Contos matrimoniais Kongo: Segredo para a longevidade do casamento

 

A sociedade angolana a ausência de princípios e valores éticos e morais

Desenhos de Manuel Ventura

Desenhos de Manuel Ventura

De um tempo a esta parte tem-se assistido na sociedade angolana a ausência de princípios e valores éticos e morais, que muitos afirmam ser resultado do longo período de guerra que o país viveu. Mas se observarmos o tempo que passou desde o alcance da paz no remoto ano de 2002 até à data actual, vê-se que a queda destes valores continua, daí a necessidade de cada vez mais se procurar formas, se evidenciar esforços, para cultivar estes valores na sociedade, principalmente por parte da juventude.

É de reconhecer que muito têm feito as autoridades bem como a sociedade civil para o resgate destes, mas que infelizmente têm tido pouco resultado se atendermos ao número de violações destes princípios e valores no dia-a-dia.
Quando se trata de relações conjugais, as coisas parece piorarem ainda mais, uma vez que, nos convívios matrimoniais, as diferenças educativas entre os cônjuges muitas das vezes falam alto no trato entre ambos. Por esta razão, temos assistido da parte dos jovens e não só, várias dificuldades na constituição e prolongamento do matrimónio, causando assim separações constantes, divórcios e, em casos extremos, violência doméstica.
Enquanto continuarmos a observar esta fragilidade na constituição e prolongamento do matrimónio nos nossos jovens, temos que ter a plena consciência de que teremos sempre famílias desestruturadas, acarretando com isso muitos problemas para a nossa sociedade de hoje e sobretudo do futuro.
Não podemos esperar uma sociedade com princípios éticos e morais potentes, enquanto não trabalharmos para a estruturação de uma família forte, porque é dela que nasce o alicerce para a edificação destes valores no indivíduo. E para a potencialização da família é necessário ensinar aos jovens os princípios e valores éticos e morais, para uma sã convivência dos cônjuges nas relações matrimoniais e/ou no matrimónio.
É comum ouvir os mais velhos dizerem que no seu tempo era melhor, o que nos leva a concluir que a sociedade angolana dos anos 70, 80 e princípios de 90 não apresentava tanta falta de valores na convivência matrimonial como a sociedade actual, o que levanta as seguintes questões:

1. Que contribuição os ensinamentos existentes na nossa opulenta oralidade angolana podem dar para um relacionamento conjugal saudável das famílias modernas? E de que forma podem contribuir para a sua longevidade?

2. Como poderiam as famílias angolanas viver em função dos ensinamentos das nossas tradições ancestrais, tendo como linha mestra a visão do poeta Agostinho Neto em “Havemos de voltar”?

Para responder estas questões, é necessário que se façam estudos profundos das nossas tradições ancestrais, tendo em conta que durante longos anos elas se foram transmitindo de geração em geração de forma oral.
Mesmo sendo transmitida através da oralidade, sabemos que ela preservou ao longo dos tempos valores fundamentais para a conservação do matrimónio e não só, daí que, hoje ainda vemos na nossa sociedade casais idosos com uma convivência harmoniosa e exemplar.
Este artigo visa dar a conhecer a existência nas nossas tradições ancestrais, no caso concreto Kongo, da presença de um corpus da literatura oral, que pode contribuir para o resgate de valores éticos e morais e que podem ser adaptados para as sociedades modernas actuais, que são os contos.

SÍMBOLO DA FILOSOFIA KONGO

Os contos constituem um símbolo da filosofia Kongo e têm um grande impacto na psicologia colectiva. É uma narração com o uso de personagens imaginárias, com finalidade de educar, aconselhar e prevenir os homens e/ou mulheres sobre determinadas situações e definir determinados padrões comportamentais individuais.
A sua importância incide no facto de ser um meio muito usado, principalmente pelos mais velhos, para aconselhar, educar, promover o entendimento dentro de uma família ou lar e mormente alertar para as consequências futuras de determinados comportamentos que os casais possam adoptar.
Existem vários tipos de contos Kongo. A sua tipificação está muito ligada ao momento da sua utilização, porque em todo lugar onde estiverem a resolver algum problema, desde que esteja lá um bom “mpovi” (falador), os contos são utilizados e também dependem muito do assunto em abordagem.
Segundo as nossas pesquisas, os tipos mais usados são:[1]

– Contos de amor: são aqueles que promovem o amor ao próximo no seio das comunidades;
– Contos de bons conselhos: são aqueles que aconselham como arranjar um bom amigo, no caso das senhoras amigas, e mostram como deve ser o perfil das pessoas na sociedade;
– Contos dos malfeitores: são aqueles que mostram como será o fim daqueles que fazem mal aos outros, no caso dos ladrões, burladores, etc.;
– Contos matrimoniais: são aqueles que retratam os relacionamentos entre os casais, noivos, namorados e mostram também como arranjar um bom parceiro conjugal;
– Contos heróicos: são aqueles que exaltam o heroísmo, falam dos grandes feitos dos antepassados, das guerras feitas por eles, etc.

De salientar que, dentre estes cinco tipos pesquisados, estudou-se os contos matrimoniais dos quais a seguir apresentamos três, com a sua mensagem, interpretação e contextualização.

Conto nº 01 – O comportamento no lar

Um homem casa com uma mulher muito bonita, admirada por todos no bairro. A mulher amava-o bastante e ele também gostava muito da sua mulher. Tudo o que a mulher quisesse, ele fazia porque se agradava muito dela. Um dia, o pai deste homem encontrou-se muito doente e necessitava do apoio do filho para fazer o tratamento. Dirigiu-se à casa do filho, pedindo auxílio para que o levasse ao tratamento. O filho respondeu o seguinte: “Tenha um pouco de paciência, vou primeiro falar com a minha esposa”. Ao conversar com a esposa, esta disse-lhe: “Também o meu pai está a necessitar de apoio. Vamos primeiro atender a ele e depois veremos o caso do teu pai”.
O filho disse ao pai para voltar mais tarde e que deveriam ver esta situação depois. O pai acenou a cabeça e simplesmente agradeceu. Foi procurar socorrer-se de outra maneira e ficou bom. Dias depois, o pai do homem voltou a aparecer para os visitar. Encontrou o seu filho no quintal da casa; saudaram-se e depois levou-o para dentro da casa, mas a esposa do mesmo encontrava-se no quarto.
O marido foi ter com ela, dizendo-lhe: “Chegou o pai, está sentado na sala”. Ela interrogou: “O meu ou teu pai?”. O marido respondeu: “O meu pai”. A mulher disse-lhe: “O pai é teu, veio ver-te como seu filho. Ele não tem nada a ver comigo, porque não é meu pai”.
Esta resposta chocou o marido que acenou a cabeça, olhou para cima e para baixo, disse consigo mesmo: “Afinal de contas, eu amo ela e a sua família, mas ela não tem amor pela minha família.”

Mensagem do conto nº 01
Este conto transmite-nos uma mensagem relacionada com a forma como se deve avaliar o comportamento de uma parceira ou parceiro no lar, a nível da tradição Kongo. Está ligado ao seguinte provérbio: “Kitomene, mu muntu kitukidi” ou seja: “É bonito, porque alguém o pôs neste mundo”.

Interpretação do conto nº 01
A interpretação que se pode tirar deste conto é que na vida de um casal é preciso que haja amor dos dois lados, ou seja, um casal quando se junta significa que as duas famílias também devem se juntar e o marido deve amar a família da esposa e a esposa do marido: só assim haverá união no seio desta relação.

Contextualização do conto nº 01
Actualmente temos assistido a vários problemas nos lares angolanos que muitas das vezes resultam em divórcios por causa da falta de boas relações de um parceiro para com a família do outro ou da outra. Este conto aconselha-nos a sermos unidos dentro de uma relação. Quando os noivos se juntam para constituir um lar, as suas famílias também se devem unir, o que significa que cada um passa a pertencer também à família do outro.
Estes ensinamentos podem ser usados em todas as relações tanto de pessoas com maior idade como de pessoas com menor idade, em qualquer parte do mundo e principalmente naquelas relações em que os noivos ou casais são de origem diferente tanto na sua nacionalidade, etnia e/ou cor da pele.

Conto nº 02 – O divórcio

Um homem era casado com uma linda mulher. Como o homem bebia muito álcool, cada vez que ficasse bêbado, punha-se a bater e a castigar a sua mulher sem motivo. Eles tinham cinco filhos, mas desde o primeiro ano de casamento até ao nascimento do quinto filho, isto é, cinco anos depois, o homem não mudara de conduta.
O pai da mulher, mostrando-se aborrecido com as queixas que recebia de pessoas conhecidas que aconselhavam a retirar a filha da casa daquele homem, enquanto não a matou ainda, decidiu chamar a filha e deu a proposta de divórcio. No momento, a filha concordou.
Num outro dia, o pai convocou um conselho de família junto das autoridades tradicionais, tendo reunido os membros da família da esposa e da família do marido, para decidirem sobre o divórcio. O assunto foi posto na mesa. Os parentes da mulher falavam e todos estavam unânimes, que tudo estava terminado. Porém, quando o chefe da aldeia deu tempo à mulher para falar, ela começou por dizer aos parentes: “Já ouvi que todos estão de acordo que me devo separar. Agora vos pergunto: Quem será capaz de satisfazer as minhas necessidades que só meu marido satisfaz?”.
Todos sentiram-se mal e muito envergonhados com essa questão. Ninguém conseguiu responder. Daí o chefe da aldeia deu por terminado o encontro e decidiram que a relação se mantivesse.

Mensagem do conto nº 02
É necessário ter cautela quando duas famílias se reúnem para resolverem um determinado assunto, principalmente quando se trata de divórcio.

Interpretação do conto nº 02
É necessário ter cautela quando se vai resolver o problema de um casal. A separação deve ser decidida por ambos e não pode haver incitação de terceiros.

Contextualização do conto nº 02
Hoje em dia, é comum vermos muitos familiares que procuram destruir relacionamentos porque notaram determinados comportamentos por parte do marido ou da mulher que estes acharam negativos e procuram intoxicar com certas ideias negativas o parceiro ou a parceira, para destruírem a relação. Este conto aconselha-nos a termos cautela nestas situações porque muitas das vezes acabamos por ficar envergonhados e os parceiros acabam por não se separarem.

Conto nº 03 – A seriedade nas relações

Havia um jovem numa aldeia conhecido como Nsombe[2]. Este noivara uma moça. Enquanto esperavam o tempo passar até chegar o dia de ir fazer os deveres e levar sua mulher, o Nsombe se transformou em kinkakala e ganhou habilidades de voar. Assim que chegou o dia, o Nsombe apareceu junto dos familiares da moça para tratarem do seu alambamento. Os pais da moça rejeitaram-no, porque não o reconheciam e disseram-lhe que a mulher era já noiva do Nsombe. O Kinkakala reagiu, dizendo: “Sou eu mesmo, o Nsombe”, mas os pais da moça não quiseram acreditar, porque estava muito diferente. Nsombe saiu dali muito triste, aborrecido e regressou para o seu viveiro.
Dias depois, voou e voltou a ir ter com os pais da moça, mas estes insistiram em não falar com ele sobre assuntos relacionados com o seu casamento. Assim, o Nsombe não conseguiu casar com a moça porque o conheciam de uma maneira e ele passou a apresentar-se de outra forma.

Mensagem do conto nº 03
Quando uma pessoa se apresenta aos outros, deve ser verdadeira e sincera: não podemos procurar esconder o nosso verdadeiro ser para depois apresentar outro.

Interpretação do conto nº 03
Dentro de uma relação, as pessoas devem ser sérias, ou seja, para o sucesso de um relacionamento ou de um compromisso que a pessoa está a assumir, deve procurar mostrar o seu eu real e não mostrar um para, depois, ao longo da convivência, apresentar outras formas de ser.

Contextualização do conto nº 03
Temos verificado várias vezes na nossa sociedade que as pessoas, enquanto noivos, apresentam um determinado comportamento, mas depois de passarem a viver juntos, não mostram aquilo que realmente são, criando com isso muitas dificuldades ao outro, o que não é bom para o sucesso de uma relação que quer durar muito tempo. Os casais devem, a partir do momento em que se conhecem, mostrar as suas verdadeiras personalidades.

Auguramos, que os contos ora expostos constituam uma forma de resgate dos ricos valores da nossa tradição oral, a qual acreditamos ser um contributo para a salubridade dos lares angolanos.

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NOTA DO EDITOR: Quanto à interpretação que o autor dá ao CONTO 02, somos de opinião que ela está ultrapassada nos dias que correm. A tradição não é eterna. Perante o risco da esposa vir a perder a vida devido à violência conjugal, a família deve intervir. É um dever sagrado. Se não houver possibilidade de pôr fim à relação, então deve-se persuadir o marido bêbado e violento a mudar de comportamento. O valor VIDA tem primazia sobre o instinto sexual.

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[2] Nsombe é o nome de um animal que vive nas palmeiras. Durante o tempo que permanece na palmeira ele apresenta uma estrutura que depois de um tempo transforma – se, nascem asas e passa a chamar se kinkakala.

Via Jornal Cultura

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