Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS. (Administrador da Damba 1945-1953).
Com a instalação do governo da província do Congo, sentiu se a necessidade do estabelecimento de nova carreira aérea, ligando Luanda ao aeródromo mais próximo do Uige e que era o do Toto. Esta pista estava implantada na fazenda agrícola que tinha aquele nome e se situava na área do posto do Bembe. Pertencia, como atrás já referi, ao dinâmico e velho colono Cid Adão Gonçalves que também ali explorava um hotel e uma bem apetrechada oficina de reparação de veículos automóveis. Esta carreira teve logo apreciável movimento de passageiros e passou a transportar todo o correio destinado ao Uige e outras povoações vizinhas. Situava se o Toto a poucas dezenas de quilómetros da sede da nova província e uma carrinha do governo ali ia todos os dias de carreira, para entregar e receber o correio. O encarregado do governo, Rui Leitão, achou por bem substituir a carrinha por uma motocicleta, por ser mais económica a sua manutenção. E a motocicleta, fornecida pela Casa Americana, grande firma importadora de Luanda, entrou imediatamente ao serviço. Mas como não estava prevista no orçamento a sua aquisição e talvez também por descuido do serviço de contabilidade, foi sendo protelado o seu pagamento, apesar de repetidas diligências do fornecedor.
Este, não obtendo resposta aos seus reiterados pedidos de liquidação do débito, resolveu queixar se, por escrito, ao Governo Geral da colónia. O caso foi parar às mãos do secretário geral, Dr. Tavares de Carvalho, que logo lançou um despacho, bastante duro, impondo a liquidação imediata do calote.
Ora aconteceu que, passados um dia ou dois, chegou ao seu termo a comissão do governador geral Vasco Lopes Alves, não tendo o ministro do ultramar determinado a sua recondução. Como nesse tempo o secretário geral acompanhava a sorte do seu imediato superior hierárquico, o despacho por ele exarado no caso da motocicleta, só chegou ao Uige quando já tinha deixado de exercer as suas funções de governo. E o intendente Rui Leitão, agastado com a dureza da reprimenda, limitou se a despachar no ofício que a transmitira: Tarde piaste !
Anos antes, ao ser transferido da Intendência do distrito do Zaire, elaborara o inventário da carga de móveis, utensílios e outros bens da residência e da repartição que estavam à sua responsabilidade, para serem apensados ao termo de entrega ao seu substituto.
Este, passados alguns dias, chegou à conclusão de que faltavam alguns cartuchos para espingarda Kropatchek à guarda da Intendência e logo comunicou o caso ao Serviço de Material de Guerra, adstrito ao Comando Militar da colónia. O respectivo chefe prontamente oficiou ao funcionário faltoso, já então colocado em outro distrito, responsabilizando o pelo desaparecimento dos cartuchos e impondo lhe a obrigação de rapidamente os repor.
Ao receber a comunicação e ferido pela atitude do colega, uma vez que os cartuchos pouco valiam e facilmente poderiam ser abatidos à carga, limitou se a despachar no ofício recebido :Seja me presente no ano de 2 000 ! E nunca mais pensou no caso.
Outro episódio engraçado ocorreu no final da década de trinta, tendo como principal personagem um chefe de posto colocado no posto do Puri, da circunscrição de Sanza Pombo, e que para Angola tinha ido como cabo do Exército e que ingressara depois no quadro administrativo por influência de patrício seu, transmontano dotado de prestígio e poder. Este chefe de posto, cujo nome não interessa revelar, era useiro e vezeiro em manobras e habilidades tendentes a elevá lo no conceito dos seus superiores hierárquicos. Alguns terá havido que, por ingenuidade ou até por inconfessável interesse, não se aperceberiam ou fingiriam ignorar certas atitudes e práticas por vezes inteiramente ilegais e outras a rasar o limite do eticamente aceitável.
Estava Rui Leitão a desempenhar as funções de intendente do então distrito do Congo, com sede em Maquela do Zombo, distrito a que a circunscrição de Sanza Pombo pertencia quando ocorreu o tal episódio.
Um dos sobas daquela área foi queixar se ao chefe do posto de que um leão estava a matar muitas cabeças de gado bovino e a aterrorizar a sua gente, impedindo as mulheres de trabalhar nas lavras e de ir à água e à lenha para a satisfação das necessidades domésticas. E pediu providências, traduzidas essencialmente no envio de cipaios com armas e munições do posto, a fim de se organizarem as necessárias batidas e esperas destinadas ao abate da fera. O chefe prontamente acedeu ao pedido, entregando espingardas Kropatchek e as respectivas munições a dois cipaios e também a um hábil e destemido caçador, habitante de sanzala próxima, recomendando prudência e ordenando que o avisassem sem demora quando tivessem morto o leão. Ordenou, ainda, que não o esfolassem antes de ele chegar ao local.
Passados dois ou três dias chegou ao posto um estafeta, enviado pelo soba, para dar conta do abate da fera e do contentamento que reinava entre a gente do sobado. De imediato o chefe do posto se aprontou para seguir para o local da caçada, levando consigo um comerciante europeu que era possuidor de máquina fotográfica. Ali chegado, preparou o cenário para o entremez que planeara. Colocado o cadáver do leão em postura favorável, nele se sentou o chefe, empunhando a espingarda e exibindo ar de valentão, pronto para futuro alardear de façanha cuja veracidade a fotografia, então feita, ficaria a comprovar.
Regressado ao posto, tratou de lavrar minucioso auto de notícia em que descrevia, com prolixidade e num português não de todo correcto, a sua imaginada intervenção directa na morte do leão e que revestiu de pormenores em que ficava bem patente o perigo a que estivera sujeito e a coragem com que enfrentara a carga da fera, mal ferida com o primeiro tiro que o atingira. Composto o conveniente quadro e à laia de conclusão, alinhou, no final, uma série de propostas que, através do administrador da circunscrição, viriam à ser submetidas a apreciação e despacho do intendente do distrito. E nelas se alvitrava:
a) Que pele do leão fosse oferecida ao intendente do distrito;
b) Que se procedesse ao abate à carga do posto de largas dezenas de cartuchos de espingarda Kropatchek que teriam sido utilizados na caçada;
c) E que ao heróico chefe de posto fosse oferecida a espingarda com que abatera a perigosa fera.
Chegado o processo à sede do distrito, foi de pronto submetido a despacho do intendente. Este, que era, como atrás se disse, o Rui Leitão, já conhecia de tradição as artimanhas do chefe e já estava alertado para o que, na verdade, ocorrera na morte do leão. E logo pensou que a proposta de abate de tantos cartuchos, se destinaria a
cobrir o seu gasto indevido em anteriores caçadas de outro tipo. Por isso, de imediato despachou:
a) Apenas serão abatidos à carga do posto os cartuchos que, comprovadamente, tenham sido utilizados no abate do leão;
b) Quanto à oferta da espingarda ao proponente, nem pensar nisso;
c) E quanto à pele, que fique para o heróico chefe de posto, enquanto não se conseguir uma de urso que será a que melhor lhe quadra.
Como já por mais de uma vez referi, as casas dos administradores de circunscrição e, também, as dos chefes de posto, eram como que portos de abrigo para funcionários em trânsito e até para alguns particulares. E foi na Damba que mais funcionou essa como que instituição, dadas as condições do meio. É certo que havia uma modesta hospedaria que pomposamente ostentava o nome de hotel, mas só muito raramente os funcionários
que pela Damba passavam ali se alojavam. Apenas me lembro de uma excepção, aliás inteiramente justificada; foi a do inspector administrativo Baptista de Sousa quando na Damba esteve em serviço de inspecção. Não era curial que um inspector se hospedasse em casa do inspeccionado e se sentasse à sua mesa. Enquanto durou a inspecção à sede da circunscrição, apenas passava pela residência já depois de ter jantado na hospedaria, para conosco tomar café e passar o serão. Logo que iniciou a inspecção aos postos, passou a jantar na minha residência.
Estiveram na Damba e por mim foram hospedados algumas dezenas de altos funcionários dos serviços centrais de Luanda, mas chegam e até sobram os dedos de uma só mão para contar os que, de alguma forma, tiveram para mim e para minha mulher alguma atenção quando das nossas idas à capital. Apenas me recordo de termos
sido convidados para jantar nas residências de três altos funcionários: o Procurador da República Dr. Manuel de Mascarenhas Gaivão, o Dr. Manuel Ramos de Sousa, director dos Serviços de Economia e o Capitão Olegário Antunes, comandante geral da Polícia de Segurança Pública.
Visitas sempre recebidas com muito agrado eram as dos colegas dos concelhos vizinhos nas suas passagens pela Damba. Sabiam se as novidades que, de qualquer modo, afectavam o quadro a que pertencíamos, trocavam se experiências e até, por vezes, se entrava na má lingua. Mas se eu os recebia com prazer, eles também me pagavam na mesma moeda. Mas, neste aspecto, há que referir uma excepção. Quando passei a desempenhar as funções de administrador, ia todos os meses a Maquela do Zombo para fazer a entrega das receitas do Estado na Tesouraria de Fazenda Pública, uma vez que na Damba não existia tal serviço. Hospedava me no modesto hotel da vila mas era sempre obsequiado com convite para alguma refeição, quer pelo intendente do distrito,
quer pelo colega que se encontrava à frente do concelho.
Enquanto administrei a Damba, sucederam se em Maquela do Zombo uns quatro administradores e apenas um deles não teve para comigo a menor das atenções e esse procedimento aberrante em relação à prática corrente, deu origem a uma picardia minha.
A meio da manhã de determinado dia, apareceu me esse colega na Administração acompanhado dos seus dois filhitos. Fomos conversando e a certa altura um dos miúdos disse ao pai que estava com sede. Logo o outro lhe seguiu o exemplo e o próprio colega manifestou igual apetência. Como não tinha água na Administração, convidei os a dessedentarem se na minha residência. Ali chegados, disse ao criado para trazer copos e um jarro com água, mas logo ele, admirado com tal ordem, pois bem conhecia os hábitos da casa, me lembrou que havia cerveja e refrescos no frigorífico. Recordando as muitas idas a Maquela sem que desse colega recebesse qualquer atenção, de pronto retorqui: “Faz o que te mandei, porque o senhor administrador e os meninos só querem água fresca. Despediu se pouco depois e vim a saber que fora a almoçar à hospedaria.”
Com a colaboração de Artur Méndes
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