ANGOLA: A “LOUCURA” DOS GRANDES

Por René Backmann

Sob as robustas asas azuis do «Skyvan», que baloiça nas pri­meiras turbulências do dia co­mo um peso pesado sobre um prato falso, um ondulante pano­rama de verdes e castanhos desdobra-se sem fim, há mais de uma hora. Um dedo sobre a car­ta, outro varrendo as amplas ru­gas da savana, onde corre o fio ocre e rectilíneo de uma pista, o copiloto grita, por entre o barulho dos dois turbopropulsores: «Samba Caju, Malanje».

Dois mil e quinhentos metros abaixo do avião, a Frente Norte passa algures, entre essas duas aglomerações, distantes cento e trinta quilómetros entre si. On­de, exactamente? Ninguém nos pôde dizê-lo, antes da partida, em Luanda. Ninguém saberá, mesmo agora, na escala de Cafungo, à beira do rio Cuango, onde o avião deixa um enfermei­ro e provisões para os prospecto­res da Diamang e engole o con­teúdo de alguns barris de gasoli­na empilhados no fim da curta pista de terra batida. Mas nós sabemos que, para poder desco­lar, o piloto teve de esperar, esta manhã, que o próprio ministro dos Transportes apusesse a sua própria assinatura no plano de vôo.

Nesta guerra múltipla, de con­tornos imprecisos, com frentes dispersas e móveis, as linhas de comunicação são tão longas e ténues, os filtros técnicos e políticos tão numerosos que as informações seguras se contam, numa semana, pelos dedos de uma só mão. Tão difíceis de ar­rancar ao silêncio opaco dos res­ponsáveis militares como os dia­mantes brancos aos aluviões do Cuango ou do Luachimo.

Que pretende encontrar e onde deseja ir? – perguntara-me, uma semana antes, entregando­me uma credencial e um «salvo-conduto», uma funcionária do Ministério da Informação. Eu tinha preenchido, conscienciosa­mente, um longo questionário policopiado, indicando os no­mes de uma meia dúzia de res­ponsáveis militares, políticos e económicos que queria interro­gar, e indicando que desejava deslocar-me às frentes Norte e Sul e também ao Luso, na frente Leste. De acordo. Logo que al­guma coisa seja possível, será avisado, no seu hotel.

Deixei Luanda, depois de duas semanas de estadia, sem ter obtido uma só das autori­zações que pretendia. Sem ter conseguido, por exemplo, inter­rogar o ministro da Defesa, «Iko» Carreira. Iko? Encontrá-lo-á no Estado-Maior. No Estado-Maior, no meio de uma praça roxa, à saída da cidade, semeado de abrigos e de bate­rias antiaéreas, não é possível encontrar «Iko». Nem na antiga escola inglesa, transformada em Q.G. operacional, nem na viven­da que um soldado me indica.

Nâo é de espantar, diz-me um comandante de passagem, em direcção ao Ministério da Informação. O Estado-Maior vai ser transferido para a fortale­za de São Miguel.

A fortaleza de São Miguel é o polígono amarelo que domina a baía de Luanda. Foi aí que, no dia 10 de Novembro, à tarde, algumas horas antes da procla­mação oficial da independência por Agostinho Neto, presidente da jovem República Popular de Angola, o último alto-comis-sário português, almirante Leonel Cardoso, recolheu a bandei­ra portuguesa, diante dos pára-quedistas em sentido. Atrás des­sas grossas muralhas, velhas de três séculos, os portugueses ti­nham instalado o Q.G. das suas forças expedicionárias. Nos so­fás da «sala de operações», dian­te de enormes mapas salpicados de alfinetes multicores, encon­tram-se agora os comandantes da zona do Exército angolano – a caça transformada em caçador.

«Iko» porém, não está lá. Tal como não se encontra na Vila Alice, um bairro de vivendas opulentas, bordado de manguei­ras, na parte oriental da cidade, onde se juntaram, contra todas as regras de segurança, os gabi­netes e os apartamentos dos principais quadros do Movimen­to Popular de Libertação de An­gola (M.P.L.A.). Tentativas de entrevistas com os ministros da Economia, do Interior, dos Ne­gócios Estrangeiros resultam igualmente infrutíferas. Nâo se esqueça de que estamos em guer­ra e que o nosso Governo acaba de se instalar — explica-me Luís de Almeida, director da In­formação, reconhecendo, contu­do, triste e sinceramente desola­do, que «alguma coisa não está bem na Informação», quando me queixo de chocar em toda a parte contra um mosaico de indiferença, ignorância ou impo­tência. Nunca recusas categóri­cas, mas sim promessas vagas, certezas fluídas: a indolência portuguesa multiplicada pelo torpor quente e húmido da Afri­ca Austral.

É preciso, pois, debruçarmo-nos sobre os dois jornais diários de Luanda, o «Jornal de Angola», pela manhã, e o «Diário de Luanda», à tarde, e seguir as conferências de Imprensa do comandante Juju, comissário político do Estado-Maior e por­ta-voz oficial das Forças Arma­das, para seguir de longe, o de­senrolar da guerra e o nascimen­to, doloroso, do novo Estado.

Duas vezes maior do que a França, catorze vezes e meia maior do que Portugal, este quadrilátero compacto, descoberto, em 1482, pelo navegador português Diogo Cão, transformou-se, agora, numa charneira decisi­va da geopolítica africana. De­pois do acesso à independência, em Junho último, da República Popular de Moçambique, o esta­belecimento de uma Angola pro­gressista, no lado ocidental do continente africano, perturbaria aos olhos dos ocidentais, o equilíbrio político na Africa Austral. Obstáculos aos expansionismos zairense e sul-africano, bases recuadas possíveis para os movimentos de libertação da Africa do Sul, testas de ponte para a penetração da influência soviética, as duas antigas co­lónias portuguesas, e em particu­lar Angola, são, pois, os objecti­vos de uma partida diplomática e política cujos limites, ultrapas­sam largamente os da Africa.

Tanto mais que Angola tem outros trunfos, além da sua po­sição estratégica. O subsolo regorgita de diamantes, fosfato, co­bre, zinco, níquel e petróleo. Quando a isso se junta uma mui­to importante produção de café (quarto lugar mundial), açúcar, tabaco e algodão, compreende-se que, desde há anos, os capi­tais americanos, sul-africanos, franceses, belgas, brasileiros, ale­mães e britânicos tenham vindo «trabalhar» em Angola e benefi­ciar do «boom» económico, sob a protecção do Exército colonial português.

A página colonial não tinha ainda sido voltada quando a guerra civil se sucedeu à luta de libertação
Livre da guerra, este país de seis milhões de habitantes, que se estende das margens do Congo aos confins abrasadores do deserto de Kalahari, poderia tor­nar-se, rapidamente, ao lado da Nigéria, da Africa do Sul e do Zaire, uma das principais po­tências africanas. Mas a página colonial não tinha ainda sido voltada quando a guerra civil se sucedeu à luta de libertação.

Ao contrário do que aconte­ceu na Guiné-Bissau, ou em Moçambique, onde um só movi­mento de libertação encarnava a vontade popular, em Angola, três organizações participaram, mais ou menos activamente ou tardiamente, na luta peia inde­pendência. O primeiro, por or­dem cronológica, é o Movimen­to Popular de Libertação de An­gola, M.P.L.A., fundado em 1956, em Luanda [da fusão de vários pequenos grupos anti-coloniais, inclusive da recentemente constituída célula de Luanda do Partido Comunista Português, iniciando a sua acção em 1961], por jovens in­telectuais marxistas e nacionalis­tas, saídos da pequena burguesia umbundu. As armas? Vêm da China, da U.R.S.S., que, pou­co a pouco, aumentará o seu auxílio, sobretudo na última fa­se da luta.

Entretanto, enxamearam a re­gião de Luanda para Cabinda, no Norte, e depois para o Leste e para o Noroeste. Quando, em 25 de Abril de 1974, o regime fascista português é derrubado, o M.P.L.A. controla a costa ao sul de Luanda e uma larga fatia de território que vai do Oceano até à fronteira com o Zaire. Poeta e médico naciona­lista, preso pela polícia política portuguesa, dirigente revolucio­nário, António Agostinho Neto, 53 anos, está à cabeça do M.P.L.A. há mais de quinze anos. É um homem ao mesmo tempo tími­do, silencioso e autoritário. Os seus dotes de orador são medíocres, mas a actividade in­cansável que desenvolveu, em todos os azimutes, nos últimos anos, passeando o seu rosto se­creto do Vaticano a Pequim, permitiu-lhe impor a imagem do M.P.L.A. na maior parte dos países do Terceiro Mundo e eclipsar a principal organi­zação rival, a Frente Nacional de Libertação de Angola (F.N.L.A.).

Nascida em 1962, da fusão de duas organizações provenien­tes da etnia bakongo, a F.N.L.A. praticamente nunca com­bateu fora da sua região de ori­gem, no Norte de Angola. Alia­da incondicional do Zaire [diri­gido sucessivamente por Lumumba, Kasavubu, Tschombé e Mobutu], a Frente parece não ter nunca ousado distanciar-se do seu berço e do seu poderoso protector. Era através de Kins­hasa, na verdade, que chegavam de Washington, mas também de Pequim, fundos, armas e mate­rial. Os Estados Unidos tinham escolhido jogar, desde o início, na F.N.L.A., sobre o campo de batalha angolano, para con­trolarem o curso da guerra e terem êxito quando chegasse o momento da divisão das rique­zas do país.

Quanto aos chineses, se esco­lhiam misturar as suas metralha­doras AK 47 com as armas enviadas pela C.I.A. era para pregar uma partida à ajuda dada pela U.R.S.S. ao movimento rival, o M.P.L.A. Curiosa escolha: envolvidas num vocabu­lário vagamente anti-imperialista, as ideias políticas do «leader» da F.N.L.A., Holden Roberto, de 52 anos, inspiram-se, com efeito, mais no mobutismo do que no maoismo: o socialismo não é adaptável à Africa, onde o lucro é o motor de toda a economia e os capitais estran­geiros são bem-vindos.

Impulsivo e colérico, Holden Roberto cultiva cuidadosamente a imagem de chefe militar temível e de político decidido e glacial, que os seus amigos construíram desde há alguns anos atrás. Dólmans militares se­veros, óculos de lentes fumadas, rosto hermético de lábios finos, ele está mais à vontade no meio das intrigas de Kinshasa, do que diante das multidões. Convenci­do de que é o Mobutu de Ango­la, ele é, na realidade, o joguete das forças que julga dominar: a sede de poder do seu vizinho zairense, o apetite das grandes sociedades estrangeiras, a nostal­gia de certos centuriões portu­gueses que o auxiliam no seu combate «para libertar Angola do jugo comunista», a rivalida­de entre a China e a U.R.S.S., a «vigilância» americana e o velho reflexo tribal dos Bakongos. De resto, foi por reprovar que os privilégios que Holden dava à etnia bakongo no seio da F.N.L.A. que um dos seus lugares-tenentes, o antigo estu­dante de Ciências Políticas, Jo­nas Malheiro Savimbi, rompeu com ele, em 1964, para fundar, dois anos mais tarde, o terceiro movimen­to de libertação: a União Nacio­nal para a Independência Total de Angola (U.N.I.T.A.).

De­fendendo um socialismo angola­no «comedido e aberto aos capi­tais estrangeiros, a U.N.I.T.A. apoia-se sobre uma etnia quase maioritária em Angola, os Ovibundus. Factor de coesão, esta característica que faz a sua força, faz, também, a sua fraque­za: fora da região ovibundu, a U.N.I.T.A. não existe, e não pode, assim, aspirar a uma vocação nacional. Mesmo antes do 25 de Abril, os «pieds-noirs» de Angola tinham feito de Jonas Savimbi, quadragenário robusto e barbudo, que vive em fato de combate, o seu campeão, «Úni­co-Negro-Inteligente-de-Toda-a-Africa»: esta defi­nição, construída sobre as ini­ciais de U.N.I.T.A., mostra qual era a popularidade de Sa­vimbi no seio de uma população branca transtornada pelas pers­pectivas da independência e se­duzida pelas promessas de «sociedade multirracial fundada so­bre o liberalismo económico». Durante algum tempo considera­do como maoista, Jonas Savim­bi, que já viveu na Suíça, na Zâmbia, no Cairo, viajou na China e em toda a Europa, sabe perfeitamente explorar, com vantagem, o messianismo endémico das tribos do Centro e do Leste do país.

As revelações feitas a seu res­peito depois da queda do regime de Caetano, em Lisboa, permiti­ram descobrir que a U.N.I.T.A., durante os primeiros anos da guerra colonial, tinha actua­do em colaboração com os ser­viços secretos do Exército portu­guês contra o M.P.L.A.. Rece­bido numerosas vezes, no Eli­seu, pelos colaboradores próxi­mos de Valery Giscard d’Estaing, Jonas Savimbi, que se desloca a bordo do seu jacto parti­cular, é, neste conflito, o ho­mem da França e da Africa do Sul. Depois do golpe as Estado em Lisboa, o seu movimento é o primeiro a assinar um acordo de cessar-fogo com Portugal, em 17 de Junho de 1974.

No dia 12 de Outubro, é a vez da F.N.L.A.; dez dias mais tarde, o M.P.L.A.. Emer­gindo da clandestinidade, os três movimentos vão-se instalar em Luanda, feudo do M.P.L.A., onde os afrontamentos não tar­dam a degenerar em motins. Du­rante dez meses, entrecortados de tréguas frágeis e acordos vio­lados, a capital angolana será o teatro de uma batalha sangren­ta que faz quatro mil mortos, arruina a economia, expulsa do país a esmagadora maioria dos quatrocentos mil europeus e não terminará antes de Julho, após a expulsão da F.N.L.A. e da U.N.I.T.A. de Luanda, pelas tropas do M.P.L.A.

Agostinho Neto, a imagem do MPLA – Holden Roberto, as intrigas de Kinshasa – Jonas Savimbi, o messianismo do Centro e do Leste…

Um país no caos, na hora em que deveria ascender à independência

Ultrapassados pela amplitude do conflito e das suas impli­cações internacionais, os novos dirigentes portugueses dividem-se, também, quanto à política a adoptar. Uns, tal como o almi­rante Rosa Coutinho, alto-comissário em Luanda, de Julho de 1974 a Janeiro de 1975, são partidários de um apoio total ao M.P.L.A.; os outros são favoráveis a uma atitude de es­trita neutralidade. Esta será a política oficialmente seguida, depois da assinatura, em Janei­ro de 1975, no Alvor, no Sul de Portugal, dos acordos entre os três movimentos e a antiga potência colonial, que previam a constituição de um Governo de transição M.P.L.A.-U.N.I.T.A.-F.N.L.A -Portugal e a organização de eleições an­tes da data da independência, fixada para 11 de Novembro. Até à partida do último alto-comissário, almirante Leonel Car­doso, no dia 10 de Novembro ao fim da tarde, Portugal, envol­vido nos seus próprios conflitos, permanecerá, assim, espectador de uma descolonização que lhe escapa e que atira o país para o caos, numa altura em que de­veria atingir a liberdade.

Primeira imagem de Angola: Luanda. A cidade ultrapassou, há muito, o seu anfiteatro natu­ral e estende-se, hoje, em longas avenidas rectilíneas, contorna­das por edifícios modernos, ao longo do semicírculo quase per­feito da baía. Esta baía orgulho­sa, contornada de palmeiras e guarnecida de torres, iluminada à noite pelas mesmas siglas gi­gantes que se vêem brilhar, em Londres, ou em Tóquio, os por­tugueses tinham feito dela mon­tra do seu império. Vista do lar­go, nada pareceria ter mudado, apesar de, sobre a fachada da banca comercial, as janelas iluminadas desenharem um V e um C entrelaçados, gigantescos, lembramdo a palavra de ordem do M.P.L.A.: «A Vitória é Certa».

De perto, logo que palmilha­mos as ruas, tudo é diferente. Em cada dez lojas, sete estão fechadas. No quarteirão da Ave­nida do Brasil, onde a F.N.L.A. tinha instalado os seus escritórios, centenas de vidros partidos e as fachadas dos imóveis de quinze andares estão crivadas de balas, foguetões ou estilhaços de obus. As paredes, as vitrinas, as árvores estão co­bertas de cartazes multicolores do M.P.L.A. Os rostos severos de Agostinho Neto, mas também as silhuetas guerreiras de Gika e de Hoji Ya Henda, dois comandantes mortos em comba­te e a cabeleira africana de Carlotta, heroína dos jovens militan­tes do O.M.A. (Organização da Mulher Angolana) encon­tram-se por todo o lado, assim como as palavras de ordem do movimento: «Produzir é resis­tir», «Resistência popular gene­ralizada», «A vitória é certa».

Sem descanso, circulam sem capota, numa movimentação sin­gularmente fluída, desde o êxodo dos portugueses, Land-Rover e mini-jipes japoneses ou britânicos, com a sua carga de soldados das F.A.P.L.A., de Kalachnikov em punho. Nos passeios da Avenida dos Restauradores, semeados de caixas de gelados, pequenos engraxadores de caixa ao ombro, insinuam-se nas portas dos hotéis e tentam vender-nos, por dez escudos maços de cigarros Hermínios, que custam 5$50 nas tabacarias. Enganas-te, camarada, diz o borlista de doze anos, a quem eu repreendo. 5$50 é o preço na fábrica.

Camarada: toda a gente, em Luanda e na zona do M.P.L.A. se chama assim. Toda a gen­te aperta a mão utilizando o ve­lho sinal de reconhecimento, próprio dos guerrilheiros: o cru­zamento dos polegares. «Cama­radas», gritavam, de vez em quando, dos jipes, os soldados da F.N.L.A. quando as três organizações coabitavam em Luanda, no último Verão… e eles disparavam as metralhadoras so­bre todos os que se voltavam, porque, na F.N.L.A., todos se chamam «irmãos»…

A capital sem brancos nem géneros frescos

O mercado negro tornou-se endémico. No porto, onde os es­tivadores enriquecidos pelos subornos de portugueses ansiosos por embarcar o mais depressa possível os seus preciosos caixo­tes, se transformaram por sua vez, em corruptores, alguns fun­cionários fecham os olhos às fu­gas. Segundo um técnico, os des­vios ao controlo aduaneiro atin­gem quase cinquenta por cento da mercadoria. Os dólares com­pram-se por quadtro vezes o seu valor.

Como o dinheiro angolano vale, fora de Angola, o equiva­lente ao peso em papel, os refu­giados atiraram-se a tudo o que pudesse ser comprado e revendi­do a bom preço: jóias, relógios, prata, instalações de alta fideli­dade. Num enorme caixote de um colono em trânsito para Lis­boa soldados do M.P.L.A. chegaram a descobrir, no fim do mês passado, na doca, um Land Rover desmontado.

Nem vale a pena dizer que a cidade está exangue. Despojada da quase totalidade da sua população branca, não restariam mais do que 15 mil brancos. Luanda, escalavrada, perdeu a quase totalidade dos seu quadros administrativos, técni­cos e comerciais, perto de todos os seus artesãos. Este êxodo, a juntar aos rigores da guerra, ex­plica a amplitude da penúria. As principais zonas de criação de gado, animais domésticos e de culturas alimentares estão nas mãos do inimigo, os circui­tos comerciais, dominados anteriormente pelos camionistas e retalhistas portugueses, soço­braram com a partida destes, sem que os novos responsáveis tenham tido tempo e possibili­dade de os substituir.

Resultado: no supermercado Angola, no centro da cidade, só se encontram massas, regimes de emagrecimento, farinha láctea, flocos de aveia e de bana­na, bombons de chocolate, quei­jos e atum em lata, tudo coberto de pó e em «stock» há meses. Nem legumes, nem carne, nem leite, nem ovos.

Nos musseques, «bidonvilles» de madeira e folha, em que vive, às portas da cidade branca, a quase totalidade dos 350 mil ne­gros de Luanda, a situação é ainda pior. As cooperativas de distribuição, existentes mas em estado embrionário, não podem repartir mais do que uma quantidade insuficiente de géneros, como cebolas, farinha de milho e óleo, em estado de conser­vação por vezes duvidoso.

«Os comerciantes brancos, que viviam às portas dos musse­ques, tiravam lucros de 50 por cento, disse-nos um militante do M. P. L. A., mas certos co­merciantes negros que lhes to­maram o lugar tiram 150 por cento. E nós não podemos con­trolar toda a gente.»

Uma força nunca vista em Angola

A organização da resistência nas cidades, tal como a mobili­zação nos campos, é contudo a chave da vitoria final, numa guerra que todos predizem será longa, apesar dos últimos êxitos das F.A.P.L.A.

Na frente Norte, estabilizada desde o Verão, a uma vintena de quilómetros de Luanda, nas margens do rio Dande, as F.A.P.L.A., braço armado do M.P.L.A., lançaram uma vigo­rosa ofensiva em direcção ao Ambriz, onde está instalado o Estado-Maior da F.N.L.A., e ao porto do Ambrizete, donde parte a estratégica estrada que conduz a Kinshasa, e que a F.N.L.A. utiliza para enviar para o Zaire o petróleo extraído dos poços «off shore». Em poucos dias, as F.A.P.L.A. progrediram uma centena de quilómetros e os acessos ao Ambriz já se encontravam, há uma semana, ao al­cance dos seus canhões e dos seus lança «rockets» de 122 mm.

No Sul, depois de ter assistido ao avanço vertiginoso da, força de mercenários vinda da África do Sul, as F.A.P.L.A. retoma­ram, há semanas, a ofensiva e conseguiram deter, no dia 21 de Novembro, a progressão da «co­luna branca», comandanda por oficiais sul-africanos. Num mês, essa coluna tinha percorri­do mais de 1000 quilómetros desde a fronteira da Namíbia, a Sul, até Novo Redondo, to­mando, uma após outra, todas as cidades costeiras, em particu­lar o moderníssimo porto do Lobito.

«Não dispúnhamos de meios suficientes para os deter, dis­se-nos, então, um oficial portu­guês que aderiu ao M.P.L.A. Precisávamos de material anticarro de longo alcance. Dispo­mos apenas de «bazzokas» e, no terreno descoberto em que eles actuam, jamais podíamos aproximar-nos suficientemente, sem que fossemos vistos e esmagados pelo seu poder de fogo.»

Nunca fora visto, em Angola, uma tal cópia de material de guerra moderno: mil e quinhentos homens, comandos sul-afri­canos, antigos comandos portu­gueses recrutados na Rodésia e na Africa do Sul por mil rands (cerca de 31 contos) mensais, mercenários diversos e soldados negros da U.N.I.T.A. e da F.N.L.A., apoiados por uma vintena de blindados franceses, «AMI 90» Panhard novos em folha, equipados com peças de 90 mm, uma vintena de blinda­dos ligeiros británicos Marmion Harrington, helicópteros «Allouette», camiões em grande número e engenhos para a tra­vessia de rios. Tudo isto seguido de um formidável escalão de logística, transportando reservas de água, combustível e alimen­tos, abastecido a partir de Win­doek, na Namíbia por aviões de transporte «C130» sem emble­ma de nacionalidade, pintados de verde e negro, que aterravam no aeroporto de Benguela, onde um jornalista da Reuter ouviu soldados brancos a falar em in­glês «com um sotaque sul-africano».

Foi perto da aldeia do Ebo, a uma centena de quilómetros a nordeste de Novo Redondo, que a coluna experimentou o seu primeiro desaire: uma dúzia de blindados destruídos, várias dezenas de mortos e feridos, uma centena de prisioneiros.

Enquanto a Norte e a Sul se desenrolavam estas duas ofensi­vas, uma parte da coluna afastava-se da costa e deslocava-se para Nordeste, por Silva Porto, com a intenção aparente de atin­gir Malanje, como se os dois movimentos que se aliaram contra o M.P.L.A., a U.N.I.T.A. e a F.N.L.A., tivessem decidido, prevenidos pelas sucessivas derrotas no Caxito, fazer a sua junção no eixo rodoviário Este-Oeste, Luanda, Henrique de Carvalho, e progre­dir para a capital, por Leste e não por Norte.

Pela primeira vez as três potências estão em Jogo

Até há semanas, o Esta­do-Maior das F.A.P.L.A. demonstrava certa pressa em en­viar para o combate unidades constituídas por soldados com poucos dias de instrução, pois em vésperas de independência era preciso manter as mesmas linhas de frente, custasse o que custasse, os êxitos que acabou de alcançar iriam permitir-lhe respirar um pouco, e tirar parti­do desta pequena pausa para es­boçar a necessária reorgani­zação do seu exército, e a sua reconversão para a guerra mo­derna de movimento.

Nada se pretende abandonar daquilo que fez das F.A.P.L.A. um exército popular, nem a combinação das unidades mi­litares com as milícias locais «apuradas», nem a dualidade a todos os níveis do comando mi­litar e político, nem a formação ideológica dos oficiais; mas os comandantes serão reciclados e habituados a articular as acções e as tácticas de guerrilha com a movimentação rápida dos blindados e a utilização de ar­mas pesadas. E isto porque, já não é segredo, foi graças aos canhões de 120 mm, aos carros «T34», aos mísseis anticarro «R.P.G.7» fornecidos desde o 11 de Novembro pela U.R.S.S. ao M.P.L.A.que a evo­lução dos acontecimentos pôde ser reposta a seu favor. Sem dúvida que, desde 1966, a maior parte do material utilizado pelo M.P.L.A. veio da Europa de Leste. Nesse exército hetero­géneo, as «Kalachnikov» so­viéticas e os uniformes de com­bate jugoslavos ou cubanos so­brepõem-se às espingardas «G-3» e aos camuflados leopardos apanhados aos portugueses. Mas, desde a independência, «no quadro das relações de Es­tado a Estado, foi concedido ao governo angolano um auxílio suplementar», e os aviões de transporte «Antonov» sucedem-se uns aos outros no aeroporto de Luanda, enquanto, no porto, na­vios ostentando a bandeira so­viética são descarregados fora dos olhares indiscretos.

Já no dia 11 de Novembro foi possível ver, no desfile das F.A.P.L.A., no meio dos «Berliet» e dos «Unimogs» cedi­dos pelos portugueses, um ca­mião ambulância pesado e dois blindados «B.R.D.M.-2» de fabrico russo. Desde essa data, o ritmo de entregas acelerou, e o M.P.L.A. aparentemente, não hesitou em, após o desem­barque, lançar essas armas na contra-ofensiva.

«Apreciamos altamente a so­lidariedade internacional para com a nossa luta de quinze anos», respondem os respon­sáveis quando interrogados acerca do auxílio recebido do estrangeiro e, em particular, so­bre a presença de instrutores cu­banos. Hoje, a sua existência não deixa dúvidas a ninguém. São os próprios comandantes das F.A.P.L.A. quem afir­mam que o papel dos cubanos foi decisivo na frente de Novo Redondo, onde os soldados an­golanos teriam recuado, não fos­sem os vigorosos incitamentos dos instrutores.

Por outro lado, diversos jor­nalistas viram, algures na zona de Malanje, militares de unifor­me verde-azeitona,sem qualquer dintintivo, com uma «Kalachni­kov» nova em folha ao ombro e um cigarro na boca, contando aos pequenos pioneiros do M.P.L.A. «armados» com as suas pisto-las-metralhadoras de madeira, a epopeia da «Sierra Maestra», num português mesclado de palavras espanholas. Competentes, discretos e disciplinados, vão sem dúvida desempenhar um papel de grande importância na reciclagem das F.A.P.L.A., e, em particular, na formação de apontadores de canhão ou de lança-foguetes soviéticos, que o exército cubano utiliza há quinze anos.

A chegada ou a entrada na liça destes reforços e os êxitos que permitiram ao M.P.L.A. nas duas principais frentes irri­taram profundamente Henri Kissinger que aproveitou um dis­curso perante uma associação económica de Detroit para lançar um aviso à União So­viética: «as nações africanas são as primeiras a mostrar-se res­sentidas relativamente ao envol­vimento soviético. Mas os Esta­dos Unidos não podem conti­nuar indiferentes quando uma potência se compromete numa política intervencionista numa região tão distante do seu terri­tório e tão estranha aos seus in­teresses tradicionais.»

O incorrigível Henry, apesar de experiente em «política inter­vencionista», esqueceu, por cer­to, nesse dia, o que havia decla­rado, uma semana antes, peran­te, uma comissão do Congresso: «É correcto assumir que uma parte do auxílio americano ao Zaire se destina de facto a Angola.» Além disso, dois dias de­pois do aviso de Detroit, o «New York Times» revelava que o auxílio americano ao Zaire seria elevado, este ano, de 20 para 60 milhões de dólares, e que o presidente Gerald Ford e Henry Kissinger tinham já ob­tido a este respeito o acordo de diversas comissões parlamenta­res.

«Holden Roberto, chefe da F.N.L.A.», especificava ainda o «New York Times», «foi esco­lhido, em 1962, pelo presidente Kennedy e pela C.I.A., para estabelecer a ligação entre os Estados Unidos e os grupos au­tóctones chamados a expulsar um dia Portugal de Angola. (…) O objectivo principal da nova iniciativa clandestina dos Esta­dos Unidos, concluía o jornal, era realçar o seu apoio ao presi­dente Mobutu, o homem em quem Henry Kissinger confia para se opor aos interesses de Moscovo em Africa e defender os de Washington nas diversas conferências internacionais.»

Mas o caso, como se sabe, não se resume ao choque, por movimentos rivais entrepostos, entre os Estados Unidos e a U.R.S.S. Pela primeira vez, as armas chinesas e soviéticas es­tão frente a frente, as primeiras nas mãos da F.N.L.A. e as segundas nas do M.P.L.A.. Pela primeira vez, também, a China, os Estados Unidos e a União Soviética parecem estar, simultaneamente, envolvidas no mesmo conflito africano, en­quanto na sombra, a França e a Inglaterra estão igualmente activas.

No entanto, a China, que ti­nha enviado instrutores para o Zaire, acaba, ao que parece de os retirar, sem se chegar a saber se foi, por agora, ter decidi­do passar a apoiar a U.N.I.T.A., ou se deseja, manter-se distante de todos. A verdade é que não são já os chineses, mas os nortecoreanos, quem treina as forças zairenses. A frente di­plomática, como se vê, está tão movediça como a militar…

A França e as águas turvas da direita

Nestas águas turvas, que jogo faz a França? Em primeiro lu­gar, claro, nada que possa desagradar aos bons clientes nomea­damente dos seus negociantes de armamento que são o Zaire e a Africa do Sul. Em segundo, participar, à sua escala, na vasta ofensiva ocidental contra a ex­pansão do socialismo em Africa, enfim, «last bur not least», pre­servar a possibilidade de, um dia, ter uma palavra a dizer na partilha das fabulosas riquezas de Angola: petróleo, ferro, dia­mantes e minerais diversos.

Paris joga, portanto, em toda a escala da direita: sem escolher verdadeiramente entre o subtil e hábil Savimbi e o obstinado e impulsivo Holden, que são re­cebidos à vez no Eliseu, «fecha os olhos» à utilização pela colu­na de mercenários de material entregue de fresco à Africa do Sul. Transportes «Transall» en­tregam discretamente ao Zaire as auto-metralhadoras Panhard que o M.P.L.A.atinge facil­mente na floresta da frente Nor­te, e a Dassault, apesar da pro­messa formal feita, no Outono, a um representante do M.P.L.A. por um alto funcionário do Quai d’Orsay, fornece ao Zaire os «Mirage» encomenda­dos pelo presidente Mobutu.

Tudo isto, é claro, sem esque­cer o apoio fornecido pela S.D.E.C.E. (serviços secretos franceses) à F.L.E.C. (Frente de Libertação do Enclave de Ca­binda). Este Koweit africano, que o M.P.L.A. controla e onde a Gulf Oil explorou até à semana passada, com o seu acordo, uma enorme jazida de petróleo, é cobiçado pelo Zaire, enquanto os três movimentos angolanos, de acordo sobre este ponto, afirmam que não pode ser dissociado do território an­golano, embora dele diste mais de uns quarenta quilómetros e só em 1886 se tenha tornado protectorado português, trezen­tos anos depois da colonização de Angola. A França joga aí, claramente, o jogo da secessão e, a partir do Gabão, arma, trei­na e recruta as tropas da F.L.E.C, esperando a ocasião favo­rável, ou seja, uma ofensiva ge­ral contra o M.P.L.A., que obrigaria à separação do encla­ve.

Para o comandante Juju, co­missário político do Estado-Maior, e porta-voz das F.A.P.L.A., não foi por coinci­dência que a invasão do Sul de Angola pela coluna de merce­nários se verificou dois meses após a viagem do chete de Estado francês ao Zaire. Du­rante o Verão e o Outono, Jonas Savimbi fez, por seu lado, várias viagens entre a Africa do Sul e Paris. Quanto ao coronel San­tos e Castro, ex-oficial portu­guês e membro do E.L.P., que se tornou chefe da coligação en­tre a F.N.L.A. e a U.N.I.T.A., as suas viagens entre o Ambriz, onde se instalou o Estado-Maior da F.N.L.A., a África do Sul e Madrid, onde se reúnem os «leaders» do E.L.P., dos quais alguns vivem em França, foram coroados, em Outubro, pela formação e parti­da da coluna de mercenários da Namíbia, equipados com mate­rial de guerra francês. Demasia­das coincidências para o M.P.L.A. Por outro lado, os pilotos dos «Mirage», que deveriam ter regressado a França depois da entrega dos aviões, ficaram no Zaire…

«O comunismo, perigo dia­bólico que semeia o caos e a desordem, atingiu as nossas fronteiras, declarava, no dia 10 de Novembro, Piet W. Botha. ministro sul-africano da Defesa. Deve ser detido, não somente no interesse da África do Sul, mas também do mundo livre». Em conclusão: «Já é tempo que o ‘mundo livre’ intervenha di­rectamente na guerra de Angola para ‘conter o expansionismo comunista’ e proteger a rota do Cabo. pela qual transita 60 por cento do petróleo dos países da N.A.T.O. e o ouro sul-africa­no, que representa 70 por cento de toda a produção ocidental. Nós não temos intenção de assu­mir a batalha do mundo livre até à morte do último soldado sul-africano», advertiu Piel W. Botha,

A África do Sul deseja obter, no fim, através de negociações ou pela guerra, a criação, no Sul de Angola, de uma repúbli­ca tampão, nas mãos da U.N.I.T.A., destinada a preservar a Namíbia, a sua província do Norte, da influência «marxista». Considera já que a guerra de Angola apresenta para ela as­pectos diplomáticos positivos, dado que quebrou a unidade artificial da Africa negra, colocan­do face a face os países pró-soviéticos e os pró-ocidentais.

Assim, dia após dia, reforça o seu controlo sobre a U.N.I.T.A., que poderia mesmo eclipsar completamente a F.N.L.A., movimento que os oci­dentais julgam demasiado «de­sastrado».

Há duas semanas, aos jorna­listas que pediam ao Esta­do-Maior de Jonas Savimbi li­cenças para se deslocarem até à frente, os oficiais respondiam em tom arrogante: «As autori­zações vêm de Pretória». A mes­ma falta de autoridade se vê do lado da F.N.L.A.: «Dirija-se a Kinshasa, dizem em Amberiz e Carmona.

Blindado do MPLA carregado de combatentes. Desde 1966, a maior parte do material veio da Europa de Leste…

Criticas à actuação de Portugal

A internacionalização do con­flito, se tem partidários no de­partamento de Estado america­no e na C.I.A. é, por sua vez, muito contestada no Con­gresso, onde o senador Clark se tornou no campeão da «solução africana»: os Estados Unidos, pensa ele. deveriam diminuir a sua intervenção, mesmo que os soviéticos a aumentem, porque o M.P.L.A. quer seguir uma política de não-alinhamento e, por isso, não se enfeudará a Moscovo.

Não ser o cavalo de Tróia da penetração soviética na Áfri­ca Austral – eis, também, a preocupação que encontramos junto de certos militantes do M.P.L.A.: «Precisamos continuar a diversificar, como o temos fei­to já, as nossas fontes de aprovi­sionamento de armas, fazendo, por exemplo, um maior apelo à Jugoslávia…»

Para muitos, a ajuda de Por­tugal poderia ter sido, neste período uma ancoragem noutras águas, e esperou-se em vão um golpe de teatro no dia 10 de No­vembro. Em Lisboa, onde uma severa batalha opunha parti­dários e adversários do reconhe­cimento do novo Estado, os segundos dominaram a situação brandindo os acordos do Alvor, assinados no dia 15 de Janeiro e logo violados um mês mais tarde. E o almirante Leonel Cardoso partiu como um ladrão, num aparato inútil de forças e num estampido de armas ana­crónico e irrisório.

Como pôde, alé lá, o Governo português esconder-se debaixo de um pedaço de papel ignorado por todo o mundo, e partir com aquela desenvoltura desespera­da. Esta é uma pergunta que queima muitos lábios em Luan­da. E também em Lisboa, onde certos capitães de ontem se en­raivecem de ver consumar-se, desta maneira tão deplorável, uma descolonização que eles ha­viam sonhado exemplar. Quem dirá se o peso desta decepção e desta culpabilidade que se des­cobre, aqui e ali, em volta de uma frase, não pesará tanto, amanhã, no futuro de Portugal, como a multidão dos trezentos e cinquenta mil repatriados?

Para os novos dirigentes deste país despedaçado, que olham das janelas do velho palácio dos governadores, que se tornou na sede do governo, a sua capital destruída mas teimosa, a tarefa hoje é pungente. E eles pare­cem, por vezes, bem próximos de vergar sob o fardo. Seria esta a melhor forma de renunciar à participação de «personalidades independentes e patriotas» no Executivo e de constituir um ga­binete de guerra composto ape­nas por «militantes que deram provas durante a luta de liber­tação»?

Não teriam sucumbido à ten­tação de preferir a disciplina à competência? Estarão os diri­gentes libertos do hábito, fre­quente no seio do M.P.L.A., de considerarem os contesta­tários como traidores? Teriam ouvido a lição de Amilcar Ca­bral, o fundador do movimento de libertação da Guiné-Bissau, o primeiro teórico da luta contra o colonialismo português: «O povo não luta pelas ideias nem pelas coisas que vão dentro da cabeça dos homens. O povo combate e aceita sacrifícios exi­gidos pela luta a fim de obter vantagens materiais, para viver melhor e em paz, para o pro­gresso da sua existência e o futu­ro dos seus filhos.»

Na Guiné-Bissau, foi modifi­cando profundamente a vida dos camponeses, abrindo esco­las, hospitais, e lojas do povo que os membros da resistência do P.A.I.G.C. ganharam a sua causa nos campos, e, com a ajuda das populações, verda­deiramente destruíram o exérci­to português. Em Moçambique, a Frelimo aprendeu a lição. Em Angola, resta quase tudo para fazer. Partido das cidades, o M. P.L.A. nunca pôde, ou soube, entregar-se a essa vasta tarefa de organização nos campos.

«Nós começámos somente agora a antever o que deseja a população, segundo as regiões, diz um agrónomo. Aqui, os camponeses exigem terras, ali querem escolas e postos sani­tários, acolá ainda o problema principal é o dos preços, porque a tonelada do fertilizante au­menta todos os anos, enquanto os preços dos produtos agrícolas, fixados pelo mercado, permanecem estáveis. Precisa­mos de avançar passo a passo.»

Assim, pelo que vi, sucumbe-se facilmente, em Luanda, à ten­tação de confundir a voz longínqua da revolução socialis­ta com a vereda difícil da inde­pendência nacional, por onde o país hoje caminha penosamente. E é nos espíritos e não no terre­no que é preciso preparar as bases do futuro poder popular: «Produzir é resistir», dizem os cartazes, mas que pensam disso todos aqueles que julgam que o fim da exploração colonialista é o fim da obrigação, por conse­guinte do trabalho?

Aperfeiçoado pela guerra, o poder político que se infiltra lentamente em Luanda, será, amanhã, o instrumento da vitória ou da derrota militar. A sua força principal reside em ser a emanação de um movimento realmente multirracial e reside também, no facto de estar soli­damente instalado na capital, o que é uma legitimação em Áfri­ca; reside, finalmente, em ter conseguido, no 11 de Novembro uma abertura diplomática indis­cutível: uma trintena de países, incluindo o pragmático Brasil, anunciaram a sua intenção de abrir uma Embaixada em Luan­da, enquanto não houve um único chefe de Estado que reco­nhecesse a República Demo­crática e Popular da F.N.L.A. e da U.N.I.T.A., cujo governo se encontra instalado, desde o princípio do mês de No­vembro, no Huambo (ex-Nova Lisboa).

Humilhante abandono, prova de hipocrisia, senão de sabedo­ria, dos governos ocidentais, que fazem de Savimbi e de Holden simples cabos de guerra e dão aos seus combates as dimen­sões mesquinhas de cruzada an­ticomunista e de confrontação tribal. Como que desgastada por estas divisões, cansada de vãs mascaradas políticas e envergo­nhada das ligações criminosas que uma parte dos seus «leaders» históricos fazem com os racistas sul-africanos, a África parece paralisada pela guerra de Angola. Também parece espan­tada e impotente: as débeis reso­luções contraditórias duma de­sacreditada O.U.A. pro­vam-no.

A realidade das forças em presença, a amplitude dos inte­resses económicos e estratégicos em jogo levam a crer, com efei­to, que esta não seja uma nova aventura catanguesa ou biafrense que se acenderá, amanhã, no braseiro angolano, mas, antes, um interminável e sangrento Vietname africano. «Sacrifício», um comandante de vinte anos encontrado a alguns quilómetros da fronteira zairense, perto de Portugália, não pára de repe­tir aos seus homens: «A guerra aerá longa, muito longa».

«Le Nouvel Observateur» – «O Jornal»

 
Artigo editado em  “Le Nouvel Observateur” e o “Jornal”  em 30 de Dezembro de 1975
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