Do meu Bornal de recoradações – VIDA FAMILIAR E VIDA SOCIAL.

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).

 

A Maria Helena e eu depressa nos adaptámos a viver na pequena comunidade da vila da Damba, composta de apenas oito famílias de funcionários e comerciantes, com educação e desenvolvimento intelectual muito díspares mas aparentemente nivelados pelo sentimento de pertença a um grupo diferenciado, pela procedência, pela cor da pele e pela cultura, da população circundante.

No dia a dia, as relações sociais, para além das visitas protocolares das senhoras quando na Damba alguma nova família se fixava, tendiam a ser comandadas pela existência de barreiras tácitas, agrupando se as famílias dos funcionários administrativos, do médico, do veterinário, da professora do posto escolar e de um dos comerciantes, de um lado, e do outro o enfermeiro, o ajudante de pecuária e os restantes comerciantes.
Cada um destes subgrupos integrava também as famílias negras e mistas que neles se enquadravam. O total nivelamento apenas funcionava em dias ou circunstâncias especiais, como durante a visita anual do Senhor Arcebispo de Luanda, nas raras visitas do governador geral da colónia e, mais tarde, quando da realização de festividades colectivas possibilitadas pela construção de um edifício a esse fim destinado.

Mesmo os rurais africanos reconheciam esta diferenciação e lembro me, a propósito, de que em certa ocasião, o Mandioca, cozinheiro de um dos funcionários, ao achar incorrecto um qualquer procedimento de uma filha do patrão, a ter admoestado desta maneira:” Menina, se volta a fazer isso até parece filha de um comerciante e não de um branco fino.”

Só dois anos depois de ter chegado à Damba é que foi instalada a rede de distribuição da energia eléctrica fornecida por um gerador, accionado por motor diesel, que funcionava apenas desde o anoitecer até as 23 horas. Para a fixação da hora de paragem do gerador consultaram se os chefes de todas as famílias e lembro me de que um dos comerciantes alvitrou as 21 horas, por ser essa a hora a que normalmente se deitava.

E muitos outros talvez não tenham feito o mesmo alvitre apenas por vergonha. Como instalámos diversos candeeiros ao longo da única avenida e no adro da igreja, o aspecto nocturno da Damba de todo se modificou. A tal ponto que um cipaio do posto de Camatambo, que tinha vindo em serviço à vila, ao regressar confessou ao chefe do posto a sua admiração pelo melhoramento que encontrara, nos seguintes termos: “Senhor chefe, coisa boa é a luz na Damba Agora, de noite, quem perder agulha pode achar agulha.”

Antes disso a iluminação em cada casa era fornecida por candeeiros de petróleo, desde os Petromax, com camisa incandescente, até aos vulgares, com torcida de algodão e chaminés amovíveis.

Durante o dia, o meu trabalho na secretaria da Administração ou em serviço externo preenchia o meu tempo, e a minha mulher, para além da direcção da actividade doméstica, ia se entretendo com a leitura e, nos três primeiros meses, com a confecção de algumas peças de vestuário para o bebé que estava para nascer. Convivia também muito com a mulher do administrador, com quem trocava visitas diárias, e menos assiduamente com outras senhoras. Empenhava se também em instruir os criados na fé cristã, dedicando semanalmente algum tempo ao ensino do catecismo. O cozinheiro, Francisco de seu nome, era natural de Camabatela, ambaquista portanto, e pertencia a uma família com tradição cristã. Assim sendo já não carecia de grandes ensinamentos.Mas o outro criado, mais moço, o Cassa, nunca tivera contacto com nenhum missionário ou simples catequista, aceitava com agrado a catequese. Com agrado e também com o aproveitamento revelado no episódio que vou relatar. A Maria Helena quis saber se ele tinha assimilado as primeiras noções transmitidas e perguntou lhe o que é que sabia sobre a criação do mundo e da humanidade e sobre o pecado original. O bom do Cassa desbobinou aquilo que do Génesis tinha apreendido, terminando com esta tirada reveladora de que bem tinha entendido as consequências do pecado original: “E como o Adão e a Eva desobedeceram a Deus, foram expulsos do paraíso e por isso é que há toda esta chatice do trabalho.”

Mas voltemos à lembrança da rotina diária. Aos serões, sem rádio e com iluminação deficiente, iamo nos entretendo com a leitura de algum livro e com a dos jornais que, por atacado, eram trazidos pela camioneta da carreira quinzenal que, como já referi, fazia a ligação da estação do caminho de ferro do Lucala a Maquela do Zombo. À falta de melhor divertimento, também iamos acompanhando o voejar, por vezes
trágico, de borboletas e de outros insectos nocturnos em volta da chaminé do candeeiro. Seguíamos, igualmente, a evolução das simpáticas osgas pelas paredes, sempre à coca de alguma mosca desprevenida. Em uma das noites rimo nos com vontade do percalço que a uma delas aconteceu. Ao avistar aquilo que, na penumbra, parecia uma mosca pousada na parede e em boa posição, iniciou a aproximação, pata ante pata, e ao chegar à distância conveniente, formou o salto para a abocanhar. Mas o pior é que não se tratava de uma mosca mas sim da cabeça de um prego e a boa da osga, ao sentir a dor e porventura o fracasso, se é que as osgas são passíveis desse sentimento, como que envergonhada, correu pela parede acima e foi esconder se num buraco existente na junção desta com o tecto.

Durante meses seguidos as horas de lazer da comunidade da vila da Damba eram poucas e assentavam, quase que exclusivamente, em alguma festividade a que compareciam, também, os habitantes das sedes dos postos, os fazendeiros e famílias e também gente ida de Maquela do Zombo, que era a vila mais próxima. Uma proximidade muito relativa, pois a distância que separava os dois agregados ultrapassava a centena de quilómetros. À gente de Maquela também se juntavam os engenheiros e técnicos superiores das minas de cobre do Mavoio e respectivas famílias. Estas minas eram exploradas pela Empresa do Cobre de Angola, pertencente ao grupo da CUF.

O programa das festas era sempre o mesmo: torneio de tiro aos pombos ou aos pratos, desafios de futebol e de voleibol e serão de convívio, com música e dança e também uma refeição comunitária com petiscos e doces oferecidos pelas senhoras da terra. Em Maquela e no Mavoio igualmente se organizavam festejos do mesmo tipo a que a população da vila da Damba também comparecia.

Para além destas festividades, que nem em todos os anos se realizavam, também acontecia passar pela Damba, lá de longe em longe, um cinema ambulante, com sessões realizadas na oficina de carpintaria e de móveis de junco da Administração, e para as quais cada um dos assistentes tinha de levar de casa a cadeira em que se sentaria.Não faltavam, também, bancos improvisados em que pranchas e tábuas da oficina
assentavam em tijolos ou blocos de cimento. Nessas bancadas se acomodavam os habitantes das aldeias vizinhas que não tivessem levado cadeiras. Os filmes eram velhos e a máquina de projectar já muito cansada, o que ocasionava frequentes interrupções. No regresso a casa, não raras vezes se tinha de procurar, sobretudo nos dedos dos pés, as pulgas penetrantes, bitacaias ou matacanhas, no falar corrente, em início do seu trabalho de penetração na pele para sequente implantação do saco com ovos.

Caso falado e relembrado foi o espectáculo dado por um prestidigitador e entertainer conhecido pelo nome artístico de Professor Ferusa e por um seu companheiro cujo nome já olvidei, e que preenchiam um serão com passes de magia, imitações e canções, em playback, de artistas conhecidos e que eles, com inegável graça, procuravam mimar.

Um fotógrafo ambulante, de apelido Silva e mais conhecido por Silva Batoteiro, que percorria as aldeias à procura de fregueses que necessitassem de retratos para os seus documentos oficiais ou para ostentarem nas suas habitações, quando da passagem pela Damba, improvisava, no Hotel, serões de jogo com uma roleta portátil, com que se entretinham alguns comerciantes e empregados. Era um jogo clandestino mas que as autoridades toleravam por servir de passatempo a quem dele tanto precisava. E dizia se que o bom do Silva, revoltado com o apodo de Batoteiro que o marcava, costumaria dizer: «Toda a gente joga a batota mas eu é que sou o bode respiratório».

Os domingos eram dias de repouso, por todos respeitado, e a residência do administrador funcionava, durante a tarde, como ponto de reunião de algumas das famílias, quase sempre as do médico, do veterinário e do secretário da administração. Conversava se, jogava se alguma inocente partida de cartas e também se merendava. Por vezes servia de anfitrião o médico, o veterinário ou o secretário e, de longe em longe, a reunião dominical era feita em algum dos postos administrativos mais próximos (Camatambo e 31 de Janeiro) e na residência do respectivo chefe.

Dambianos de origem lusitana.

 O convívio das crianças na Damba, no tempo colonial.

Enquanto estive na Damba, vários chefes passaram pelos postos. Em maior número pelo de Camatambo (4), talvez por ser o mais isolado e dotado de piores instalações, a seguir pelo de 31 de Janeiro (3) e, por último, pelo do Bungo (2) .

 

No Bungo já estava há bastantes anos, quando eu cheguei à circunscrição, em 1945, e ali permaneceu até atingir o limite de idade em 1953, o velho e prestigiado chefe Jacinto António Camacho, que ao Congo chegou por volta de 1918, como cabo do Exército, tendo exercido as funções de chefe do posto militar do Mucaba. Quando as capitaniasmores e os postos militares foram substituídos por circunscrições administrativas e postos civis, foi integrado no Quadro Administrativo então criado. Foi sempre funcionário exemplar e respeitadíssimo pela gente dos postos que chefiou.

 

 

Num dos dias em que fui ao Bungo para verificar como os serviços estavam a decorrer, convidei­o para me acompanhar, na carrinha, até ao limite com o posto do Ngage, do concelho de Ambaca, e ao cruzarmo nos com um homem que seguia pela estrada, logo me informou de que não era natural nem residente na área do seu posto, interrogando se sobre os motivos da sua presença. Ao regressarmos ao Bungo, passado pouco tempo, ultrapassámos o mesmo homem e o chefe Camacho de imediato me pediu para pararmos. Falando em quicongo, dialecto que dominava inteiramente, lá indagou da proveniência e das razões da sua viagem. O homem pertencia ao vizinho posto do Puri, onde o chefe já estivera colocado, e logo lhe perguntou qual a kanda a que pertencia e a aldeia em que vivia. Ao obter estes elementos, iniciou se animado e amistoso diálogo, em que predominou o pedido de informações sobre diversos habitantes daquela aldeia, incluindo o respectivo chefe e também sobre o soba da região que o Camacho bem conhecia. E assim aquele velho chefe de posto: conhecedor até ao mínimo pormenor de tudo quanto na sua área ocorria, e inteiramente dedicado à melhoria do bem estar e à defesa dos direitos dos seus súbditos, que por ele nutriam a maior estima. Continuou a viver no Bungo após a aposentação e atribuo à sua presença o facto de aquele posto nunca ter sido atacado durante os acontecimentos de Março de 1961, que ensanguentaram todo o distrito do Congo.

Não interessa descrever aqui as características individuais de todos os meus colaboradores, a nível de chefe de posto, mas não resisto à tentação de, em levesx pinceladas, relembrar episódios respeitantes a três deles e que se diferenciavam pelo seu grau de preparação intelectual: um que não tinha ido além da instrução primária, outrocom habilitações equivalentes ao antigo curso geral dos liceus (quinto ano) e o terceiro com o curso superior colonial.

O primeiro, que esteve colocado no posto de 31 de Janeiro, virá a ser referido mais adiante, como principal personagem de episódio relativo ao abate de um leão, e que era funcionário de poucas letras e de muitas manhas.. Não me vou referir agora às manhas em que era pródigo nem à sua real capacidade de orientação de trabalhos externos, como reparação de estradas ou construção de improvisadas mas sólidas pontes, mas relembrarei apenas a redacção de dois ofícios em resposta a pedido ou a determinação dos respectivos administradores. Um dos casos aconteceu enquanto esteve como meu subordinado no posto atrás referido, e o outro no posto do Cariango, do concelho da Quibala, no distrito do Cuanza Sul.

Certo dia recebi do Governo do Distrito uma circular que transcrevia uma outra da Direcção dos Serviços da Administração Civil indagando se haveria autoridades tradicionais que estivessem interessadas em receber espadas e arreios de cavalos que estavam disponíveis nos Serviços Militares. Mandei transcrevê la aos postos e, passados dias, recebi as respostas. A do 31 de Janeiro informava que dois ou três sobas estavam interessados em receber espadas e que não era necessário nenhum arreio, porque naquele posto não existia nenhum zinino. De imediato despachei:

“Requisitem se as espadas. Quanto a zininos, há, pelo menos, um … ”

Também se contava que, anos antes, no mês de Maio, o administrador da Quibala tinha oficiado aos chefes dos postos, determinando a sazonal reparação das estradas, pois se tinha entrado na estação seca, que era a mais própria para tais trabalhos. E recomendava que, de preferência, se utilizasse pirite nos troços mais sujeitos à formação de lamas no tempo das chuvas. Pirite era a designação corrente em Angola da laterite. Decorrido um mês, recebeu do chefe do posto do Cariango um ofício redigido nos seguintes termos:

«Em resposta ao ofício n° tal, de tantos de tal, tenho a honra de informar V. Exª. que as estradas deste posto já estão todas piratadas. » E o administrador nele despachou: « Arme se um bergantim para dar caça aos corsários do posto de Cariango. »

E como as recordações são como as cerejas, quando se puxa por uma vem logo uma outra atrás, lembro me agora de um outro episódio relacionado com asininos, mas ocorrido uns anos antes e na província da Huila.

Todos os anos, quando do recenseamento para a cobrança do imposto anual, os chefes de posto também colhiam elementos de natureza económica e, destes, sobressaia o chamado arrolamento geral do gado. Mas aconteceu que, em determinado ano da década de quarenta, foi lançado um inquérito independente e bastante minucioso, da responsabilidade dos Serviços de Veterinária, que pretendia conduzir ao apuramento, tão exacto quanto possível, da riqueza pecuária da colónia. Foi elaborado um questionário em que se pedia o número de animais de cada espécie existentes em todos os sobados e, dentro destes, em cada povoação. A condução do processo foi entregue, como sempre, aos funcionários do quadro administrativo.

E foi no preenchimento deste questionário que aconteceu o caso que vou contar.Em um dos postos de um dos concelhos da então província da Huila, estava colocado um funcionário considerado como bastante competente e com notável capacidade para orientar trabalhos externos, nomeadamente os que se prendiam com a melhoria dascondições de vida da população rural, mas com uma deficiente preparação literária. Ao ler as perguntas constantes do questionário, não teve dúvidas quanto à identificação das espécies, com excepção de uma delas. Sabia que os bovinos compreendiam os bois e as vacas, os equídeos os cavalos e as éguas, os caprinos os bodes e as cabras, os ovinos os carneiros e as ovelhas, mas tropeçou nos asininos que, por serem raros na colónia, não figuravam no arrolamento geral de gados atrás referido. Como sair da dificuldade ?

Tinha ligação telefónica com a Administração do Concelho, mas não queria dar parte de fraco perante o administrador, seu imediato superior hierárquico, e com os colegas dos postos vizinhos não tinha facilidade de comunicação rápida. Pensou então que a solução estaria perto, na missão católica situada nas imediações do posto. E para lá se dirigiu na certeza de que o sacerdote ali em serviço o elucidaria. E quando o encontrou, logo lhe pôs o problema:

« Oh! senhor padre, venho aqui para lhe pedir um favor. Recebi um questionário sobre o numero de animais que há cá no posto. Já calculei o número dos bovinos, dos equídeos, dos ovinos e dos caprinos, mas não sei que raio de bichos são os asininos.

De imediato o missionário, querendo, por certo, desfrutar a ignorância do funcionário e, talvez, para se desforrar de qualquer anterior atitude menos correcta, lhe prestou maldosa informação:

Oh! senhor chefe, então não se está mesmo a ver que os asininos são animais com asas? Calcule o número de galos e galinhas e de patos e patas e preencha assim a resposta em falta no questionário.

Tendo resolvido, desta forma, o problema que tanto o preocupava, apressou se o bom do chefe de posto a dar cumprimento ao pedido. Actualizou os números respeitantes às outras espécies que totalizavam, cada uma delas, algumas centenas de cabeças, e por falta de elementos anteriores constantes do arrolamento, pois nestes não figuravam os tais asininos, estimou em muitos milhares o número de galináceos e afins existentes no posto. E lá seguiu para a Administração do concelho o ofício a acompanhar o cômputo da riqueza pecuária do posto.

Ao receber tal documento, o administrador logo detectou a incongruência que o elevado número de asininos representava, e apressou se a telefonar para o posto com vista à explicação da anomalia. E estabeleceu se o seguinte diálogo, após a troca de cumprimentos da praxe:

“Oh! senhor chefe, já estive a ler a sua resposta ao questionário sobre o número de animais existentes nesse posto e há nele uma coisa que não entendo. Como é que há aí tantos burros e eu nunca vi nenhum?

“Burros ? Eu não mencionei nenhum, pois é espécie que aqui não existe. Então você não anotou a existência de todos aqueles milhares de asininos?”

” O quê, senhor administrador? Então os asininos são burros? Desculpe lá o engano, mandar já outro ofício a desfazer o erro.

Dambianos de origem lusitana.

Os dambianos de origem lusitana,em 1947

Mas voltemos à Damba e à alusão a vivências em que figuram os outros dois chefes com melhor preparação académica. Ambos estiveram colocados no posto de Camatambo, um deles até ser transferido para o posto de 31 de Janeiro e o outro por ter sido promovido a secretário de circunscrição e colocado em Benguela. O primeiro era um funcionário muito competente e com boa preparação literária adquirida no Seminário das Missões, de Cernache do Bonjardim, e oficializada depois através de um curso comercial que funcionava em Moçâmedes. Chamava se João Marques Proença e da sua actuação não há que destacar qualquer episódio pitoresco, do tipo dos que tenho relembrado, mas apenas dois de outra natureza e que reflectem bem as vicissitudes que as condições de isolamento, as precárias instalações e a deficiente assistência sanitária impunham ao viver dos funcionários que serviam no interior de Angola e, em especial, dos do quadro administrativo.

Em certa ocasião, estando o chefe Proença ausente do Posto, por ter ido a Luanda, em serviço, a então única filhita do casal adoeceu gravemente, com alta febre e frequentes convulsões. Como no posto não existia nenhuma formação sanitária e era de todo impossível o pronto pedido de socorro médico, dada a inexistência de telefone e até de qualquer veículo automóvel, a Senhora D. Rosa Proença e a irmã que com ela vivia, entraram em pânico e resolveram pôr se a caminho da Damba, que distava mais de vinte quilómetros do posto. Na companhia do criado e de um cipaio, lá seguiram a pé, levando a criança ao colo ou deitada em improvisada tipóia que aqueles transportavam. Foi uma viagem bem penosa, em fria e húmida noite de cacimbo, sempre com receio de maus encontros com algum leopardo ou pacaça ferida, e marchando com a dificuldade própria de quem não está habituada a tão demorado e cansativo exercício. A acrescer ao esforço físico, o receio, sempre presente, de um agravamento da doença. Entraram na Damba já com o sol nascido e foram logo atendidas pelo médico que, através do relato dos sintomas que o mal tinha sucessivamente apresentado, prontamente concluiu tratar se de febres recorrentes, transmitidas por carraças da variedade que em Angola é conhecida por mabata Trata se de um ácaro hematófago que vive nas residências, escondido em frinchas durante o dia e atacando o homem durante a noite para lhe sugar o sangue. O médico quis confirmar o diagnóstico e pediu­ me para averiguar se na residência do posto havia na verdade mabatas e, em caso afirmativo, obter algumas para observação. Na primeira visita que depois fiz ao posto, perguntei ao cabo dos cipaios se seria possível apanhar algumas mabatas. « É para já senhor administrador.» E imediatamente se pôs a esgravatar na junção da parede de adobes com o pavimento de betonilha, quase a esfarelar se por terem poupado cimento quando da sua aplicação, e num abrir e fechar de olhos apanhou mais de meia dúzia de ácaros que, metidos em caixa de fósforos vazia, levei para a Damba para entregar ao Delegado de Saúde.

Cerca de um ano depois, e estando o chefe Proença já colocado no posto de 31 de Janeiro, a esposa chegou ao termo de nova gravidez e foi para a Damba para ali se efectuar o parto, com a assistência do médico, ficando hospedada em nossa casa. Por coincidência, a hora chegou precisamente no dia da visita pastoral do Senhor Arcebispo D. Moisés Alves de Pinho que por o seu quarto ser contíguo àquele em que decorria o trabalho de parto, teve de ouvir as lamentações da parturiente até que aquele foi concluído. A Maria Helena e eu também estávamos incomodados com a ocorrência e muito mais o estaria a paciente. O Senhor Arcebispo é que aceitou com total lhaneza o, para ele, inesperado acontecimento.

O outro chefe do posto de Camatambo a que atrás aludi, Mário Ferreira Gonçalves, de seu nome, era diplomado com o curso superior colonial e irmão de dois outros funcionários administrativos: o inspector Octávio Ferreira Gonçalves, que também possuía o mesmo curso, concluído anos antes, e que na altura desempenhava as funções de Curador dos Negócios Indígenas na colónia de S. Tomé e Príncipe, depois de ter passado por Angola e Moçambique, e o chefe de posto Rui Ferreira Gonçalves.

A sua adaptação ao meio e à função pareceu um tanto difícil nos primeiros dias que passou na Damba, após a apresentação na Administração, ido directamente de Luanda logo a seguir ao desembarque. As informações que em Luanda lhe tinham dado sobre o posto, levaram no até a pôr a hipótese de desistir da carreira e de regressar imediatamente a Lisboa. Com muita serenidade e espírito de camaradagem, fui procurando afaze lo, aos poucos, à realidade da vida de um funcionário administrativo, com as suas dificuldades mas também com os seus aspectos positivos e até aliciantes.

Não o atirei logo para o isolamento do posto e fiz dele um colaborador de todas as horas, iniciando o nas lides burocráticas com a ajuda do secretário da circunscrição, também nosso colega de curso, e levando o comigo em todas as deslocações que tinha de fazer, quer nas visitas aos outros postos ou às plantações de café de europeus, quer no contacto com as populações rurais. Ao Camatambo, seu posto de destino, só o levei alguns dias após a chegada e quando já se ia habituando à vida no mato africano. Estava instalado no hotel da terra mas quase todos os dias jantava na minha casa e conosco passava o serão. Moço muito inteligente, educado e espirituoso, era para nós uma bem agradável companhia.

Passado algum tempo levei o novamente ao posto, com o aspirante que, interinamente, estava por ele responsável, para que este lhe fizesse a entrega dos livros, valores e móveis da secretaria e também de todo o recheio da parte do edifício destinada a habitação. Lá os deixei e, passados dois dias, voltei ao Camatambo para os levar de novo para a Damba onde o Mário Gonçalves permaneceu mais um curto período, findo o qual o fui deixar no posto para definitiva fixação. Ali ficou entregue a si próprio, sem qualquer contacto com a Administração. Passados uns oito dias recebi dele uma carta em que já se mostrava bem ambientado e me pedia o envio de alguns sacos de cimento, de pincéis e de quaisquer restos de tinta que tivessem sobrado de obras anteriores, pois desejava começar a melhorar as instalações. Muito me agradou a reacção e, de mim para mim, fui forçado a concluir: “temos homem”

O pedido foi imediata e integralmente satisfeito e com acréscimo de outros materiais e ferramentas que considerei necessários. Alguns dias depois, fui ao Camatambo e dei com o Mário, empoleirado em tosco andaime, a ultimar a pintura do tecto da sala de jantar. Aconselhei­o a refazer integralmente os pavimentos de todas as divisões e a acrescentar lhes rodapés, também de argamassa de cimento de bom traço, na tentativa de se acabar de vez com os refúgios de mabatas a que em outro passo aludi.

O entusiasmo que punha na melhoria das condições de habitabilidade da casa tinha muito a ver com a próxima chegada da noiva que deixara em Lisboa e com quem casou, por procuração, passado pouco tempo.

E quando regressou de Luanda com a noiva, atirou se com todo o entusiasmo ao trabalho corrente do posto e à melhoria das condições de vida da população nativa, instalando mesmo uma oficina de carpintaria e de móveis de junco que, a exemplo do que acontecia na da Damba, servia de escola para formação de novos artífices. Passado pouco mais de um ano foi promovido a secretário de circunscrição e colocado em Benguela e algum tempo depois foi transferido para Moçambique onde prosseguiu uma brilhante carreira.

Um pouco de compreensão e um amigável apoio nos primeiros passos da vida profissional foram o suficiente para que não se perdesse um exemplar servidor do ultramar.

Após a saída do Mário Ferreira Gonçalves do posto de Camatambo, foi ali colocado, interinamente , o aspirante Manuel da Silva Barreiros que estava a trabalhar na administração do concelho e cuja esposa, professora diplomada, tinha ajudado a resolver, com brilho, o problema da falta temporária de docente no posto escolar da Damba. Era uma profissional muito competente e uma verdadeira senhora cujas calma e ponderação contrabalançavam o espírito um tanto irrequieto do marido que era, aliás, um excelente funcionário. Tinha o casal três filhos, duas meninas e um rapaz. As duas mocinhas era amorosas, a mais velhita muito sisuda e a outra, que não teria mais do que dois anitos, irradiava alegria. No meio estava o rapazito, com cerca de quatro anos, cheio de vida e de imaginação e com perfeito à­vontade nas relações com os adultos.

Eu gostava muito de conversar com ele e deliciava­me a ouvir as histórias que com fértil imaginação ia inventando, desde movimentadas caçadas a elefantes e pacaças até pormenorizada descrição de uma sua viagem à lua, muito embora a quase vinte anos de distância do feito de Neil Armstrong e companheiros. O miúdo chamava­se Acácio Frias Barreiros e veio a ser político de nomeada como deputado pela UDP e com intervenções na Assembleia da República caracterizadas pela frontalidade e pela irreverência.

 

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