Do meu Bornal de recordação – A colaboração com o delegado de Saúde e os missionários

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).

 

Outra actuação que contribuiu para a melhoria das condições de vida da população, foi o clima de franca colaboração que passou a haver entre a Administração e a Delegacia de Saúde, muitas vezes ensombrada, no passado, por conflitos entre os responsáveis pelos dois sectores, e também o amistoso acolhimento, o apoio e a ajuda material aos missionários capuchinhos que, em 1948, se fixaram na Damba e logo iniciaram construção dos edifícios destinados à vida da missão e também uma profícua actividade evangelizadora, educacional e sanitária. Este apoio manifestou se, também, nas informações entusiásticas dadas ao governador geral Silva Carvalho sobre a actuação destes prestimosos missionários italianos e que deram origem à imediata atribuiçãode vultoso subsídio para a continuação das obras em curso e o início de outras, como as da escola e do internato, e, de seguida, à constante ajuda material para a instalação de outras missões nos distritos do Congo e de Cuanza Norte e à de N. Senhora de Fátima, num dos musseques de Luanda. Recordo a chegada à Damba, para um primeiro contacto, à laia de prospecção, de três daqueles missionários: o superior, padre Graciano de Leguzzano26, e os padres Camilo de Terassa e Hilarino de Cassaco, que, com o irmão José,viriam a fundar a missão da Damba.

O senhor Arcebispo de Luanda tinha destinado aos capuchinhos acabados de chegar, a instalação de missões novas em Camabatela e Quiculungo, no concelho de Ambaca, e na Damba. Em Luanda ficariam a tomar conta da já antiga missão de S. Paulo.

Foram ter comigo à Administração para me porem a par da sua incumbência. Estava se a meio da manhã, e por isso mandei recado a minha mulher para contar com eles para o almoço e para mandar aquecer água para banhos, pois deles estavam bem carenciados.

Estava se em Agosto, em plena estação seca, conhecida em Angola pela designação de cacimbo, e o rodar pelas estradas de terra batida levantava nuvens de poeira que se colava aos fatos e à pele. Como viajavam em jeep aberto, pode calcular se o estado em que se apresentavam. Vestiam os hábitos de trabalho de religiosos franciscanos capuchinhos e, de acordo com a regra da sua ordem, usavam compridas barbas e tonsura no cabelo. Pele, cabelo e barbas, assim como os hábitos, estavam cobertos por espessa camada de pó vermelho. Quando chegámos a casa, a minha filha Ana Maria,com três anos de idade, e que nunca tinha visto ninguém com barbas e com aquele tipo de vestimenta e, ainda por cima, naquele estado de sujidade, olhou para eles,desconfiada, e apesar de ser muito comunicativa, daquela vez não abriu boca. Lá os cumprimentou muito a medo e, logo que pôde, saiu da sala onde nos encontrávamos.

Quando a empregada Ihe quis dar o almoço, não deu com ela em nenhuma das divisões da casa. Alarmada, deu nos conta da ocorrência e ao fim de aturadas buscas lá a fomos encontrar, muito encolhida, debaixo da cama do quarto de hóspedes. Não tinha ganho para o susto !

E lembro, agora, a prática que, já como administrador, institui de convidar o médico e o superior da missão católica para irem comigo nas visitas às zonas mais distantes e em que as populações tinham maiores dificuldades de acesso às sedes da circunscrição e dos postos administrativos, onde se situavam as formações sanitárias.

Também era corrente o recíproco empréstimo de viaturas automóveis sempre que uma destas entidades, missionário, médico e administrador, tinha a sua avariada. E vem a propósito relatar um episódio em que o empréstimo do jeep da missão ao administrador está ligado à franca colaboração da Administração com os Serviços de Saúde e ao empenhamento da população rural em iniciativas de seu exclusivo interesse.

Certa noite bateu me à porta o Dr. Pinto da Fonseca, chefe do serviço de combate à doença do sono, que se dedicou de alma e coração à sua missão e conseguiu irradicar,quase por completo, esta doença que flagelava as populações de diversas zonas de Angola. Ia acompanhado do delegado de Saúde e logo de entrada me disse que me ia fazer um pedido cuja satisfação reputava impossível no prazo previsto, mas que,de qualquer modo, era indispensável levar a cabo. Tratava se da preparação de um acampamento para instalação da Brigada de Pentamidinização na meia dúzia de dias em que ela terminaria o serviço no concelho de S. Salvador do Congo. Tinha estado previsto um outro esquema, mas chegara se à conclusão que seria melhor saltar para a região do Pete, no posto sede da Damba, onde tinham sido detectados bastantes casos novos de tripanosomíase. Como tinha plena confiança na capacidade de resposta da gente do soba Pedro Cussonga, que habitava aquela área, imediatamente me prontifiquei a assumir o compromisso de instalar o acampamento no tal prazo impossível decumprir. Só lhe pedi os planos do acampamento, com desenhos, à escala, dos alçados e plantas.

Como tanto eu como o médico tínhamos as carrinhas avariadas, fui ainda nessa noite à missão pedir a cedência do jeep, a que o superior logo acedeu, prontificando se a ser ele próprio a conduzi lo. Na madrugada seguinte lá fomos para o Pete para escolher local apropriado e falar com o soba e os sobetas. Disse lhes o que pretendia, o prazo que tínhamos de cumprir e a finalidade da tarefa. Já tinham conhecimento da existência da brigada e dos bons resultados da sua actuação nas áreas por onde tinha passado, e imediatamente se prontificaram a colaborar. É que à Pentamidina, poderoso profilático da tripanosomíase, já chamavam a injecção da saúde.

Depois de escolhido e demarcado um terreno plano, suficientemente amplo, à beira da estrada e perto de uma povoação, salvo erro a de Bulu Matumbi, disse lhes que seguiria imediatamente para a vizinha região do Huando, para ali marcar um outro acampamento e que, quando regressasse, na tarde do dia seguinte, o terreno já deveria estar todo capinado e endireitado, para nele poder marcar os perímetros das construções,e que esperava ver reunidos muitos molhos de capim, assim como paus e caules de bambus e de papiros para as paredes e coberturas dos alpendres de trabalho, de casas de arrumações e dormitórios para o médico, o enfermeiro, agentes sanitários e microscopistas. O soba bem me perguntou quantas pessoas seriam precisas, mas só lhe respondi que deveria reunir toda a gente válida dos arredores.

Nesse mesmo dia contactei com o soba Daniel Malungo, do Huando de Baixo, e escolhi o local para a instalação do acampamento. Na manhã seguinte, marquei no solo, com estacas, as diversas construções a erguer e iniciei o regresso à Damba com paragem no Pete para fazer idêntico serviço e verificar o andamento da recolha de materiais.

Encontrei o terreno impecavelmente capinado e endireitado, já muito material reunidoe enorme azáfama nas matas vizinhas, onde se cortavam paus, capim, bambus e muxingas , estas para consolidação das armações de paus e bambus, tanto das paredes como das coberturas. A simples explicação da finalidade do trabalho e das vantagens do empreendimento tinham levado as autoridades tradicionais e a sua gente a colaborar com entusiasmo e sem a necessidade de usar qualquer tipo de coacção.

Na véspera do dia marcado para a chegada da Brigada estava o acampamento pronto para a receber, podendo iniciar se logo o trabalho: punção de gânglios cervicais,observação ao microscópio do líquido recolhido e injecção de Pentamidina.

Passado algum tempo o Dr. Pinto da Fonseca confessou me que nunca esperara que o acampamento estivesse concluído no termo do prazo marcado, tanto mais que nas outras zonas tinham sido consumidas algumas semanas mais. Milagres do bom entendimento entre as autoridades e a população, alicerçado na mútua confiança e na transparência da actuação. Esse bom entendimento esteve também patente num episódio relacionado com os ritos da iniciação da puberdade.

 

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