado e a busca por melhores condições de vida intensificaram a migração através da fronteira com o Congo Belga (ver mapa dos falantes de kikongo (40).
A vivência no país vizinho e o enquadramento missionário protestante reforçaram a formação de um nacionalismo bakongo mais em consonância com o contexto congolês que com o angolano. Assim, a reação ao isolamento angolano pela integração regional e étnica, por parte dos Bakongo, promoveu um nacionalismo de cariz marcadamente étnico e, por conseguinte, relativamente isolado do resto de Angola. Estamos aqui nos referindo aos movimentos já aludidos: UPNA, depois UPA e finalmente FNLA, além de outros movimentos menores.
Apesar do grande protagonismo demonstrado durante a luta anti-colonial, (chegando até mesmo a ser o movimento hegemônico, com reconhecimento da OUA, durante os anos de 1961 a 63), após a independência de Angola a FNLA conheceu uma trajetória descendente, na medida do crescimento da polaridade do partido no poder, o MPLA, contra outro movimento nacionalista, a UNITA, com a emergência da guerra civil(41).
Este ostracismo refletiu a impossibilidade do modelo proposto pelo nacionalismo bakongo, incapaz de servir como um projeto nacional ou como um projeto de inserção do grupo Bakongo na vida nacional, seja pela hegemonização alcançada pelo MPLA dentro do quadro conflitivo deflagrado durante e após o processo de transição, seja pela defasagem e descolamento das propostas entrevistas no projeto político da FNLA face ao novo contexto internacional e interno.
Neste contexto de afastamento da FNLA como força política representativa de uma camada importante do agrupamento Bakongo, inseriu-se a problemática dos regressados angolanos ex-exilados do Congo/Zaire, tratada em Pereira (1999). Uma mescla de questões políticas e culturais determinou a inserção social dos ex-exilados bakongo na nova nação angolana, sobretudo na capital, Luanda, de uma forma estigmatizada e marginalizada, ainda que não subalternizada.
O desenvolvimento desta inserção regressado/bakongo na sociedade luandense e angolana é concomitante ao processo da construção nacional de Angola, constrangida pela guerra civil e pelo progressivo fechamento político. Estas restrições não impediram, e até mesmo estimularam, a organização e coesão interna do grupo, reforçando laços de solidariedade étnica e confrontamentos de ordem identitária com a sociedade circundante, considerando ainda as motivações de ordem econômica.
O lugar especial que este grupo ocupou na economia da capital – montagem do mercado paralelo num sistema de economia socialista –, a dificuldade inicial no aprendizado da língua portuguesa, a rapidez com que os retornados que obtiveram formação média e superior no Zaire ocuparam cargos no aparelho de Estado, ajudaram a compor uma situação de incômodo e inadequação entre o grupo chamado regressado e a sociedade circundante, acarretando, em meio a situação de radicalização política do momento, na identificação dos regressados como estrangeiros, pelo conjunto da população luandense.
Percebe-se, nesta situação, a disputa em torno de critérios de pertencimento nacional, discussão esta truncada com a não resolução, até então, dos conflitos entre os três movimentos nacionalistas42.
Um dos elementos utilizados como critério de pertencimento nacional e de diferenciação entre grupos foi a língua. O papel fundamental que a língua portuguesa exerceu como língua veicular e língua de unidade nacional e sua importância para um amplo setor da população angolana são relevantes para compreender sua apropriação como critério de nacionalidade frente a um grupo percebido – e construído – como estrangeiro43.
Do ponto de vista dos regressados, na tentativa de inserirem-se numa nova realidade política e social, houve a busca de recorrerem a outros símbolos e argumentos para justificar o seu pertencimento à nação angolana. Por oposição à língua portuguesa como veículo de nacionalidade angolana verificouse a valorização do uso das línguas “africanas” (kikongo, lingala), de uma “identidade africana” ou “bantu” e, sobretudo, a evocação de um passado glorioso do povo Bakongo, que remete ao antigo Reino do Kongo. Não raro o Reino do Kongo é referido como o berço da nação, onde Angola teria começado, tanto por ter oferecido resistência ao domínio português, como considerando o próprio reconhecimento de Portugal ao rei do Kongo durante o regime colonial.
Além da valorização de traços culturais veiculados pelos regressados, o modo de ser e estar dos luandenses(44) também era, por sua vez, “estranhado” pelos que chegaram, percebido como excessivamente “ocidentalizado”, “portugalizado”, “crioulizado(45)”. O fato dos luandenses falarem apenas o português não utilizando, na sua maioria, qualquer outra língua materna angolana era interpretado pelos regressados não como um sinal de incorporação da nacionalidade angolana e sim, de “pouca africanidade”, por pouco expressarem um componente básico de “africanidade”, que seria o pertencimento étnico (Pereira, 1999: 115).
Este jogo de identidades pôde ser percebido tanto entre a população comum que se defronta e convive nas ruas, locais de trabalho e nos mercados, quanto no discurso das elites políticas e intelectuais de ambos os grupos. A par disto, a população regressada encontrou suas formas próprias de organização e de reprodução social e cultural, refez os seus laços de solidariedade e operou grandes transformações na sociedade de Luanda com a introdução de novas formas de atuação na economia, na construção de bairros regressados46, nos usos e costumes percebidos como diferenciados, na introdução do lingala no cotidiano da cidade, entre outros aspectos.
As mudanças sofridas por este grupo são fruto não só da dinâmica das relações entre grupos na cidade, mas também estão de acordo com suas clivagens internas – sobretudo aquelas de geração, considerando que os filhos nascidos na capital, de pais regressados ou zairenses, introduziram novos aspectos a este fenômeno de integração/oposição.
Ao longo dos anos, diversos fatores influíram na alteração do lugar dos regressados em Luanda: a situação político-militar, com suas distensões e agravamentos, o relativo processo de abertura política, a partir de 1991, com a permissão para a criação de partidos políticos e organizações civis, as eleições de 1992 e o posterior retorno à guerra no fim deste mesmo ano.
A mudança do sistema econômico com a transição para economia de mercado, a partir de fins da década de 1980, alterou significativamente a inserção social dos Bakongo, incluindo os chamados regressados, na sociedade angolana. O recrudescimento da crise econômica e a crise social ocasionou a piora das condições de vida da população e a generalização do mercado informal, antes vista como uma atividade específica dos regressados.
Se por um lado o agravamento da crise social nivelou o grosso da população que se voltou para o mercado informal, diminuindo o estigma dos regressados neste campo, por outro, permaneceu para amplos setores entre os Bakongo que vivem em Luanda, sobretudo aqueles que carregam a trajetória de vida no Congo/Zaire, um lugar mal definido na sociedade angolana.
As sucessivas crises que permeiam a história recente angolana vêm impelindo o grupo regressado a um lugar de marginalidade e instabilidade, refletido pelo seu lugar político e social, expresso pela sua nacionalidade mal definida e mal reconhecida. Esta situação vem desafiando os Bakongo, de um modo geral e os regressados em particular, a reelaborarem continuamente suas ações e representações – nas suas várias dimensões: individual, familiar, de classe, geracional e de gênero – frente a um quadro de instabilidade ora mais, ora menos agravado.
Neste trabalho defino como grupo Bakongo a população originária da região norte/noroeste de Angola, ou dela descendente, que fundamenta sua auto-identificação numa relativa unidade cultural baseada, entre outras coisas, na partilha da língua Kikongo e na percepção de uma descendência comum, mais do que numa referência política, ainda que este aspecto subsista principalmente em setores da elite deste grupo.
Os Bakongo de Angola consideram importante ressaltar o seu pertencimento nacional em contraposição a seus “parentes” de nacionalidade congolesa, especialmente neste contexto de reafirmação de sua nacionalidade. Estes dois níveis de identificação – étnico e nacional – se reforçam na maior parte das vezes, criando os Bakongo de Angola como uma categoria que faz sentido tanto do ponto de vista histórico como cultural e identitário. Os discursos de superposição étnica e nacional são percebidos com mais veemência nos discursos de elites político-partidárias bem como nos discursos veiculados em determinadas igrejas, como veremos no quarto capítulo.
As subdivisões étnicas têm uma importância relativa. Parecem ser mais marcantes entre os zairenses/ congoleses que entre os angolanos, entre os quais uma divisão provincial entre Zaire e Uíge faz mais sentido. Esta divisão não é arbitrária e responde a distinções processadas historicamente, que levam em consideração fatores de ordem geográfica, cultural, econômica e da dinâmica populacional.
Na província do Zaire sobressai uma divisão entre os da costa (especialmente os Bassolongo) e os da área de Mbanza Congo, antiga capital do Reino do Kongo (identificados como Baxicongos). Dentre os do Uíge, há também uma percepção de diferenciação interna entre os originários dos diversos municípios, com uma nítida divisão entre a parte sul e norte. As cidades de Uíge (capital da província) e Negage, ambas mais ao sul, portanto próximas da área de influência de Luanda, parecem se afastar um pouco da área dos municípios de Maquela do Zombo, Beu, Kimbele, Damba e Kibokolo, mais ao norte, área mais próxima da fronteira com o Congo. Ao longo de meus estudos não tenho me dedicado aos Bakongo com origem na província de Cabinda.
Desde a pesquisa de mestrado, sobre a questão dos regressados, o principal grupo com que tenho trabalhado é aquele originário da província do Uíge, sobretudo da área de influência de Maquela do Zombo, os Bazombo, que foi o contingente que mais emigrou para o Congo/Zaire. O chamado muzombo – uma designação que no Congo abrangia a todo e qualquer angolano – é na verdade um quase sinônimo de comerciante, atividade a que este agrupamento vem se dedicando há séculos. Estes se configuram praticamente no tipo regressado/comerciante com quem tomei contato em Luanda.
Neste trabalho, busquei ampliar meu campo de observações não apenas ao contingente regressado ou aos angolanos zombo, mas também aos originários da província do Zaire e da metade sul do Uíge, incluindo aqueles que não têm trajetória de migração para o Congo (que estão em número crescente em Luanda). Cabe considerar, contudo, que os chamados Bazombo/regressados continuam sendo o grupo principal a que faço referência, pois são em maior número no bairro periférico do Palanca, onde realizei trabalho de campo mais sistemático. Acresce a este grupo os migrantes da província do Uíge, sem qualquer passagem pelo Congo, que formam com os regressados um grupo unificado pelos laços de parentesco, tal como os nascidos em Luanda, filhos de pais originários do norte do país.
Continua na próxima edição.
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(37)- A longa guerra civil angolana parece ter encontrado seu termo em fevereiro de 2002, após a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA, pelas tropas do governo. 38 A guerra de libertação de Angola foi levada a cabo por três movimentos armados de libertação: os já citados FNLA, MPLA e a UNITA (fundado em 1966, a partir de uma dissidência da FNLA). Ver Heimer (1976) para o processo de descolonização de Angola, além de Marcum (1969 e 1978), Pélissier (1978) e Soremekum (1983). 39 Dos três principais grupos etnolingüísticos angolanos (ver nota 5), Ambundo, Ovimbundo, e Bakongo, os dois primeiros estão inscritos no território angolano (além do pequeno grupo Nyaneka-Humbe). O grupo Bakongo encontra-se cortado por fronteiras (sejam coloniais como atualmente, nacionais), tal como todos os outros grupos étnicos angolanos de menor porte, como Lunda-Tchokwe, Nganguela, Herero, Ovambo.
(40)- Extraído de Nsondé, 1995:31 41 A guerra pela independência se estendeu de 1961 a 1974, quando a Revolução dos Cravos, em Portugal, depôs o regime salazarista e abriu negociações com os movimentos de libertação das cinco colônias africanas. Em Angola, o processo de transição (1974-75) contou com a participação dos três movimentos de libertação reconhecidos (MPLA, FNLA e UNITA) e o novo governo português. Durante o governo de transição, ficou clara a impossibilidade dos três movimentos formarem um só governo da nova Angola independente. Iniciou-se, então, uma guerra civil, com participação de forças militares estrangeiras apoiando os diversos lados. O MPLA assumiu sozinho o poder em novembro de 1975. Logo nos primeiros anos do governo do MPLA, que procurou implementar um regime de caráter socialista, teve início a guerra contra a UNITA.
(42)- A FNLA retirou-se do país após ter perdido, em 1975, a primeira guerra civil, que redundou na independência de Angola, proclamada unilateralmente pelo MPLA. Depois disso, tornou-se uma força quase nula no quadro político nacional. A UNITA, que havia se retirado para o interior do país durante estes combates, cresceu em importância militar, com apoio americano e sul-africano, e retornou às hostilidades contra o governo então constituído, somente após 1976. Cabe acrescentar que o governo do MPLA contou com os apoios internacionais de Cuba e da União Soviética caracterizando o conflito angolano num conflito internacionalizado, firmemente inserido na Guerra Fria (ver J. Pereira, 1999).
(43)- Outro aspecto que permeou toda esta disputa em torno da definição de nacionalidade em Angola foi a discussão sobre a definição jurídica de nacionalidade angolana, havida durante o período de transição (1974-5). A definição de nacionalidade que sobressaiu na época (defendida pelo MPLA) deu um peso importante ao local de nascimento (juris solis), indo na direção contrária da maior parte dos países africanos, cuja ênfase recaía sobre o direito de sangue (juris sanguini – esta posição em Angola era reivindicada pela FNLA e em parte pela UNITA). Por isso, os filhos de angolanos permaneceram angolanos no Zaire, mesmo pertencendo ao mesmo grupo étnico existente no lado norte da fronteira, e em Angola encontraram grande resistência em serem reconhecidos como angolanos de fato e de direito.
(44)- Ressaltando a grande diferenciação interna ao grupo regressado (de classe, instrução, origem regional, etc.) não quero também deixar de dizer que incorro num grande risco ao abarcar sob a categoria muito abrangente de luandenses grupos bastante distintos, alguns mais, outros menos envolvidos nesta dicotomia, que tracei para fins da análise que se centrava no contraste identitário entre regressados e a complexa sociedade luandense (Pereira, 1999: 150).
(45)- A categorização crioulo aqui foge à definição sociológica de sociedade crioula, usada para definir uma camada social intermediária, culturalmente “mestiça”, presente em Angola principalmente até o século XIX e progressivamente alijada social e economicamente com o surgimento do colonialismo moderno em Angola no Estado Novo (Dias, 1984). Crioulo no contexto atual vem assumindo uma conotação social e racial com características ideológicas da classificação de grupos políticos. É como categoria “nativa”, que implica numa referência crítica ao grupo de poder ligado ao Estado – feito por grupos fora do Estado – que uso este termo. 46 A chegada da população regressada em Luanda obedeceu a algumas levas. As primeiras, vindas nos primeiros anos da independência.
Foram basicamente de “quadros”, pessoal formado, que ocuparam muitos postos na administração estatal. As levas mais numerosas vieram apenas na década de 80 e foram o contingente responsável pela montagem do mercado paralelo em larga escala. Quanto à ocupação por bairros, a população chegada antes foi morar nos muitos apartamentos do centro da cidade deixados pelos colonos portugueses que fugiram do país em 1974-75. Os bairros regressados, localizados na periferia da cidade, apareceram apenas na década de 80 e são, do ponto de vista da arquitetura e da ocupação do espaço, bastante diferenciados dos bairros periféricos mais antigos, chamados musseques (Pereira, 1999: 100). Vamos tratar dos bairros periféricos no segundo capítulo.
(*) Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”
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