Batuque Mukongo

Por Fragata de Morais

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d441e7d533d45acb5fad3c416b84820dEXCERTO DE BATUQUE MUKONGO
1
Sem desígnio
invoco o morro da memória
no trinar das cigarras
disperso na fadiga
do batuque que chamava a noite
e o fim do morro
entregues por mais um dia
à lua antes de descer o morro
pelo funil do trinar das cigarras

2
Fui criança da chuva
em terras de esperança
fui chuva criança
pela mão da minha avó
escura como o breu envolvente
da miséria de um povo
sem caminho nem vau
no rio grande
por onde subiu a nau
de velas insufladas
ao anúncio dos ngoma
dos chingufu
dos tambores surdos
e do ulular rítmico
no queixume das sereias
coladas à morte pegajosa
penetrando silenciosa
as rugas dos desejos impossíveis
como visgo escorregadio
no casco das árvores milenares crescidas a esmo

3
Acreditava que o Sol
não nasceria para além do horizonte
por onde deslizavam
as vozes choradas dos contratados
em seus cantares saudosos
da terra deixada para trás
na ilusão de uma melhor vida
mais sal mais sabão
oração que mal não faz
dinheiro para a escola
panos para a mulher
e a bicicleta de ferro
com farolim brilhante
para alumiar o que não se via
que rugisse soberana
nos carreiros e picadas
que tracejavam o planalto
formigueiro de caminhos
que a todos os sítios do anseio iam
sem levar a lugar algum
a não ser às roças do Norte
às roças muitas vezes da morte

4
Uíge na Uízi
terra onde nasci
catrapim pim pim
que te afastas de mim
Uíge na Uízi onde nasci
às cinco da tarde
explodi do ventre da mãe
ao canto do pírulas
mãe materna
mãe terra
mãe sorte
mãe água do rio rio
de outras águas maternas
chovidas ou não
chuva rugido de leão
chuva marca leve das pegadas da gazela
nascido para o mundo
às cinco da tarde
no Uíge na Uízi
quase apagada memória
da longa e única rua
de casas de adobe
de pau a pique
em pique de pau
novo e logo envelhecido
no tragar do salalé
que não sabia de arquitecturas
na linearidade da rua
onde o pau a pique
por fora e por dentro
salpicado de barro vermelho
florido de várias camadas de cal
apaziguou os gritos do parto
às cinco da tarde
de um Novembro sofrido
no ventre de uma bela mulher
Alice com Maria mãe de Deus
dores gemidas na culpa bíblica
porém Maria sempre Alice
a embalar em seus braços exaustos
o novo mundo
ainda envolto nos líquidos maternos
mas logo a chamar
pela boca da avó materna
os antepassados
da linhagem para o batuque
tuque norte
tuque sul
tuque este
tuque oeste
em cada ermo do mundo
cada tuque batido
uma bênção solta
no balido do cabrito esgoelado
na pele do boi malhado
preto e branco
preto mukongo
branco beirão
batuque mukongo dos reis antigos
fado do branco vindo dos mares

5
Assim nasci
às cinco da tarde
no Uíge na Uízi
terra onde nasci
catrapim pim pim
que te afastas de mim

6
Pelo canto do olho
de um cão zarolho
aprendi a andar
seguindo o voo das andorinhas
nos ternos labirintos do salalé
que se alimentava da casa vermelha
onde o meu choro primeiro
se mirou nas paredes cobertas
de vários espelhos de cal

7
Quantos mais dessa rua
entre as ruas da memória esqueceram
a cidade onde ainda as sombras falam
a voz dos reis do Kongo
o longo sono dos escravos
tão longo quanto o vasto mar
de águas escuras
monstros e medos
sem sonhos
mar insano
mar prisioneiro escoando dos matos e florestas
as lanças das guerras fratricidas
que esventraram o reino
o ébano grito horrendo
dos agrilhoados
do chicote do pombeiro
selva adentro rio abaixo
na boca voraz do jacaré
rio adentro rio abaixo
acorrentados nas velozes
naus de vento em popa
rumo de todas as Américas
sangue africano para a rega
dos milheirais
dos cafezais
dos canaviais
dos vastos campos de algodão
no Mississippi
no Ouro Preto das minas
em que o ouro foi o preto nas minas

8
Nessa minha rua vermelha de barro
no Uíge na Uízi
cavalgam as sombras o futuro
no urro da onça desdentada
no riso ventríloquo das hienas
nos panos garridos da esguia ndua
sombras a dançar o xinguilar milenar dos ndoki
o bater fúlgido das asas das águias
*nga nkala yi mbemba
nga nkala yi mbemba ya zungilanga vana mwelu a nzo
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko ee yolela
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko *
a hora da dor não é de esperteza
cantava minha avó na roda
para a filha já perdida
com um que viera dos mares
mas sempre cantava
e a dor morria
ao apagar a linhagem
ao esbater a forma
ao esvair da lembrança
ao apagar o traço da raça
nessa longa longa viagem
de quem parte sem volta
galopando a bicicleta ora velha
dos desejos e sorrisos retraídos
à luz do estafado candeeiro
a encher a sala de um véu diáfano de luz
onde se suicidavam as mariposas
num frenesim de bater de asas poeirentas

*se eu fosse mbemba (águia)
se eu fosse mbemba para rodear à porta
a hora de dor não é de esperteza ee yolela
o tempo de dor não é de esperteza

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