Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).
O meu convívio com a população africana, quer nas povoações quer na Administração,foi sempre pautado pelo desejo de penetrar o melhor possível no conhecimento da sua estrutura e das suas principais instituições, com vista a poder orientar com certa segurança e possibilidade de êxito, uma sã política económica e social. Tinha a percepção de que, com esse conhecimento, muitos erros poderia evitar, pois cada vez mais me capacitava de que nada de útil e duradouro conseguiria, se as minhas iniciativas entrassem em choque com as concepções fundamentais do grupo e se não assentassem em instituições e valores que fizessem parte da sua cultura.
Para mim, aqueles primeiros anos passados na Damba, em contacto directo com a realidade do viver da sua população rural, tornaram me cada vez mais consciente das responsabilidades que me cabiam como funcionário administrativo, e foram afinando as qualidades que achava indispensável cultivar, como o espírito de observação, o bom senso, a paciência, a compreensão e também a firmeza. Fui interiorizando, também,a ideia de que não podia pretender a mudança repentina da forma de estar na vida daquelas populações, numa ruptura abrupta com o passado e numa adopção forçada dos nossos padrões culturais.
E esta minha forma de actuar levou à consolidação de relações cordiais com a população, com base na confiança nela despertada pela conduta que procurei seguir,sempre norteada pela transparência das intenções e por total autenticidade nas acções.Tudo isto levou ao estabelecimento de um permanente clima de concórdia e de respeito mútuo que muito contribuíram para facilitar a minha actuação e que conduziu a uma alteração muito sensível no estado de espírito da população rural, a nível individual e colectivo, que me proporcionou a obtenção de alguns êxitos que não me acanho de aqui referir.
Estava se num período em que nós, funcionários administrativos, éramos constrangidos, mesmo contrariando, na maioria dos casos, as nossas consciências e ao arrepio da lei, a actuar dentro de um sistema directa ou indirectamente determinado pelos responsáveis máximos pela governação de Angola e até com a encapotadatolerância do Terreiro do Paço, nomeadamente no tocante ao recrutamento de trabalhadores.
Recrutamento de trabalhadores,para o estado e para particulares,e de mancebos para serviço militar.
Os exageros praticados tinham provocado, na Damba e em todos os outros concelhos e circunscrições das regiões fronteiriças, um êxodo vultosíssimo para o então Congo Belga. Um administrador da Damba que, anos antes, tinha alertado os seus superiores hierárquicos para a inconveniência de a circunscrição fornecer mais um contingente de trabalhadores, recebeu, pouco depois, a comunicação de que, sobre a sua tomada de posição, o governador geral de então, havia despachado: «Forneça e deixe se de lamúrias».
Este estado de coisas não justifica mas explica o procedimento de alguns funcionários administrativos que, esquecendo a grandeza do seu múnus, se deixavam vencer por uma concepção materialista da vida e desonravam o quadro a que pertenciam. As circunstâncias atrás referidas e em que eram forçados a agir, facilmente os levavam a criar um ambiente psicológico que conduzia ao afastamento da rigorosa ética que devia orientar o seu procedimento.
Mas voltemos à minha experiência como secretário e administrador da circunscrição da Damba e aos êxitos a que atrás aludi.Quando ali cheguei, o administrador Bicúdo Costa, no intuito de sustar a verdadeira sangria demográfica que então campeava, havia proposto às instâncias superiores a fixação de um contingente máximo de trabalhadores a fornecer por aquela divisão administrativa, rateando o pelos quatro postos. Como a proposta foi aceite, o primeiro trabalho que neste sector empreendi, como responsável pelo posto sede, foi o do apuramento exacto dos trabalhadores da área que, nessa altura, estavam a cumprir contratos dentro e fora da circunscrição. Anotei, depois, os números dos fornecidos pelos diversos sobados e, dentro destes, pelas aldeias de cada um. Em face destes elementos, organizei como que uma conta corrente por sobas e sobetas ( chefes de aldeia) em que estavam nominalmente inscritos os trabalhadores que se encontravam ao serviço de organismos do Estado ou de empresas privadas, com as datas do início do contrato e do seu termo. Como sabia qual o contingente que cabia ao posto sede,calculei, por regra de companhia, o número que cabia a cada sobado e, dentro deste, a cada aldeia, de acordo com o número de homens válidos existentes e que correspondia ao dos recenseados para o pagamento do imposto pessoal. Havia uns que tinham ultrapassado esse numero e outros que o não tinham atingido.
Chamados todos os sobas e sobetas, expliquei lhes qual o sistema que ia ser posto em prática, ficando aliviados por uns tempos os que tinham gente a mais a trabalhar e esclarecendo os outros de que tinham de completar os seus contingentes. Ao mesmo tempo garanti lhes que estando os contigentes atingidos, nem mais um homem teriam de apresentar.
Este verdadeiro ovo de Colombo começou a surtir, em breve tempo, resultados espectaculares. As pessoas passaram a estar tranquilas nas suas aldeias, sem receio das reprováveis praticas que teriam estado em uso. E pouco depois teve início o retorno de muitas centenas de emigrantes fixados no Congo Belga, alguns deles exercendo ofícios de que a circunscrição estava deficitária, a ponto de termos de mandar vir, de outras divisões administrativas, pedreiros e carpinteiros para trabalharem nas obras que estavam em curso na Damba e nos postos. O caudal foi se avolumando, passando o número de contribuintes de 3 031, em 1944, para 3 897 em 1947, isto apenas no posto sede. Para se fazer ideia da sangria que a emigração tinha feito na população,basta indicar o número de contribuintes existentes em 1934 e em 1943, e que era,respectivamente, de 9 900 e de 2 823.
Em 1948 foi recebido em todos os concelhos e circunscrições situados em zonas fronteiriças, um questionário elaborado pelo então inspector superior de administração colonial capitão Henrique Galvão, referente a este problema da emigração de africanos para os territórios confinantes com Angola. A ele respondi com toda a isenção, não omitindo a referência ao trabalho compelido como sendo a causa primordial do fenómeno da emigração para o Congo Belga.
Alguns dias após a remessa da resposta para Luanda chegou à Damba, sem se fazer anunciar, o capitão Henrique Galvão. Mal entrou no meu gabinete perguntou me se já tinha respondido ao seu questionário e se tinha à mão algum exemplar da resposta.Entreguei lhe o que tinha no cofre, pois se tratava de expediente confidencial. A meio da leitura da sua primeira página começou a barafustar, dizendo não poder ser verdade o que eu afirmava quanto à reduzida importância que o problema da emigração tinha,então, na Damba. Com toda a calma, aconselhei o a continuar a leitura.Tenho tempo, pois já é tarde e quero ir jantar e dormir em Maquela do Zombo. Vou lê lo quando regressar a Luanda, ripostou ele.
Passadas algumas semanas chegou me pelo correio uma carta com o timbre da Inspecção Superior da Administração Colonial e o carimbo dos Correios de S. Tomé e Príncipe. Antes de a abrir ainda supus que fosse do meu parente Dr. Nunes de Oliveira que, na altura, também era inspector superior. Mas vi depois que era do capitão Henrique Galvão e cujos dizeres vou transcrever na integra:
S. Tomé ( a bordo ) 26 – XI – 948
Exmº. Senhor Secretário Manuel Alfredo de Morais Martins
Depois de ter examinado numerosos relatórios em resposta ao meu questionário sobre a emigração de indígenas, foi, até agora, o seu o unico que me satisfez. O questionário está redigido com inteligencia e com verdadeiro espirito informativo. Julgo de meu dever dar-lhe conta desta impressão.
Não o faço por enquanto oficialmente porque talvez esse louvor oficial o não beneficiasse. Mas arquivo, sem me esquecer, as boas impressões colhidas.
Com muitos. cumprimentos subscrevo-me
(ilegível)
as. Henrique Galvão
Tinha razão ao afirmar que talvez um seu louvor oficial me não beneficiasse, uma vez que, pouco depois, fez na Assembleia Nacional o seu muito conhecido Aviso Prévio sobre a administração de Angola e que esteve na origem da sua queda política e posteriores aventuras e desventuras. O curioso é que, passados alguns meses, o governadorgeral Silva Carvalho, que foi o principal alvo de Henrique Galvão na sua intervenção, também veio a manifestarme o seu apreço pelo mesmo relatório. Numa das sua visitas à Damba, perguntarame se já tinha algo escrito sobre o problema de emigração e faculteilhe um outro exemplar daquele trabalho.
Mas outras consequências emergiram do retorno dos emigrantes, e uma das mais importantes foi a alteração operada no recrutamento de mancebos para o serviço militar que, até aí, era feito com dificuldade e não raramente por imposição. Com a abundância de jovens que passou a haver nas aldeias, os contingentes fixados pelo Estado Maior começaram a ser largamente excedidos pelos voluntários que se apresentavam e nos quais eu fazia logo uma rigorosa triagem, medindo os e pesando os e fazendo regressar aos povos os mais fracos.. Os apurados naquela prévia inspecção seguiam para Ndalatando (então Vila Salazar) para a inspecção médica, em número que excedia o contingente fixado, para compensação de possíveis rejeições. Ao fim de alguns dias regressavam os excedentários, não por terem sido dados como incapazes, mas apenas por terem excedido o número atribuído à circunscrição.
Vários outros episódios poderia apresentar, reveladores do bom entendimento firmado entre a administração e os administrados, que começou a processar se a partir do momento em que se fixaram regras para o recrutamento de trabalhadores, e que redundava no estabelecimento de um clima de paz e de segurança na vida do dia a dia da população. As aldeias passaram a estar cheias de gente, inúmeras casas nelas se foram construindo e aumentou sensivelmente a produção de géneros agrícolas, com largos excedentes destinados à comercialização e muitos cafezais se foram plantando.
Vou relatar apenas um caso de eficaz colaboração com a autoridade sanitária e a assistência à parte inicial das cerimónias integradas nos ritos de iniciação da puberdade.
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