Do meu meu bornal de recordações – OS COLONOS EUROPEUS E AS SUAS ACTIVIDADES

 

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).

 

Também  depois de passar a exercer as funções de administrador, primeiro interinamente e depois por promoção, muito embora já me não coubessem as tarefas dos recenseamentos, nunca deixei de contactar assiduamente com as populações rurais nas suas próprias aldeias e nos campos de cultivo. Volto a dizer que sempre considerei esse contacto directo com a vida corrente dos meus administrados como indispensável ao adequado cumprimento das minhas obrigações. Então já não eram apenas as populações do posto sede do concelho mas também as dos três outros postos administrativos : 31 de Janeiro, Bungo e Camatambo.

Procurava, igualmente, dar também o meu apoio aos poucos europeus que na área da minha jurisdição exerciam qualquer actividade. Não só dava apoio mas também estava atento à forma como decorriam as suas relações com a população africana.

Na Damba, para além dos funcionários da Administração ( administrador, secretário e dois aspirantes ) e da Delegacia de Saúde ( médico e enfermeiro ), trabalhavam também cinco comerciantes, acumulando um deles a função de hoteleiro. Dois dos estabelecimentos comerciais empregavam auxiliares europeus. Num curto período também funcionou, a pouca distância da vila, um Posto Zootécnico em que actuavam um médico veterinário e um ajudante de pecuária. A meio do ano de 1948 foi fundada uma Missão Católica, entregue a frades capuchinhos italianos . Um outro europeu auxiliava o administrador na orientação da oficina de marcenaria, carpintaria e confecção de mobílias de junco. Passou depois a dirigir os trabalhos de construção civil a cargo da Administração e foi substituído por hábil marceneiro africano recrutado em Luanda. De referir, também a presença de uma regente do posto escolar frequentado por crianças brancas, mestiças e algumas pretas.
Nos postos, para além do respectivo chefe e do enfermeiro do Posto Sanitário, apenas viviam alguns pequenos comerciantes, estabelecidos nas respectivas sedes, dois no de 31 de Janeiro, um no Bungo e outro em Camatambo. Os estabelecimentos comerciais destes últimos postos funcionavam como sucursais de firmas do Ngage e da Damba, respectivamente. No Bungo estabeleceram-se mais tarde três novos comerciantes.

Os comerciantes

Com excepção de alguns jovens empregados, todos estes europeus tinham mulher e filhos.

De uma maneira geral, todos os comerciantes, quer da sede, quer dos postos, mantinham as melhores relações com a população africana, não sendo apresentadas queixas na Administração por qualquer desaguisado ou falcatrua, e no tocante a volume de negócios, apenas uma firma, na vila da Damba, se destacava das demais. Tinha maior variedade de artigos à venda e também em maior quantidade. Em toda a área da circunscrição, apenas dois dos estabelecimentos comerciais estavam instalados em edifícios só a essa função destinados, ocupando os restantes parte das casas destinadas a residência. Todos obedeciam às mesmas características arquitectónicas e apenas os mais recentes diferiam dos antigos quanto aos materiais usados na elevação das paredes. Uns e outros não tinham mais do que o pavimento do rés-do-chão, com cobertura de chapas de zinco, e todos eles possuíam amplas varandas cobertas, acompanhando as suas quatro faces, e que não só defendiam as paredes dos danos causados pelas chuvas torrenciais características das regiões tropicais, como também serviam de abrigo aos sacos de amendoim e de café e de outros produtos que iam sendo comprados. Todos os mais antigos tinham paredes de adobes16.

Nos tempos mais modernos, após a ocupação efectiva do território, que podemos situar nos anos vinte, é que começaram a implantar-se povoações comerciais em toda a zona do então chamado Congo Português, pois até então os entrepostos comerciais somente se situavam no litoral. Quanto à antiguidade da sua criação, apenas se poderá encontrar a excepção da Mbanza Kongo que só em 1596 passou a designar-se por S. Salvador do Congo.17 Mas mesmo esta, após um período de grande desenvolvimento, entrou em declínio em meados do século XVII e assim se foi mantendo até passar a ser a capital do distrito do Congo, já na década de cinquenta do nosso século.

A primeira das modernas povoações da zona central do Congo foi implantada no lugar conhecido por Uige, que se situava em região onde existiam grandes e frondosas florestas e, nelas, numerosos núcleos de cafezeiros, quase todos espontâneos mas muitos deles bem tratados pelos membros dos diversos clãs que, de acordo com o direito costumeiro, são, em regime colectivo, como já noutro ponto acentuei, os legítimos proprietários da terra e do seu revestimento vegetal. Contudo os cafezeiros, mesmo espontâneos, bem como outros arbustos e árvores que produzam frutos comestíveis, constituíam propriedade privada de quem os tratasse.

Nos anos vinte o café começou a ter bastante valor, vindo a ser um dos produtos mais apetecidos pelos comerciantes europeus, que passaram a acorrer às regiões produtoras e a nelas se estabelecerem, nos primeiros tempos como aviados18 de firmas existentes no litoral, sobretudo no Ambriz e em Ambrizete e que, com o correr do tempo se iam libertando dessa tutela e passavam a negociar por conta própria. Depois de bem firmados nesta nova situação, muitos deles mandavam ir da metrópole parentes e amigos que com eles começavam a colaborar, primeiramente como caixeiros e algum tempo depois como encarregados de sucursais que se iam abrindo em zonas próximas. Estabeleceram-se, assim, correntes de emigração a partir das terras de naturalidade dos primeiros que se tinham estabelecido. No Uige esse fenómeno era bem patente, sendo a maioria dos comerciantes e, mais tarde, dos agricultores, provenientes dos concelhos da Sertã, de Vila de Rei e de Mação, na Beira Baixa, e de Santa Comba Dão, na Beira Alta.

Em pouco tempo se transformou em povoação florescente, com duas ou três ruas ladeadas por casas comerciais, cuja construção foi dirigida por hábil mestre de obras, conhecido por mestre António e que ficou célebre pela forma expedita, mas por vezes ineficaz, como garantia a verticalidade das paredes. Dizia-se que nunca usava o fio de prumo e o substituía  pelo seu próprio cuspinho que, do alto da parede e após ter escolhido a posição apropriada, deixava cair da boca. Em dias de calma o processo resultava, mas se soprava algum vento lá ficavam as paredes desaprumadas…!

Outros mestres de obras acorreram à região, acompanhando a criação de novas povoações, e os artífices africanos foram-se adestrando sob a sua direcção e também através da acção das missões e das próprias autoridades administrativas, que eram, como soe dizer-se,pau para toda a colher.

Os comerciantes foram, em muitos casos, válidos difusores da cultura portuguesa e, de uma maneira geral, eram benquistos pelos seus fregueses. O comércio, que de início se centrava na simples permuta, passou depois, por determinação legal, a fazer-se sempre a dinheiro. Nos períodos que decorriam entre as colheitas, os comerciantes fiavam a mercadoria e iam lançando as dívidas em livros a esse fim destinados. E a alusão feita a esse sistema trouxe-me à memória episódio ocorrido na Damba, no início da década de cinquenta.

Um dos comerciantes que tinham o estabelecimento fora da casa de residência, era o mais antigo da vila e gozava de grande prestigio entre a população. Chamava-se Américo de Matos Cardoso e era natural dos Envendos, do concelho de Mação. Numa noite deflagrou forte incêndio na loja e em poucos minutos tudo o fogo consumiu, incluindo os livros em que apontava os fiados. Sem eles impossível seria exigir o pagamento das dívidas, mas logo no dia seguinte ao do incêndio começou um corropio dos devedores para a residência do comerciante e que depois de lastimarem a ocorrência logo lhe entregavam as importâncias em dívida. Auxiliares da Administração e da Delegacia de Saúde pediram adiantamentos sobre os salários a receber no fim do mês, dizendo que não podiam esquecer naquela conjuntura as necessidades prementes de quem sempre os bem tratara e os ajudara em tantas ocasiões. Este episódio constituiu um notável exemplo de solidariedade humana e i1ustra bem o clima harmonioso em que, de uma maneira geral, decorriam as relações entre pretos e brancos.

Nos primeiros tempos que passei na Damba, os comerciantes centravam a sua actividade mais na compra dos produtos agrícolas do que na venda de mercadorias, que eram muito oneradas pelos transportes e não podiam competir, em preço, com os artigos comprados pelos negociantes africanos nas povoações comerciais do Congo Belga. Introduzidas em Angola através do contrabando, eram vendidas depois nos mercados tradicionais a que já me referi. Mas depois de 1945 o panorama começou a modificar-se com a publicação da Portaria n° 39, de 23 de Outubro daquele ano, que reduziu grandemente os direitos de importação a pagar pelos comerciantes estabelecidos nas zonas fronteiriças. Houve um enorme incremento no volume dos negócios, que trouxe a prosperidade aos comerciantes e beneficiou sobremaneira a população. Toda a gente passou a ter à sua disposição grande variedade de artigos que antes era de todo impensável encontrar no comércio local.

A actividade industrial não ia além das oficinas da Administração, a que já  se fez referência, e outras do mesmo tipo, fundadas mais tarde nos postos de 31 de Janeiro e de Camatambo, assim como do fabrico artesanal de cal e de tijolos, também a cargo da Administração. De iniciativa particular apenas trabalhou, durante algum tempo, uma pequena e mal apetrechada unidade de extracção de óleo de amendoim, em que as peças fundamentais eram o moinho e a prensa construíidos localmente sob a orientação do seu inventor, que era o enfermeiro da Delegacia de Saúde .

 

 

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