Por João Paulo Henrique Pinto*
Durante todo o período em que o nacionalismo angolano se estruturou, isto é, a partir da década de 1940, uma das principais discussões que ganhou espaço entre os nacionalistas se referia à identidade da nação que se pretendia construir. Em um país tão múltiplo quanto Angola, a questão identitária era, portanto, importantíssima para unir todos os angolanos em torno de somente um projeto nacional e conquistar a independência.
Certamente, um dos marcos fundamentais para a formulação da identidade nacional angolana foi o surgimento do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola,
que teve na Revista Mensagem – a voz dos naturais de Angola o seu principal canal de expressão para
[…] revelar valores ignorados, impondo-os; corrigir hábitos mentais defeituosos; definir posições e conceituar a verdadeira cultura Angolana, livre de todos os agentes decadentes e dirigir a opinião pública para uma corrente sã e estruturalmente valorosa, que quer, pode e há-de impor-se (REVISTA MENSAGEM, 1951, p.2).
Apesar de sua brevíssima duração, a Revista Mensagem teve um impacto fundamental para a consolidação de uma definição de identidade nacional angolana que
seria apropriada pelos principais movimentos de libertação que surgiram nas décadas de 1950 e 1960.
Assim como o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, um efervescente movimento musical surgido nos musseques luandenses também deve ser apontado como fundador de uma identidade nacional angolana. Ao reunir um grande contingente populacional vindo das mais diversas regiões de Angola, os musseques se tornaram palco de uma vivência da angolanidade a partir do convívio cultural e dos bailes e festas que os agitavam (MOORMAN, 2008).
Sendo assim, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola e os músicos luandenses acabaram por selecionar entre um enorme arcabouço cultural disponível o que seria de fato aquilo que entendiam como a “verdadeira Cultura Angolana”. Ao menos em nível discursivo, afirmava-se que todas as matrizes culturais e étnicas de Angola faziam parte da identidade cultural que se construía, independentemente de questões raciais, étnicas ou regionais.
Foi exatamente esta definição identitária que os três principais movimentos de libertação angolanos (Frente Nacional de Libertação de Angola, Movimento Popular de Libertação de Angola e União Nacional para a Independência Total de Angola) adotaram no momento de sua fundação.2 Entretanto, para além de uma questão relativa à identidade nacional, este discurso identitário serviu muitas vezes como capital político, acionado muitas vezes nos momentos de conflito entre os movimentos de libertação nacional e inclusive nas crises internas destes movimentos.
O objetivo central deste artigo é compreender como este discurso de identidade nacional angolana forneceu elementos importantes para alimentar uma crise interna no MPLA entre os anos de 1962 e 1964, opondo duas das principais figuras do movimento: Viriato da Cruz e Agostinho Neto.
Ambas as lideranças foram capazes de mobilizar figuras de grande prestígio dentro do MPLA, causando a mais grave crise do movimento até aquele momento. O
início da década de 1960, portanto, foi extremamente conturbado para o MPLA, apesar da euforia decorrente do início da luta armada contra o colonialismo português iniciada em de fevereiro de 1961 e prosseguida em 15 de março do mesmo ano.
Após estes dois grandes ataques diretos a símbolos importantes do colonialismo – prisões e fazendas de café –, a repressão sobre os angolanos foi intensa, envolvendo perseguições, prisões e mortes dos militantes dos movimentos de libertação.3 Uma das alternativas possíveis para evitar a repressão portuguesa foi a fuga para o CongoLéopoldville.
A UPA, instalada em Léopoldville desde a sua fundação, tinha sua principal base de arregimentação de militantes na região norte de Angola e no sul do CongoLéopoldville,4 onde o grupo etnolinguístico bacongo é predominante. Desde sua fundação, a elite da UPA teve sólidos vínculos com as organizações que se propunham a fazer a independência do Congo Belga, como a Aliança dos Zombo-Bazombo (ALLIAZO) e a Associação dos Bakongo (ABAKO). A partir destes contatos, Holden Roberto e seus pares passaram a ter relações privilegiadas com as principais lideranças políticas congolesas. Após a independência do Congo em 1960, a UPA construiu ótimas relações com o governo de Joseph Kasavubu e passou a desfrutar de facilidades que os demais movimentos de libertação nacional angolanos jamais dispuseram (TALI, 2001,p.76).
Foi neste contexto do imediato pós-independência do Congo-Léopoldville, em que a UPA se fortalecia e tinha grandes facilidades na sua estruturação neste país, que o MPLA iniciou sua transferência para a capital Léopoldville, intentando se aproximar do território angolano para dar prosseguimento à luta armada e disputar com a UPA os refugiados angolanos que chegavam ao país. Àquela altura, por dispor de tantas facilidades, a UPA parecia ser o destino mais provável aos angolanos que intentavam ingressar na luta anticolonial.
Para tentar se impor neste frágil terreno de disputa por militantes refugiados, o MPLA precisou agir por trás do Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos
Refugiados (CVAAR), organização controlada por alguns militantes do movimento, em sua maioria médicos e enfermeiros. Sob uma constante vigilância da UPA e do governo de Joseph Kasavubu, o MPLA fez um delicado trabalho de propaganda para convencer novos militantes a ingressar no movimento.
Sendo assim, ao chegarem ao Congo-Léopoldville, os refugiados angolanos se deparavam com uma intensa disputa entre UPA e MPLA, onde, além das propagandas sobre seus projetos para a conquista da independência e para o futuro de Angola, estes movimentos também se empenhavam na troca de acusações com a intenção de evitar o crescimento do seu oponente e de se fortalecer no campo nacionalista angolano.
Nestas acusações, são nítidos os discursos que se valiam de uma argumentação étnica e racial para diminuir o movimento oponente. Sendo assim, o MPLA acusava a UPA de ser um movimento marcadamente bacongo e, por isso, não poderia ser considerado um movimento nacional, uma vez que representava somente uma das muitas etnias que compunham a nação angolana. Por sua vez, a UPA acusava o MPLA de ser um movimento de indivíduos da etnia quimbundo, dominado por mestiços e orientado ideologicamente como um movimento comunista (atente-se para o impacto desta acusação ideológica em um contexto marcado pela bipolarização da Guerra Fria).
Nestes momentos de conflito, a argumentação de natureza étnica e racial sempre se apresentava como um fator importante para a tentativa de resolução dos conflitos ou, ao menos, para deslegitimar os oponentes. Portanto, sendo grande o impacto desta argumentação, é possível afirmar que a propaganda com base em acusações étnicas e raciais amplificava uma discussão que certamente ocorria entre a população de Angola, o que demonstra a importância da questão identitária naquele momento em a luta pela independência dava seus primeiros passos.
Foi a partir desta acusação da UPA que se desenvolveu a primeira grave crise interna do MPLA, envolvendo a cúpula do movimento e opondo duas das suas
principais lideranças. Estas acusações da UPA sobre a possível mestiçagem característica do MPLA levaria Viriato da Cruz a iniciar uma discussão sobre o problema racial dentro do movimento. Entretanto, como será apresentado mais adiante, a disputa racial no seio do MPLA não se referia somente às críticas da UPA, mas também esteve ligada às complexas relações entre as elites na sociedade colonial angolana. Foi nesta crise que a ideia de coesão do MPLA caiu por terra, pois as divisões sociais apareceram de forma latente, influenciada também por questões relativas à raça, às trajetórias sociais e à ideologia dos membros do movimento (TALI, 2001, p.79).
Em carta escrita em 3 de setembro de 1961 destinada a Carlos Rocha Dilolwa, Luiz d’Almeida e Edmundo Rocha, Viriato da Cruz apontou que o problema racial em Angola era influenciado pela incompreensão das massas negras sobre o colonialismo, que o identificavam com a “raça não-negra”. E continuava referindo-se às acusações aos movimentos de libertação angolanos que tinham não-negros à sua frente:
Gostaria de chamar a atenção dos não-negros angolanos para a necessidade de um novo comportamento. A meu ver, é indispensáv que os não-negros que estejam sinceramente opostos ao colonialismo e à exploração do homem pelo homem, mostrem maior abnegação desinteressada pela libertação de Angola. Seria vantajoso que os não-negros continuassem engajados na luta […] com um espírito de desinteresse em relação à hierarquia das organizações políticas e outras, em relação às questões de representatividade (viagens, delegações etc.), ao problema dos postos do Estado angolano independente de amanhã, etc.
Nas mesmas condições actuais de luta […] os não-negros deveriam dar a maior predominância às formas de agitação pelo exemplo dos problemas e das situações raciais […]. O exemplo de abnegação desinteressada […]
A proposta de afastamento dos não-negros dos cargos dirigentes no MPLA teria seu primeiro palco em uma reunião do Comitê Diretor em maio de 1962, momento em que as acusações da UPA começavam a incomodar de fato a cúpula política do movimento, fazendo reverberar a ideia defendida por Viriato da Cruz na carta acima citada. Nesta reunião, Eduardo dos Santos lançou a ideia de remodelação do Comitê Diretor do MPLA a partir do princípio de que os negros deveriam ocupar os cargos de maior destaque no movimento, de maneira que brancos e mestiços não deveriam atuar na linha de frente. Para isso, havia a necessidade de substituir alguns nomes da cúpula do MPLA por indivíduos negros, o que afastaria Lúcio Lara e Viriato da Cruz, mestiços considerados como os principais ideólogos do movimento. Neste mesmo movimento, o próprio Eduardo dos Santos também deveria se afastar da linha de frente do MPLA.
A proposta de Eduardo dos Santos encontrou o apoio de Viriato da Cruz, que, mesmo sendo um dos dirigentes que perderiam o seu posto no Comitê Diretor, assumiu a dianteira das discussões, afirmando que há mais de um ano ele já apontara para esta necessidade de alterar os nomes da cúpula do MPLA. Viriato da Cruz, então, passou a defender este ponto de vista pois, em vista das acusações desferidas pela UPA e da dificuldade no recrutamento de novos militantes para o MPLA, “um Comitê Diretor formado por mulatos não poderá [poderia] dar palavra de ordem que seja [fosse] aceite” (MPLA, 1961a).
Em O problema racial dentro das organizações nacionalistas africanas, Viriato da Cruz apontou a questão racial como problema central dos movimentos de libertação angolanos. Defendeu também, neste artigo, que a presença de mestiços na direção destes movimentos era um problema à luta de libertação, já que as análises que se valiam de uma abordagem racista ainda eram muito impactantes às massas negras. Sendo assim, a ocupação de cargos de direção por mestiços, poderia prejudicar o bom desenvolvimento da luta anticolonial por promover a concorrência com os negros e por tornar o movimento um alvo fácil da propaganda interesseira de líderes políticos negros que praticavam o racismo em seus movimentos (CRUZ, sem data). A referência de Viriato da Cruz à situação vivenciada no MPLA e às acusações de Holden Roberto são bastante claras neste documento.
Entretanto, apesar da força da argumentação apresentada por Viriato da Cruz e seus pares, outros membros do Comitê Diretor não aceitavam sua proposta de retirada de mestiços deste órgão. A proposta de Eduardo do Santos e Viriato da Cruz ainda levava consigo a dificuldade de encontrar quadros preparados para assumir os cargos que ficariam vagos após a retirada dos mestiços do Comitê Diretor, tal como apontou Graça Tavares durante a reunião de maio de 1962. Basta dizer que Viriato da Cruz, Eduardo dos Santos e Lúcio Lara, três figuras importantes e capacitadas do MPLA, teriam de deixar a cúpula política do movimento. Graça Tavares propôs, então, que se remodelasse o Comitê Diretor, mas que também se preservasse os cargos destes três dirigentes (MPLA, 1961a).
Mário Pinto de Andrade, o então presidente do MPLA, analisou a situação de conflito com a UPA, defendendo que, ao contrário do MPLA, o movimento de Holden Roberto empreendia uma política racista para fazer avançar sua luta, de maneira que a reformulação do Comitê Diretor significaria ceder ao racismo praticado pelo movimento oponente. Sendo assim, Mário Pinto de Andrade propôs uma solução intermediária para a questão, defendendo que se alargasse o Comitê Diretor, incluindo indivíduos que estivessem mais ligados às massas, aumentando assim a representação dos negros naquele órgão (MPLA, 1961a).
Matias Miguéis e Viriato da Cruz avançaram a ideia de que este movimento de mudança no Comitê Diretor seria uma estratégia necessária no jogo político e que não significava, em hipótese alguma, que os mestiços não seriam benvindos no MPLA (MPLA. 1961a). Tratava-se, pois, de um recuo estratégico que, posteriormente, auxiliaria no avanço do MPLA no campo do nacionalismo angolano. Nas palavras de Matias Miguéis, o MPLA deveria “usar uma estratégia de modo a mostrar ao público que não somos [eram] uma organização de mulatos, de brancos ou de qualquer outra coisa” (MPLA, 1961a).
Em complemento a esta ideia, Viriato da Cruz ainda afirmava:
o racismo das massas é o elemento mais dinâmico do nacionalismo africano. Não fomos nós que o criamos. Ele existe por virtude da opressão que os africanos têm sofrido durante séculos em contato com os colonialistas europeus. Rejeitar este elemento como fator de luta seria politicamente errado (CRUZ apud RÊGO, MORAIS, 1962, p.83).
Portanto, esta estratégia de recuo dos dirigentes mestiços para fazer aparecer os negros que faziam parte do MPLA era, para Viriato da Cruz e seus aliados, uma
importante arma política para conquistar as massas angolanas.
Após esta longa discussão, o Comitê Diretor acabou decidindo pela remodelação do órgão (ver quadro a seguir). Entretanto, no momento da discussão sobre os nomes que seriam afastados e aqueles que assumiriam os cargos, Hugo de Menezes fez uma observação importante sobre aquilo que considerava um dos reais motivos da proposta de reformulação do Comitê Diretor: “a argumentação não é [era] apresentada só contra os mulatos mas também contra os doutores e universitários” (MPLA, 1961a). Mais adiante, com a intensificação da crise interna do MPLA, esta questão ficaria mais densa e evidente nas publicações de Viriato da Cruz.
Quadro 1
Comitê Diretor do MPLA saído da remodelação de maio de 1962
(Nome – Raça – Estudos – Função)
Mario de Andrade – Mestiço – Superiores – Presidente.
Matias Miguéis – Negro – Médios – Vice-presidente
Graça Tavares – Negro – Superiores – 1º. Secretário
Vieira Lopes – Mestiço – Superiores – 2º. Secretário
Desidério da Graça Negro – Superiores – 3º. Secretário
Luís de Azevedo – Negro – Secundários -Relações exteriores
José Miguel – Negro – Médios – Juventude MPLA
José Pimentel- Negro – Primários – Contra-espionagem
Rev. Domingos da Silva – Negro – Médios – CVAAR
Deolinda Rodrigues – Negra – Médios – CVAAR
Domingos Tando -Negro -Médios – Formação de quadros
Nota-se que o Comitê Diretor saído da reunião de maio de 1962 teve como princípio a ideia de retirada dos mestiços deste órgão, sendo que os mestiços Viriato da Cruz, Eduardo dos Santos e Lúcio Lara perderam os seus cargos na hierarquia do MPLA. Entretanto, na Ata da Reunião, sugere-se que estes indivíduos ficariam atuando às sombras, sem deixar de dar suas contribuições ao avanço da causa anticolonialista.
Marcel Bittencourt ressalta que a saída de Lúcio Lara e Viriato da Cruz serviu também para tentar apagar a imagem de um MPLA comunista e radical, já que estes dois dirigentes eram os principais ideólogos do movimento naquele momento. Em contrapartida, entraram no Comitê Diretor figuras com um perfil um pouco mais conservador, como Deolinda Rodrigues e o reverendo Domingos da Silva, que tinham vivência dentro de organizações religiosas e, por isso, eram vistos como menos radicais (BITTENCOURT, 2002, p.190).
Portanto, neste primeiro momento, venceu o argumento do recuo estratégico para responder às acusações da UPA, principalmente àqueles referentes à questão racial e à ideologia seguida pelo MPLA. Contudo, esta discussão ainda estava longe de ser definida e seria adensada nos meses seguintes, quando novas questões surgiram e iniciaram de fato a primeira crise interna do MPLA.
A situação sofreu uma importante alteração no momento da chegada de Agostinho Neto a Léopoldville em julho de 1962, tornando-se presidente de honra do
MPLA. Após uma fuga espetacular da prisão onde estava confinado, Agostinho Neto iniciou imediatamente um processo de transformação na estrutura de poder do movimento, valendo-se principalmente da imagem que fora construída sobre si e do bom relacionamento estabelecido no período dos estudos na metrópole com muitos dirigentes do MPLA.
Vale dizer que, durante a presidência de Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz desfrutava de grandes facilidades para fazer seus arranjos políticos dentro do MPLA. A partir da chegada de Agostinho Neto, esta liberdade de ação acabou sendo limitada, principalmente em razão da nova forma de governo imposta pelo novo presidente, mais centralizadora e autoritária. Logo de início, Agostinho Neto se posicionou contrariamente à remodelação do Comitê Diretor proposta na reunião de maio de 1962, o que levaria novamente à discussão acerca desta questão.
Para Agostinho Neto, o recuo estratégico defendido por Viriato da Cruz seria uma contradição com os princípios defendidos pelo MPLA em seus estatutos, já que este movimento afirmava a necessidade de unir todos os povos angolanos em uma só unidade nacional, sem distinção de cor, etnia, religião, classe social etc. Sendo assim, para Agostinho Neto, a retirada dos mestiços do Comitê Diretor seria uma forma de filtrar seus membros a partir de um princípio racista que o movimento buscava combater.
Portanto, o argumento de que a retirada dos mestiços do Comitê Diretor era somente uma estratégia não convencia Agostinho Neto, que naquele momento era quem ditava os rumos que o movimento tomaria.
Há que se ressaltar que, nesta discussão sobre a remodelação do Comitê Diretor do MPLA, a questão racial aparecia como um importante ponto de disputa entre as duas principais forças políticas do movimento. Entretanto, apesar de ser uma questão de grande importância, os argumentos esgrimidos sobre a discussão racial em Angola parecem ter sido instrumentalizados em função de questões políticas. A posição de Viriato da Cruz certamente não era uma postura racista a respeito da composição do MPLA e da identidade nacional angolana, mas, apesar disso, este foi o argumento apresentado por Agostinho Neto para defender o seu ponto de vista. Nota-se, portanto, que mesmo já havendo uma definição clara sobre a questão identitária nos documentos fundadores do movimento, ainda cabiam algumas manobras para a utilização deste problema com finalidades políticas.
É importante ressaltar que a apropriação de discursos e ideias com finalidades políticas não é uma particularidade do MPLA, uma vez que diversos movimentos e
partidos políticos o fizeram e continuam a fazê-lo hoje em dia. O que interessa demonstrar aqui, portanto, é que a questão identitária definida pelo MPLA foi um dos elementos apropriados em função da política interna do movimento, o que demonstra que nem sempre houve congruência entre discurso e prática política.
Este posicionamento de Agostinho Neto foi um dos primeiros problemas que ocasionaram um choque mais agudo entre Viriato da Cruz e o Comitê Diretor do
MPLA. É possível notar através da documentação levantada nesta pesquisa a importância do conflito pessoal existente entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto. Apesar de não permitir uma análise mais profunda sobre a crise que se desencadeou a partir de 1962 sob um viés exclusivista, não se pode negar que tenha havido uma dimensão pessoal neste evento, o que foi causado por pensamentos diferentes sobre a questão racial, o gerenciamento do movimento e o poder desfrutado por cada uma das partes envolvidas.
Este conflito pessoal entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto ficou mais claro após uma reunião realizada em Léopoldville, em 12 de outubro de 1962, onde a crise vivida pelo MPLA foi analisada e as partes envolvidas tomaram a palavra para apresentar seus argumentos. Nas palavras de Viriato da Cruz registradas nesta reunião, nota-se a ácida crítica à presença de Agostinho Neto no MPLA e às suas ações desde o seu retorno:
O Camarada Neto tinha a certeza de vir ocupar o primeiro lugar no Movimento. Este era conhecido de todos até porque o camarada M. Andrade se pronunciou em Rabat a seu favor. Eu não tinha nada a dizercontra ele pelo contrário idealizei-o como o descrevi. Seria o homem que estaria acima dos partidos e de todos nós como um grande caracter e rectidao. Ele chegou, mas pareceu-me que por não conhecer o meio os homens o aspectos bons e maus neles existentes colocou-se numa posição que favoreceu o desenvolvimento de manobras que agravaram a crise. Não entrou imediatamente no Movi, esperou mas numa atitude caótica.(…). Por outro lado o camarada Neto numa reunião que eu pedi mas foi dificilmente concedida, chegou a avançar julgamentos sobre a minha pessoa. Isto abalou minhas convicções sobre a sua rectidao. Chamou-me grande individualista. Ele nunca me conhecera antes… Fez apreciações sobre o meu trabalho no passado sem me ter ouvido sobre as acusações que me teriam sido feitas. Tombou assim a minha imagem sobre a sua rectidao Ou ele ouvia só de um lado ou então inventava por si (MPLA, 1962 a, p.2).
Em resposta, Agostinho Neto também criticava seu oponente, afirmando:
Nao me considero no banco dos reus. Nao quero defender-me quero fazer um novo relato para se julgar do espirito que nos animava perante as propostas feitas há dias no sentido de salvar tudo da situação caótica em que nos encontramos. O unico grande problema do Movi. era o Viriato da Cruz. Verifiquei que
o Viriato nao trabalhava em espírito de harmonia com os outros camaradas como o Lucio Lara e o Mario, que se afastara propositadamente de Leo para não trabalhar com eles.(…) O Viriato estava habituado a ser consultado por todos os membros para todo o trabalho. Eu tenho outros hábitos e não aceitei ir ao quarto do Viriato dizer o que tinha feito. Era aqui nesta mesa que eu o faria. Eu não ia ao quarto do Sr. Viriato e ele não gostou… (MPLA, 1962 a, p.5)
Uma vez consultada esta documentação, não se pode negar que a discussão que se iniciara a partir da proposta de remodelação do Comitê Diretor do MPLA ganhou também um caráter personalista que, contudo, não é capaz de explicar toda a crise vivenciada pelo movimento. Nos meses seguintes, os problemas se tornaram cada vez mais densos, envolvendo questões que iam muito além do choque entre as personalidades de Agostinho Neto e Viriato da Cruz.
Um documento importante para a compreensão da crise que se desenhava na cúpula do MPLA àquela altura foi escrito por Viriato da Cruz em 15 de novembro de
1962, quando este se retirou de Léopoldville devido ao seu cada vez mais agudo descontentamento com a política empreendida por Agostinho Neto. Contudo, apesar de seu afastamento físico, Viriato da Cruz enfatizava que não estava abandonando o MPLA ou a luta anticolonialista. Em “Aos camaradas militantes do MPLA e do EPLA”, Viriato da Cruz apresentou os seus pontos de desacordo com a direção do movimento:
– Não aceito a teoria da inevitabilidade do neo-colonialismo em Angola, teoria que alguns dos dirigentes veem defendendo. Essa teoria, que afirma que não podemos evitar o neo-colonialismo em Angola, desarma o espírito combativo do Povo, atraiçoa o grande sacrifício, em vida e em sangue, que o povo vem fazendo; abre as portas do nosso Movimento a uma política sem princípios, oportunista e de falta de escrúpulos e decaracter.
– Não aceito a política de divisão que um grupo de dirigentes e de militantes vem fazendo dentro do Movimento, desde há dois meses. O MPLA, que lutou sempre sinceramente pela união de todo o nacionalismo angolano, deverá continuar a dar, ele próprio, o exemplo da união dos angolanos.
– Não aceito a política de perseguição e de afastamento de militantes da secção política e da secção militar do MPLA. Essa política está errada, é odiosa, é policial. Essa política, que alguns dirigentes vem fazendo ilegalmente e arbitrariamente, baseia-se na vontade de um grupo que pretende impor ao Movimento a sua política.
– Não aceito as manobras que certos militantes vem fazendo para impor ao movimento uma direcção cujo núcleo principal seja um grupo de pessoas que fizeram longa amizade na Casa dos Estudantes do Império.
– Não aceito que não se condene a intriga e a calúnia dentro do nosso Movimento. Nem aceito que os intriguistas e os caluniadores continuem a receber apoio moral e material do Movimento, quando, por outro lado, esse apoio é negado a militantes honestos e trabalhadores.
– Não aceito a ambição exagerada de um grupo de militantes de vigésima hora.
– Não aceito o culto da personalidade dentro do Movimento. Cada dirigente deve conquistar a confiança e o respeito dos militantes, na base do seu valor pessoal e real, na medida em que ele é fiel à linha política do Movimento, na medida em que ele se dedique ao trabalho sem demagogia, e na medida em que ele respeita e faz respeitar os princípios, do nosso Movimento (CRUZ, 1962).
Apesar de longa, a citação é válida por expor praticamente todos os pontos de desacordo de Viriato da Cruz com a direção do MPLA guiada por Agostinho Neto. Ao se referir à sua discordância com a teoria da inevitabilidade do neocolonialismo em Angola, Viriato da Cruz fazia uma crítica implícita à proximidade entre Agostinho Neto e o Partido Comunista Português (PCP), vínculo que fora estabelecido ainda nos tempos em que muitos dos dirigentes do MPLA atuaram na luta contra o salazarismo em Portugal.6 Esta proximidade com o PCP sugeria, segundo Viriato da Cruz, que o MPLA seria muito influenciado pelas determinações vindas de Moscou, permitindo, portanto, o estabelecimento de uma nova dominação sobre Angola no período posterior à independência. Para Viriato da Cruz, o MPLA deveria se manter o mais independente possível dos seus colaboradores internacionais, pois esta seria a única forma de evitar o neocolonialismo em Angola.
A referência ao neocolonialismo e a uma possível influência desmedida da URSS sobre a Angola pós-independente também pode ser inserida em uma lógica geopolítica mais abrangente, envolvendo questões relativas à própria fragmentação do bloco socialista da Guerra Fria a partir do choque entre URSS e a China. Neste contexto, Agostinho Neto era claramente mais próximo aos soviéticos, enquanto Viriato da Cruz defendia a aproximação com os chineses, principalmente por considerá-los menos propícios a uma interferência direta nos assuntos dos angolanos. Vale destacar que a China Popular foi o primeiro país a estender a mão aos movimentos nacionalistas africanos, fornecendo treinamento e recursos para o início da luta armada em África.
Nos primeiros contatos do MPLA, Viriato da Cruz assumiu a dianteira das negociações com os chineses, estabelecendo uma relação privilegiada que influenciaria seus projetos para o futuro de Angola.
Nas críticas dirigidas à cúpula do MPLA, Viriato da Cruz também deixou registrado nas entrelinhas de seus argumentos uma oposição aguda aos membros do
movimento que estudaram na metrópole. Note-se que, a todo o momento, o autor do texto buscou enfatizar que aqueles que estabeleceram vínculos de solidariedade na Casa dos Estudantes do Império não teriam a mesma legitimidade para participar do MPLA como dirigentes. Transparece, neste e em outros documentos publicados no momento da crise, que Viriato da Cruz e seus aliados desconfiavam de todos os militantes que não permaneceram na colônia no período de recrudescimento do colonialismo e de todos aqueles que desfrutaram de algum benefício na estrutura colonial – neste caso, os estudos superiores na metrópole. Por estarem radicados na capital do Império no momento em que o colonialismo português intensificava a exploração de Angola, estes “militantes de vigésima hora” pareciam, para Viriato da Cruz, não conhecer de fato a realidade angolana e, por isso, não teriam a experiência e a legitimidade necessárias para assumir os cargos de dirigentes.
Esta crítica de Viriato da Cruz expunha uma característica muito marcante da formação do MPLA, isto é, a divisão entre os militantes do exterior – radicados na
metrópole durante um longo período em função dos seus estudos universitários – e os militantes do interior – corrente do MPLA que teria feito as mobilizações iniciais do movimento a partir da colônia. Esta divisão a que Viriato da Cruz se referia seria cada vez mais marcante em função do domínio da ala dos universitários ou doutores no MPLA, que acabaria por acentuar cada vez mais a divisão dentro do movimento. Sendo assim, Viriato da Cruz acusava o grupo dos universitários e doutores de estimular uma política divisionista, permitir calúnias e intrigas dentro do movimento e dar espaço para militantes ambiciosos, que colocavam suas vontades pessoais acima dos interesses do movimento e do povo angolano.
Em uma publicação de 1964, momento posterior à sua saída do MPLA, Viriato da Cruz adensou um pouco mais suas críticas ao movimento, elaborando uma análise sociológica para explicar a crise no interior do MPLA. Em “Angola: que independência…”, Viriato da Cruz analisou as consequências sociais, políticas e culturais do colonialismo português e, em termos marxistas, da inserção de Portugal em um sistema capitalista moderno que levou à intensificação da exploração das colônias africanas. Para Viriato da Cruz, o processo de assimilação, que ganhara força após o recrudescimento do colonialismo no século XIX, teve um impacto muito profundo no desenvolvimento do nacionalismo, uma vez que todos os principais dirigentes dos movimentos de libertação angolanos eram assimilados (CRUZ, 1964).
Contudo, em “Angola: que independência…”, Viriato da Cruz apontou para a heterogeneidade dos assimilados angolanos, estabelecendo uma diferenciação
socioeconômica entre dois grupos principais em função de suas experiências vividas no período colonial: os assimilados-objeto e os assimilados-destinados.
No primeiro grupo, encontram-se funcionários públicos, empregados do comércio e da indústria. Enquanto que no 2º. grupo, encontram-se aqueles que, graças a bolsas de estudo conferidas pelo Estado, pelas missões e graças à posição privilegiada das famílias, puderam especializar-se em diferentes ramos profissionais, que os levam, mesmo no contexto colonial, ao sucesso social e econômico. Devido à sua situação social, à sua educação e às funções sociais para as quais se prepararam, a maioria dos elementos deste grupo manifesta comportamentos coincidentes com os da pequena burguesia. Por outro lado, a maior parte dos “assimilados-destinados”, tendo embarcado muito jovens para Portugal, encontram-se muito integrados na sociedade portuguesa e opõem-se aos colonialistas por questão de patriotismo, de interesse ou ainda por solidariedade. Ao passo que o comportamento vital da maioria dos “assimilados-objecto” recusam o colonialismo por estarem eles próprios submetidos à exploração colonial (CRUZ, 1964).
A crítica aos assimilados-destinados era diretamente dirigida à elite política e intelectual do MPLA que, segundo Viriato da Cruz, se beneficiara de muitos privilégios que lhe foram possibilitados pela estrutura colonial. Desfrutando então de uma melhor condição socioeconômica, os assimilados-destinados teriam, ainda segundo Viriato da Cruz, se afastado gradativamente das massas negras vindas do campo que chegavam aos musseques de Luanda. Ao mesmo tempo, os assimilados-objeto teriam se aproximado destes indivíduos, principalmente por serem vítimas de uma decadência socioeconômica estimulada pela intensificação do colonialismo português (CRUZ, 1964a). Nota-se, então, a crítica bastante ácida ao MPLA, que seria liderado por um pequeno grupo de intelectuais que teria se beneficiado da estrutura colonial e que excluía as massas angolanas da participação no movimento.
Atente-se também para o fato de que os assimilados-objeto seriam muito mais próximos das massas negras, ao passo que os assimilados-destinados delas se afastavam por serem mais próximos aos portugueses, portanto, aos brancos e mestiços. Sendo assim, o problema racial voltava a ser apontado como uma questão que, de certa forma, era relacionada à legitimidade das lideranças do MPLA, pois, por não se aproximarem das massas negras, Agostinho Neto e seus pares acabavam empreendendo uma política elitista e interesseira segundo a análise de Viriato da Cruz. Desta maneira, não se chegava a excluir os assimilados-destinados da nacionalidade angolana, mas, através deste discurso, Viriato da Cruz apontava para a formação de uma elite angolana que lutava por açambarcar o poder do povo, mantendo-o dominado e excluído dos benefícios que se esperava alcançar através da independência de Angola, tal como ocorrera durante
o período colonial.
Por fim, Viriato da Cruz ainda dirigiu uma crítica bastante direta à política empreendida por Agostinho Neto desde que este assumira a presidência do MPLA.
Segundo ele, em “Aos camaradas militantes do MPLA e do EPLA”, o autoritarismo do presidente acabaria intensificando os problemas internos no movimento e aumentando o domínio de seu restrito grupo de amigos, uma vez que perseguições e afastamentos teriam se tornado práticas comuns no MPLA (CRUZ, 1962).
Além do autoritarismo de Agostinho Neto, Viriato da Cruz criticava o culto à personalidade do presidente, que o MPLA fez surgir entre os angolanos (CRUZ, 1962).
Sabe-se que o movimento construiu, durante muito tempo, uma imagem positiva sobre Agostinho Neto, ressaltando que este seria o único indivíduo capaz de liderar a luta pela independência de Angola. Viriato da Cruz sugeria ainda que este mito construído sobre a imagem de Agostinho Neto não correspondia à realidade, sendo que o presidente deveria se esforçar para conquistar o respeito, o apoio e a confiança da base do movimento para que tivesse a legitimidade necessária para liderar a luta anticolonialista.
Ainda em “Aos Camaradas militantes do MPLA e do EPLA”, Viriato da Cruz pedia que se realizasse um Congresso Nacional do movimento para discutir as questões polêmicas que foram apresentadas nesta publicação. Fazia ainda uma ressalva sobre a composição deste congresso, que não poderia ser organizado somente pelos dirigentes ligados a Agostinho Neto, sob o risco de se perpetuar uma dominação ilegítima no MPLA. Para evitar que isso acontecesse, Viriato da Cruz defendeu que todos os setores que compunham o movimento tivessem representação e pudessem se expressar no congresso (CRUZ, 1962).
Esta última sugestão de Viriato da Cruz seria concretizada pouco após a publicação do documento acima referido, quando o Comitê Diretor convocou a Primeira
Conferência Nacional do MPLA, iniciada em 1 de dezembro de 1962. Propunha-se, nesta conferência, “a discussão da linha política e do programa de acção do MPLA”, com o objetivo de “formar o corpo duma doutrina política, sem sectarismo, que aclare toda a acção do militante”. (ANDRADE, 1962) Para isso, a Primeira Conferência Nacional do MPLA contou com a participação das organizações lideradas pelo movimento, tais como o Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA), a Organização das Mulheres Angolanas (OMA), a Juventude do MPLA (JMPLA), o CVAAR e os Comitês de Ação, sendo todos os delegados destas organizações convidados a intervir livre e democraticamente no curso das discussões propostas ao longo do encontro, de maneira que os resultados alcançados fossem “de facto a expressão da vontade de todos os militantes do MPLA” (ANDRADE, 1962).
A Primeira Conferência Nacional do MPLA, entre outras discussões, também se debruçou sobre a questão racial angolana, principalmente no que se referia à polêmica proposta de reformulação do Comitê Diretor efetuada em maio de 1962. Apesar de não dispormos das atas da Conferência, podemos analisar os resultados das discussões a partir de um comunicado publicado pelo MPLA que informava às bases do movimento as decisões tomadas naquele evento. Ressalte-se que, nesta Conferência, todas as questões apontadas acima – ideologia, escolaridade, percurso político, legitimidade para exercer o poder – permearam a discussão sobre a questão racial.
Formalmente, a Primeira Conferência Nacional do MPLA não modificou as linhas definidas no Manifesto do MPLA sobre a questão racial em Angola, pois
reafirmou que o movimento era “categoricamente contra o tribalismo, o regionalismo, o sectarismo, e a intolerância racial e contra as distinções de carácter político e religioso”, deixando transparecer o discurso identitário que dava base ao MPLA desde seus primórdios (MPLA, 1962 B).
Entretanto, apesar desta definição formal, a questão do recuo estratégico proposto por Viriato da Cruz não foi ratificada pela Primeira Conferência Nacional do MPLA, definindo, então, uma vitória de Agostinho Neto e de seus correligionários. Evidencia-se este fato através da nova formação do Comitê Diretor do MPLA definido na Primeira Conferência Nacional do movimento:
Quadro 2
Comitê Diretor saído da Primeira Conferência Nacional do MPLA
(Nome – Raça – Estudos – Funções)
Agostinho Neto – Negro – Superiores – Presidente
Matias Miguéis – Negro – Médios – 1º. Vice-presidente
Reverendo Domingos da Silva – Negro – Médios – 2º. Vice-presidente
Manuel Lima – Negro – Superiores – Chefe doDepartamento de Guerra
Mario de Andrade – Mestiço – Superiores – Chefe do Departamento de Relações Exteriores
Lúcio Lara – Mestiço – Superiores – Chefe do D. de Organização e Quadros
Aníbal de Melo – Mestiço – Médios – Chefe doDepartamento de Informação.
Deolinda Rodrigues – Negra – Médios – Chefe do Departamento de Assistência Social
Desidério da Graça – Negro – Superiores – Chefe do Departamento de Finanças
Henrique “Iko”Carreira – Mestiço – Superiores – Chefe do Departamento de Segurança
Destaca-se desta nova composição do Comitê Diretor do MPLA saído da Primeira Conferência Nacional o ingresso de três mestiços em cargos importantes do
órgão, cabendo a Lúcio Lara a chefia do Departamento de Organização e Quadros, a Aníbal de Melo a chefia do Departamento de Informação e a Henrique “Iko” Carreira a chefia do Departamento de Segurança. Somado a isso, manteve-se a presença do mestiço Mário Pinto de Andrade no Comitê Diretor, mas agora com a função de chefiar o Departamento de Relações Exteriores do movimento. Por fim, em função de seu posicionamento contrário ao Comitê Diretor do MPLA, Viriato da Cruz perdeu seu cargo no Comitê Diretor.
Vale ressaltar que a lógica que guiou a Primeira Conferência Nacional do MPLA inviabilizava a coabitação das duas tendências principais que mediam forças no
movimento, impedindo assim que a ala liderada por Viriato da Cruz pudesse continuar com alguma força, já que o grupo de Agostinho Neto saiu vencedor e tomou para si os principais cargos do Comitê Diretor. Isso explica, então, a manutenção da exclusão de Viriato da Cruz da nova composição do órgão, mesmo que a sua mestiçagem não fosse um problema para o ingresso neste órgão segundo as posições defendidas pela corrente liderada por Agostinho Neto. Sendo assim, a disputa interna do MPLA, levou gradativamente à marginalização de Viriato da Cruz e seus aliados, o que se tornaria cada vez mais claro nos meses seguintes à Primeira Conferência Nacional do MPLA.
É importante notar que os quadros do movimento que tinham um percurso fora de Angola e com cursos superiores também foi um dos filtros que influenciou a
composição do novo Comitê Diretor do MPLA, de forma que a rivalidade entre universitários e não-universitários apontadas nas críticas de Viriato da Cruz foi
solucionada em favor daqueles dirigentes que tiveram a possibilidade de cursar o ensino superior em países europeus e se mantiveram por um longo período afastados da colônia e, consequentemente, das mazelas do colonialismo.
A partir de então, Viriato da Cruz se tornaria um dos mais ferrenhos opositores do Comitê Diretor formado por Agostinho Neto, apesar de continuar vinculado ao MPLA. Alguns meses depois da Primeira Conferência Nacional, Viriato da Cruz publicaria novos documentos criticando os rumos que foram tomados pelo MPLA.
Após a Primeira Conferência Nacional do MPLA, o enfraquecimento da ala liderada por Viriato da Cruz foi intensificado, ao passo que a ala de Agostinho Neto
consolidava seu domínio. Uma vez que não havia a possibilidade de coexistência entre as duas correntes políticas, Viriato da Cruz iniciou um processo que levaria ao rompimento total do vínculo entre seu grupo e o Comitê Diretor do MPLA. Um dos primeiros grandes atos de Viriato da Cruz foi a publicação de “Proclamação aos membros do Movimento Popular de Libertação de Angola”, onde anunciou que uma Assembleia Nacional Soberana, composta somente pelos partidários que concordavam com suas ideias, havia se reunido em 5 de julho de 1963 e decidiu:
Retirar toda a autoridade do Comitê Diretor até agora à testa do Movimento, o qual deverá ser imediatamente substituído;
Eleger um Comitê pela Unidade e pela Cooperação, o qual deverá ser mandatado para:
1. Acabar com as divisões no seio do MPLA;
2. Associar o MPLA à FNLA, preservando no entanto sua autonomia;
3. Apoiar o GRAE e dar uma solução ao problema da participação do MPLA nos órgãos do GRAE;
4. Convocar um congresso do MPLA, num prazo máximo de 3 meses, o qual deverá eleger novos órgãos dirigentes do Movimento;
5. Exigir ao Comitê Diretor destituído a entrega de todos os bens e valores do MPLA e uma Comissão que para esse fim será mandatada pelo novo Comitê Diretor (CRUZ, 1963).
Assinavam o documento Matias Miguéis, João Bernardo Domingos, Viriato da Cruz, George Manteya Freitas, José Miguel e Antônio Alexandre, que foram eleitos
membros do novo executivo supremo do MPLA pela Assembleia Nacional Soberana.
O rompimento radical com o Comitê Diretor liderado por Agostinho Neto é bastante nítido neste pequeno texto, assim como foi curta e direta a resposta do Comitê Diretor do MPLA liderado por Agostinho Neto, que negava a legitimidade da Assembleia Soberana Nacional, declarando que:
O Comitê Diretor, órgão executivo supremo do MPLA, […] decide expulsar os senhores
José Bernardo Domingos
Viriato da Cruz
Matias Miguéis
José Miguel (MPLA, 1963a).
Além da pretensa retirada de autoridade do Comitê Diretor, merece destaque a proposta de Viriato da Cruz de preparar a unidade com a FNLA, apesar de este projeto já ter sido tentado diversas vezes até o momento. Por considerar a FNLA e Holden Roberto agentes do imperialismo norte-americano, o Comitê Diretor se recusava à unidade e considerou a aproximação entre Viriato da Cruz e a FNLA como uma grande
traição aos princípios do MPLA.
Vale ressaltar que o gradual afastamento entre MPLA e FNLA também foi estimulado por Viriato da Cruz enquanto este fez parte do Comitê Diretor do
movimento. Nota-se, então, que a busca por uma base de apoio mais sólida era uma das necessidades políticas de Viriato da Cruz, mesmo que as possibilidades de se chegar a uma conciliação fossem improváveis.
Formalizava-se, assim, a ruptura entre os grupos liderados por Viriato da Cruz e Agostinho Neto. Entretanto, apesar do comunicado do Comitê Diretor, Viriato da Cruz e seus partidários continuariam afirmando ser membros do movimento, agora usando a designação “MPLA – ala Viriato da Cruz”.
Nos dias seguintes à expulsão formal da ala Viriato da Cruz, novos conflitos sacudiriam as estruturas do MPLA, envolvendo disputas diplomáticas, estratégicas e
inclusive confrontos físicos entre as partes. Ao anunciar a expulsão da ala Viriato da Cruz, o MPLA convocou os membros do movimento para uma reunião em 7 de julho de 1963 na sede do CVAAR, em Léopoldville.
Esta reunião foi palco de um dos mais intensos conflitos ocorridos entre os partidários de Agostinho Neto e os de Viriato da Cruz. Em “Relato dos acontecimentos do MPLA”, texto sem assinatura, mas certamente escrito por um dos correligionários de Viriato da Cruz, há informações preciosas sobre incidentes envolvendo militantes do MPLA:
Em 7-7-1963 (domingo) os expulsos da véspera, foram à reunião. Às 10:20 horas, quando Navias [Matias] e José Domingos iam a entrar no salão do CVAAR, os guardas da porta (militares do EPLA) negaram-lhes a entrada. Matias ao opor-se à recusa de o deixarem entrar, recebeu um soco de um militar do EPLA. Borborinho. O soldado do EPLA, Salvador da Conceição, tirou uma pistola e apontou-a a Zé Domingos. Enquanto lutava com Salvador, Matias foi apunhalado nas costas. Imediatamente iniciou-se uma luta a socos e ponta-pés, entre cerca de 70 membros do MPLA. Os partidários do grupo Dr. Neto acabaram por fugir […] (SEM AUTOR, 1963).
O desenvolvimento do problema acima relatado gerou ainda algumas prisões pela política congolesa entre os partidários de Viriato da Cruz. Segundo o relato apresentado acima, mais de quarenta militantes do MPLA que discordavam das posturas de Agostinho Neto foram presos, inclusive Viriato da Cruz, Matias Miguéis, José Domingos e José Miguel, que foram acusados de ter um arsenal de guerra escondido em Léopoldville. Sugere-se que a denúncia teria sido feita pela ala liderada por Agostinho Neto. A libertação destes quatro militantes só teria sido viabilizada em função da interferência de autoridades congolesas na questão (SEM AUTOR, 1963).
O conflito relatado no documento só pode ser compreendido levando-se em conta o contexto de crise que o MPLA vivia àquela altura e relacionando-o ao dilema que o movimento vivia ao se aproximar a visita da Comissão de Conciliação da Organização da Unidade Africana (OUA). Esta promoveria uma reunião entre FNLA e MPLA para definir qual deles seria reconhecido como principal movimento de libertação de Angola e deveria liderar a luta contra o colonialismo português. Este apoio da OUA significava, em última instância, excelentes possibilidades ao desenvolvimento do movimento, pois seriam facilitados os contatos diplomáticos, o financiamento e o fornecimento de armamentos para levar adiante a luta pela independência de Angola.
Sendo assim, a disputa entre os partidários de Agostinho Neto e Viriato da Cruz ainda ganhava maior importância neste contexto, uma vez que a visita da Comissão de Conciliação da OUA poderia definir os rumos que o movimento trilharia dali para frente. Portanto, controlar os escritórios e os bens do movimento, assim como ter o apoio dos militantes treinados para fazer a guerra de libertação, era questão central para que o movimento conseguisse se impor como o único capaz de liderar a luta contra o colonialismo português. A disputa entre as alas lideradas por Agostinho Neto e Viriato da Cruz também teria lugar na própria Comissão de Conciliação.
Vale ressaltar que, naquele momento, tudo indicava que a FNLA seria reconhecida como principal movimento anticolonial angolano, pois dispunha de uma estrutura melhor organizada, ao passo que o MPLA passava por uma gravíssima crise interna que resultara na divisão do movimento e na dissidência de Viriato da Cruz, um dos líderes mais importantes do movimento àquela altura.
Tendo em vista este contexto extremamente desfavorável, o MPLA – ala Agostinho Neto iniciou, concomitantemente ao processo de expulsão de Viriato da Cruz
e seus pares, a formação de uma nova organização que pudesse fazer frente à FNLA.
Para isso, o Comitê Diretor tentou construir uma frente que agregasse outros movimentos anticolonialistas angolanos para dar mais legitimidade ao MPLA, já que as estruturas do movimento seriam expandidas através da criação da Frente Democrática de Libertação de Angola (FDLA), seja em número de militantes seja em importânciapolítica.
Mesmo sendo uma decisão política de extrema importância, a criação da FDLA foi acordada apressadamente por alguns dirigentes do MPLA, sem que houvesse uma discussão mais aprofundada com as bases ou mesmo com toda a cúpula política do movimento. Sendo assim, em 8 de julho de 1963, às vésperas da visita da Comissão de Conciliação da OUA, o MPLA capitaneou a formação da FDLA, englobando alguns movimentos que um pouco antes eram acusados pelo MPLA de conservadorismo, tribalismo e proximidade com interesses dos portugueses, como o Movimento de Defesa dos Interesses de Angola (MDIA), o Movimento Nacional Angolano (MNA), o Ngwizako e a União Nacional dos Trabalhadores Angolanos (UNTA). Nas palavras de Lúcio Lara, a FDLA foi formada da seguinte maneira:
[…] a gente se serviu de alguns partidecos, tribalistas, a bem da verdade, sim, do norte. Alguns deles tinham estado a serviço dos portugueses, mas que apareceram a nós como dissidências dos partidos (LARA apud BITTENCOURT 2002, p.217).
No documento de fundação da FDLA, declarava-se a necessidade de combater a imagem enganosa que se formara sobre o MPLA e principalmente o objetivo de unir os mais diversos povos angolanos residentes no interior do país, que pouco eram representados nos movimentos nacionalistas (MPLA, 1963).
É necessário ressaltar aqui que o discurso identitário oficialmente assumido pelo MPLA não era condizente com as posturas políticas e identitárias destes pequenos movimentos que se uniram na formação da FDLA. Entretanto, em um momento de crise e necessidade de legitimação internacional, a formação desta nova frente anticolonialista pouco se importou com as contradições internas que poderiam surgir na FDLA.
Formada a nova frente anticolonialista sob as circunstâncias descritas acima, a nova organização buscou ser ouvida pela Comissão de Conciliação. Entretanto, no
primeiro dia de reuniões, Holden Roberto apresentou seu relatório sobre a situação do nacionalismo angolano e da FNLA, respondendo às questões que lhe fizeram. Neste primeiro encontro, Agostinho Neto não se pronunciou, pois queria fazê-lo em português, o que a Comissão não aceitou e exigiu seu pronunciamento em francês ou inglês. A situação que se criou na reunião, segundo John Marcum, foi extremamente favorável à FNLA, buscando prejudicar a atuação de Agostinho Neto na Comissão de Conciliação (MARCUM, 1978).
Somente no segundo dia de reuniões da Comissão de Conciliação Agostinho Neto tomou a palavra. Entretanto, ao começar a ler seu relatório em nome da FDLA, foi interrompido pelo presidente da Comissão, que não permitiu que Agostinho Neto se pronunciasse em nome da organização, uma vez que aquela reunião tinha como objetivo central aproximar FNLA e MPLA.
Após uma longa insistência de Agostinho Neto para que fosse ouvido como líder da FDLA, a Comissão fez uma pausa para decidir, a portas fechadas, sobre a questão. Neste momento, Viriato da Cruz, que estava assistindo à reunião, escreveu uma carta à Comissão reivindicando que ele fosse ouvido em nome do Comitê Provisório do MPLA.
Por fim, a Comissão de Conciliação insistiu que Agostinho Neto não poderia falar em nome da FDLA e, já que este se recusava a se pronunciar em nome do MPLA, outro representante do movimento o faria, pois havia chegado uma carta à Comissão assinada pelo Comitê Diretor Provisório do movimento. Ao saber que os signatários da carta estavam presentes, a Comissão de Conciliação chamou Viriato da Cruz a assumir o lugar de Agostinho Neto e lhe pediu que, na qualidade de legítimo representante domovimento, explicasse a situação interna do MPLA.
O que se seguiu foi um relato de Viriato da Cruz, replicado por Agostinho Neto, sobre a situação do MPLA e as críticas que ambos trocavam na Comissão de
Conciliação. O resultado desta discussão pública dos problemas internos do movimento foi bastante prejudicial ao MPLA, não só por expor a instabilidade do movimento naquele momento de crise, mas também por evidenciar a dificuldade de Agostinho Neto em comprovar os números referentes aos guerrilheiros sob seu comando e as ações práticas feitas sob sua liderança pelo MPLA (SEM AUTOR, 1963).
O relatório apresentado pela Comissão de Conciliação foi extremamente negativo para o MPLA, pois recomendava que todo o apoio dado à luta de libertação angolana fosse feito através do Congo-Léopoldville e reconhecia a FNLA como única frente de combate pela independência de Angola. O relatório sugeria ainda que todos os outros movimentos anticolonialistas angolanos se unissem e se submetessem à FNLA (BITTENCOURT, 2002. p.219).
Entretanto, os problemas do MPLA ainda estavam longe de acabar e, no final do mês de julho, uma nova dissidência de peso afetaria os rumos do movimento. Por não concordar com a atitude de formar a FDLA sem a devida consulta às bases do movimento e sem uma discussão aprofundada da direção sobre o tema, Mário Pinto de Andrade anunciou sua saída do movimento (ANDRADE, 1964). Sendo assim, fortalecia-se ainda mais no interior do MPLA a ala liderada por Agostinho Neto, já que Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, dirigentes de grande peso político nas decisões internas, haviam se desligado do movimento.
Após a visita da Comissão de Conciliação e as dissidências de Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade, portanto, o MPLA acabou se enfraquecendo. Engolido pelos reveses das dissidências internas e do fracasso na reunião da Comissão de Conciliação, o MPLA decidiu se transferir para Brazzaville. A FNLA, portanto, se fortalecia cada vez mais, o que ficaria ainda evidente com a adesão do MPLA – ala Viriato da Cruz às estruturas do movimento liderado por Holden Roberto.
Viriato da Cruz considerava a FNLA como o único movimento angolano com bases rurais, o que se aproximava de sua tendência ideológica maoísta e facilitava o
estreitamento de laços com a China. Sendo assim, a integração do MPLA – ala Viriato da Cruz à FNLA mostrava sua intenção de iniciar uma luta armada a partir das massas camponesas, espaço onde o MPLA não tinha grande adesão.
Todavia, os interesses de Viriato da Cruz na FNLA certamente eram conflitantes com as posturas assumidas por Holden Roberto, que não deixaria que o grupo recémingresso ditasse as regras e dominasse o seu movimento. Por haver tantas discordâncias com Viriato da Cruz, a entrada deste grupo na FNLA sofreu forte oposição, principalmente de Jonas Savimbi, que, àquela altura, era um dos dirigentes mais destacados da organização.
A aceitação do grupo de Viriato da Cruz só ocorreu a partir de uma intervenção direta de Frantz Fanon, figura próxima a Holden Roberto. Pesaram na decisão de aceitar o MPLA – ala Viriato da Cruz os seguintes fatores: (i) a FNLA apareceria internacionalmente como o principal articulador da unidade do nacionalismo angolano; (ii) as boas relações estabelecidas entre Viriato da Cruz e a China Popular poderiam sugerir uma aproximação entre FNLA e os chineses, o que interessava ao movimento, já que os EUA, principal apoiador internacional do movimento, estava se aproximando diplomaticamente de Portugal; (iii) o grupo de Viriato da Cruz aumentaria o potencial militar da FNLA (ROCHA, SOARES, FERNANDES, 2008, p.172). Pesados os argumentos favoráveis e contrários, o MPLA – ala Viriato da Cruz foi incorporado pela FNLA em abril de 1964.
A adesão do MPLA – ala Viriato da Cruz à FNLA foi divulgada em um breve comunicado do GRAE em 20 de abril de 1964, adesão que foi aprovada por
unanimidade pelo Conselho Nacional da FNLA. No próprio comunicado, já se evidenciava uma questão que seria importante na relação entre o grupo de Viriato da Cruz e a FNLA :
Este facto [adesão do MPLA – ala Viriato da Cruz à FNLA]
corresponde ao espírito da Convenção da FNLA a qual, no seu artigo II,
recomenda a inclusão de todas as organizações representativas do Povo
Angolano que aceitem a política geral da FNLA (GRAE, 1964).
É importante notar a ressalva feita sobre a aceitação da política geral da FNLA pelo grupo liderado por Viriato da Cruz, já que certamente Holden Roberto não estava disposto a modificar as estruturas de seu movimento para se adequar à chegada do novo grupo que ingressava nas fileiras da FNLA.
Entretanto, Viriato da Cruz pensava ser necessário corrigir alguns problemas da FNLA, tais como a superação do tribalismo dentro do movimento, a ausência de uma ideologia revolucionária coerente e bem definida e, por fim, a ligação estreita entre a FNLA e os EUA. Tratava-se, em suma, de fazer uma transformação radical do movimento a partir dos princípios defendidos por Viriato da Cruz e seus pares (ROCHA, SOARES E FERNANDES, 2008, p.169).
Sabendo que Viriato da Cruz pretendia se impor sobre o movimento, Holden Roberto tratou logo de diminuir a importância do grupo que acabara de ingressar nas fileiras da FNLA. É necessário mencionar que a FNLA manipulava habilmente o racismo entre os membros de sua base, de maneira que a presença de Viriato da Cruz, um mestiço vindo do MPLA, não foi bem aceita pelas massas em que a FNLA tinha maior inserção. Por fim, ainda vale ressaltar que havia um desconforto entre os dirigentes do movimento em relação à presença de Viriato da Cruz, antigo rival de muitos nacionalistas ali presentes.
Sendo assim, em pouco tempo, Viriato da Cruz entrou em rota de colisão com Holden Roberto. Ao perceber que não teria grande espaço político na FNLA e notar que a situação de conflito com MPLA estava cada vez mais séria, o que colocava a sua vida em risco, Viriato da Cruz decidiu se retirar de Angola e romper os vínculos com a FNLA. Este temor mostrou-se justificado em 1965, quando Matias Miguéis e José Miguel foram executados pelo MPLA no Congo-Brazzaville sob acusação de alta traição. Após uma breve permanência na Argélia, Viriato da Cruz se mudou para a China, onde pensava ter possibilidades de conseguir apoio para continuar a luta pela independência de Angola, fato que não se concretizou até a sua morte em 1973.
Considerações finais
Uma vez apresentada a crise que levou à cisão entre o MPLA e o grupo comandado por Viriato da Cruz, é possível perceber que a questão identitária em Angola,
pelo menos até aquele momento (1962-1964), ainda era um problema bastante sério nas fileiras do MPLA e também em Angola como um todo. Como vimos, esta crise foi iniciada através da argumentação exposta por Viriato da Cruz de que os mestiços não deveriam atuar na linha de frente do MPLA, pois tanto as massas quanto a UPA poderiam acusar o movimento de não representar o povo angolano, identificado majoritariamente com os negros. Logo de início, portanto, a questão racial se apresentou como um problema a ser solucionado dentro do MPLA.
A preocupação apontada por Viriato da Cruz de que as massas angolanas não se sentiriam representadas em um movimento liderado por mestiços, apesar de ser uma análise pessoal, demonstra um pensamento corrente à época sobre a questão racial entre os angolanos. Atingidas cada vez mais pelo recrudescimento do colonialismo, as massas pareciam, de fato, ver na questão racial um dos fatores que definiam a identidade nacional, sendo os angolanos identificados como negros. A definição de identidade nacional elaborada nas décadas de 1940 e 1950 pelos movimentos culturais luandenses, ao defender a união de todos os angolanos sem quaisquer distinções, não parecia, então, ter uma adesão absoluta entre as massas angolanas.
Entretanto, mesmo compreendendo a importância da argumentação de Viriato da Cruz, Agostinho Neto se valeu da definição de identidade nacional exposta nos
documentos fundadores do MPLA para tirar a legitimidade da proposta de remodelação do Comitê Diretor, pois fazê-lo seria cair em contradição com os princípios do movimento, que defendia que não se fizesse qualquer diferença entre os angolanos baseadas em raça, etnia, religião, ideologia etc. Negava-se, pois, a validade da questão racial como um fator mobilizador para a luta anticolonial em Angola ao se insistir em um argumento identitário que não fazia distinções entre quaisquer angolanos.
Estabelecido o rompimento entre Agostinho Neto e Viriato da Cruz, as críticas deste foram aprofundadas e expandidas para outras áreas que iam além da questão racial, entre elas a vivência durante o período colonial. Viriato da Cruz, então, expôs sua argumentação com base em um estudo sociológico que dizia serem os líderes do MPLA indivíduos beneficiados historicamente pelo colonialismo, o que lhes distanciava das massas negras angolanas, que só teriam conhecido a face mais perversa desta dominação.
Por terem vivido sob uma situação de privilégio durante o colonialismo, os líderes do MPLA que se opunham a Viriato da Cruz não teriam, segundo ele, a legitimidade para liderar a luta pela independência de Angola, tampouco para colaborar com a construção da nação. Portanto, Viriato da Cruz associava o posicionamento histórico dos assimilados à questão racial para tirar a legitimidade dos seus opositores na direção do
MPLA.
Entretanto, mesmo tecendo duras críticas à direção do MPLA, ao fim da crise e com seu rompimento definitivo com o movimento, Viriato da Cruz acabou se aliando à FNLA, movimento que fora duramente criticado por ele e pelo MPLA por ter bases étnicas muito nítidas. Ora, o mesmo Viriato da Cruz, enquanto fazia parte da direção do MPLA, contribuiu para elaborar a crítica de bases étnicas à FNLA, o que causava estranheza ao se tornar pública sua aliança com este movimento.
Da mesma maneira, o MPLA também se aliaria a movimentos de bases tribalistas ao formar a FDLA, alianças estas que causariam o afastamento de Mário Pinto de Andrade. Nesta ocasião, nada foi falado abertamente sobre a aliança com os grupos que compunham a FDLA, o que demonstrava uma necessidade da direção do MPLA passar por cima da argumentação identitária que outrora lhe servira para criticar seus adversários no campo do nacionalismo angolano. Não havia, portanto, qualquer problema em contradizer o princípio identitário defendido pelo MPLA, já que os demais movimentos que compunham a FDLA sempre foram acusados de tribalismo, regionalismo e conservadorismo, o que reforça a ideia aqui defendida de instrumentalização dos discursos identitários em função de necessidades políticas.
Podemos considerar, então, que a argumentação com base na identidade nacional angolana se tornou, àquela altura, um importante capital político para deslegitimar oponentes. Entretanto, mesmo servindo de base para atacar os oponentes, a definição de identidade nacional não foi tão respeitada quando não interessava politicamente, como pode ser observado pela formação da FDLA e pela aliança entre Viriato da Cruz e a FNLA. Havia, em suma, uma maleabilidade em relação à identidade nacional definida principalmente pelos interesses políticos.
Portanto, a identidade nacional angolana, mesmo que definida com clareza nos documentos fundadores do MPLA, ainda era um ponto de intensa disputa, servindo também como um valioso capital político entre as partes em contenda. Percebe-se, enfim, que questões bastante elementares ainda eram bastante sujeitas às variações políticas e aos interesses pessoais dentro do MPLA.
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