Dinâmica religiosa e articulação política dos Bakongo de Angola

Por Luena Nascimento Nunes Pereira (*)

Tentando compreender o lugar ocupado hoje pelos Bakongo na sociedade angolana, mas considerando também a complexidade interna deste grupo na capital do país – lugar privilegiado para observação – a dinâmica religiosa dos Bakongo aparece como uma dimensão fundamental para pensar a articulação que estes fazem entre si enquanto grupo e com a sociedade nacional no novo contexto angolano. Percebe-se assim que a instituição religiosa vem permitindo ao grupo recompor seu passado e seu presente, sua forma especial de associar processos de continuidade cultural e mudanças, dando-lhes significados adequados ao seu contexto atual e a uma história marcada pela migração e pelos deslocamentos.

Olhar a dimensão religiosa entre os Bakongo pode permitir desvendar uma forma particular pela qual é possível processar as rupturas entre os períodos colonial e pós-colonial e as vivências experimentadas em espaços nacionais distintos. A religião institucionalmente organizada através das igrejas cristãs – o cristianismo é a religião majoritária em Angola, com maior adesão entre os Bakongo – pode ser vista como elo de ligação entre estas instâncias: passado e presente, sociedade nacional e grupo étnico, construção de identidades internas ao grupo e para fora deste.

A proliferação de igrejas, no caso dos Bakongo, pode demonstrar uma atualização, para o contexto nacional angolano, de uma tradição de contestação política e a busca de afirmação identitária.
Na sociedade Kongo a religião foi desde muito tempo a principal instância de organização política e social. Isto fundamenta-se primeiramente na estrutura tradicional Kongo onde, como em outras sociedades, os chefes exerciam seu poder político legitimados por um poder sagrado conferido ritualmente. A linguagem do poder é uma linguagem que remete ao sagrado, à capacidade de manipulação, pelos chefes e sacerdotes, de forças poderosas advindas do outro mundo.

Os contatos com os portugueses a partir de fins do século XV trouxeram o cristianismo, adotado rapidamente pela elite real congolesa. A cristianização representou, neste momento, uma estratégia de concentração do poder real para fins de uma reorganização política do Reino do Kongo. Esta interpretação é demonstrada pelo batismo do rei e das famílias mais importantes do reino e não facultado, de início, à população comum.

A participação do cristianismo, e seus agentes europeus, no desenvolvimento político do Reino do Kongo encontrou seu momento crítico no movimento Antoniano, no início do século XVIII. Tratou-se de um movimento religioso, chamado também messiânico, que buscava a restauração do Reino do Kongo, dilacerado pelas guerras civis que se sucederam após a Batalha de Ambuíla (1665), quando uma nova relação, de vencedor e vencido, se estabeleceu entre o Reino do Kongo e os portugueses. A reação religiosa procurou assim recuperar o protagonismo político perdido, retraduzindo o cristianismo nos termos de uma lógica local, afastando-o do controle dos missionários europeus.

Quase dois séculos depois, o processo de recristianização da região do Kongo com a implantação de missões católicas e protestantes, já sob o domínio colonial, assistiu a vários movimentos religiosos, sendo o mais importante deles o Kimbanguismo, na década de 1920, no Congo Belga.

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Retemos deste breve histórico tanto a importância da instância religiosa na estruturação do poder tradicional bakongo, como a centralidade da religião cristã no processo de transformação da sociedade kongo decorrente da sua relação com os poderes e a cultura européia.

Sendo assim, do papel religioso fundamental exercido pelas chefias Kongo, desde antes do contato com os portugueses aos movimentos messiânicos do século XX, passando pelo movimento Antoniano do século XVII (que sinalizava a grave crise social e política pela qual passava o Reino do Kongo naquele período), a religião foi sempre o âmbito privilegiado no qual se processaram as transformações sociais profundas desta sociedade, configurando-se numa importante linguagem através da qual os Bakongo articulam-se política e ideologicamente com a sociedade circundante, sejam elas as potências européias, o poder colonial ou, como pretendo mostrar, a sociedade nacional angolana.

Para traçarmos esta articulação, é necessário compreender os aspectos da cosmologia bakongo que indicam ser a esfera das relações com o sagrado e com “outro mundo” a instância fundamental da qual emana a própria fonte do poder (poder legítimo ou não), capaz tanto de recompor e dar sentido ao grupo enquanto tal ao longo das transformações sociais vividas, quanto de desafiar situações percebidas como adversas, críticas, que têm sido, sobretudo, situações de perda de autonomia política e de crise identitária.

Não tenho qualquer pretensão de retraçar uma continuidade direta entre os movimentos religiosos dos séculos XVII e XX, apesar da relação já apontada por alguns autores (Gonçalves, 1984a; Margarido, 1972) com o quadro religioso angolano atual, que contém também fortes elementos de messianismo e profetismo. Nem cabe sugerir uma dimensão essencial contida nas sociedades Kongo que permanece do passado até hoje. Mas é necessário considerar a importância e o lugar da religião entre os Bakongo associada às suas estruturas de parentesco, cujos principais elementos se encontram vigentes, confrontando as referências da etnografia clássica, da contemporânea e os dados de campo recolhidos nos últimos anos (ver referências mais a frente).

Olhar para os Bakongo hoje, no contexto de Luanda, levando em consideração a história da região Kongo, tanto a partir do que dela se escreveu como do que os Bakongo hoje veiculam desta história, pode nos permitir perceber como a religião tem sido um espaço de organização política e identitária reavivado, tendo-se em consideração um ambiente político restritivo. Cabe considerar que entendemos que a articulação político-identitária associada à expressão e às instituições religiosas tem sido uma forma regular da organização de importantes setores bakongo. A religião assim não se configura numa mera “válvula de escape” dentro de um ambiente político restrito, como interpretaram alguns autores, ou seja, uma forma de organização possível à espera de instituições “modernas”, como partidos políticos ou organizações sindicais (vamos nos aprofundar nesta questão no terceiro capítulo). Porém, na história Kongo há uma reiterada relação entre emergência de movimentos religiosos e um contexto de perda de autonomia política e crise institucional.

 

(*) Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

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