Do meu Bornal de recordações – Os agricultores

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953). 

 

A agricultura era a principal actividade da população africana e a ela também se dedicavam alguns europeus, todos estabelecidos na região do Huando, do posto sede. Eram sete as verdadeiras fazendas ali existentes, quatro exploradas por europeus, uma por um mestiço oriundo de S. Tomé, e as outras duas por africanos. Classifico como fazendas as plantações já com alguns hectares de mata desbravada e convenientemente amanhada, com instalações para pessoal, terreiros para secagem do café e armazéns. Contavam‑se igualmente largas dezenas de lavras, também de café, espalhadas pelas  matas do mesmo posto sede e pelas dos postos de 31 de Janeiro e do Bungo, pertencentes a agricultores africanos. Só o posto de Camatambo é que não oferecia condições ecológicas propícias a tal cultura.

Cada um dos proprietários europeus daquelas fazendas tinha as suas características próprias, uns mais cultos e outros semianalfabetos, uns mais aprumados, outros mais desleixados, vivendo uns em precária mediania económica, enquanto que outros não ultrapassavam uma situação de bem nítida pobreza.

 As relações com a população local eram boas, muito boas mesmo na maioria dos casos, e só de longe em longe surgia alguma queixa com base em atrasos no pagamento de salários, que a pronta intervenção da administração facilmente solucionava.

De todos estes agricultores, um se destacava pela idade, pelo fino trato e pela forma de viver. Era um rijo beirão da Beira Baixa, já septuagenário, que tinha sido próspero comerciante no Congo Belga e que a crise mundial de 29 obrigara a de todo modificar a sua vida, vindo estabelecer‑se na região do Huando e fazendo nascer do nada uma plantação de café da qual, ao fim de alguns anos, já obtinha razoável produção. Em saudosa recordação da sua aldeia natal, deu‑lhe o nome de Novo Fratel.

Em Leopoldville dirigira uma firma por ele criada e que se dedicava ao comércio de importação e exportação de mercadorias. Chegou a ser dirigente da Câmara de Comércio daquela capital, deslocando‑se com frequência a Bruxelas em viagens de negócios.

Tinha três filhas mestiças, sendo duas delas ainda bastante moças quando se fixou no Huando. A mais velha tinha proporcionado esmerada educação em colégios belgas e portugueses e também no Conservatório de Música de Lisboa, onde concluiu o curso superior de piano. As duas mais novas  foram viver com ele para a Fazenda Novo Fratel, mal tinham concluído a instrução primária. Mas o pai nem por sombras admitia que elas ficassem muito distanciadas da irmã mais velha a nível de preparação intelectual.

Mas como resolver o problema em pleno mato, distante da sede da circunscrição cerca de sessenta quilómetros, por picadas e estrada, e mais de quarenta quilómetros por caminho de pé posto e tendo de vadear alguns cursos de água de forte caudal ? Na vila da Damba nada podia solucionar, dado que ali apenas funcionava um modesto posto escolar. Em Maquela do Zombo, sede do distrito, também não existia mais do que uma escola primária e em Luanda, onde se situava o liceu, as suas precárias condições económicas não permitiam que as pequenas lá se fixassem. Como sair da dificuldade aparentemente insanável ? Matutou, fez algumas consultas, e a solução veio‑lhe de uma livraria de Luanda a que tinha pedido ajuda. Tinham à venda uma colecção didáctica intitulada Curso dos Liceus em Casa. Imediatamente a encomendou e, após a chegada, logo se atirou ao trabalho, lendo cuidadosamente todos os volumes e escolhendo neles as matérias que reputou de maior valia para a formação das filhas. Optou pelo português, a matemática, a geografia e a história, encarregando‑se ele próprio do ensino do francês e dando especial ênfase ao francês coloquial. E conseguiu como que o milagre de, em pleno mato e quase sem qualquer convívio, preparar as suas filhas para a vida adulta, proporcionando‑lhes uma cuidada educação, tanto a nível cultural como social. Ambas vieram a sair da fazenda quando casaram, uma com comerciante estabelecido no Congo Belga e outra com um funcionário do Estado.

Outra faceta curiosa da sua personalidade era a de um forte querer, aliado a natural destreza manual, o que lhe permitiu a resolução de problemas de vária índole e correntes na situação de isolamento em que vivia. A título de exemplo, vou relatar apenas um que me parece bem elucidativo. Como gostava de se manter informado do que se ia passando, quer em Angola quer no exterior, e os jornais só com atraso de semanas podiam chegar à fazenda, resolveu adquirir um aparelho de radiotelefonia. Mas, naquele tempo, tais aparelhos ainda se encontravam em incipiente fase de aperfeiçoamento e sujeitos a constantes avarias. Nem na Damba nem em qualquer outra localidade, num raio de centenas de quilómetros, existia qualquer oficina de reparações ou mesmo um simples curioso que pudesse solucionar os arreliadores percalços que, nesse campo, se sucediam. Mandar o aparelho para Luanda era complicado e o seu retorno, após a reparação, era muito demorado. Concluiu que teria de ser ele próprio a assumir a resolução do impasse. E meteu mãos à obra inscrevendo‑se num curso de reparação de rádios por correspondência. Com as primeiras lições recebeu também algumas ferramentas e aparelhos de medida. Como era muito inteligente e hábil, depressa adquiriu os conhecimentos e prática suficientes para começar a resolver por si a maior parte das avarias que iam surgindo.

 A leitura de livros de divulgação de práticas de higiene e medicina naturistas convenceram-no de que a sua saúde beneficiaria se adoptasse um regime vegetariano na alimentação. E passou a segui-lo com rigor  nos dias úteis da semana, transigindo nos domingos com um regime misto em que se permitia consumir um frango assado nas brasas, o conhecido churrasco, tão apreciado em Angola.

Como pessoal doméstico tinha apenas ao seu serviço o cozinheiro, conhecido por Cuango, por ser natural da circunscrição do mesmo nome, que acumulava a sua função principal com todo o serviço interno e era dedicadíssimo ao patrão. Lembro-me perfeitamente de que sempre que ia à  Damba em serviço e tinha de tratar de qualquer assunto na Administração, pedia que o despachassem depressa, pois o seu velho patrão tinha ficado sozinho na casa da fazenda e não tinha ninguém que lhe fizesse nada do que precisasse. A informação não era de todo correcta, pois o velho fazendeiro tinha uma companheira, filha do soba da região, que no episódio que vou contar figura como a principal personagem.

Numa das minhas visitas às fazendas, para fiscalização da forma como os trabalhadores estavam a ser tratados, na inspecção feita à fazenda Novo Fratel, o proprietário pediu-me que o levasse para a Damba, onde tinha alguns assuntos a tratar. De salientar que nenhum dos fazendeiros da área possuía qualquer meio de transporte. Lá seguimos viagem e, pouco depois do seu início, disse-me ele com ar prazenteiro: – Então não quer saber, senhor administrador, que sou novamente pai ? Pois é verdade, a Buanda lá teve esta manhã um bebé. Parece que é forte e escorreito, mas eu ainda não o vi.

Felicitei-o e mostrei-lhe a minha admiração por, naquela idade, ainda poder ser pai. De pronto, retorquiu : – Não se admire, senhor administrador, o meu vigor vem do regime vegetariano que de há muito sigo.

Na visita que no mês seguinte fiz às fazendas, perguntei-lhe pela saúde do miúdo. Um tanto encabulado, logo me informou : – Deixe-me cá, senhor administrador, quando voltei da Damba é que vi que ele era preto retinto. Já corri com aquela marota.

Afinal, o regime vegetariano não tivera o efeito milagroso que ele lhe atribuíra. Não cheguei a apurar se o bebé seria parecido com o fiel cozinheiro !

 

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