Por Jomo Fortunato
Embora a objectividade do jornalismo e a subjectividade da literatura remetam para dois domínios de entendimentos conceptuais distintos, em termos de construção tipológica da narrativa,
a verdade é que muitos escritores, caso do jornalista e escritor Luís Fernando, tiveram as redacções dos jornais como antecâmaras à edificação e solidez das suas carreiras literárias.
Fortemente influenciado pela prática jornalística, Luís Fernando reuniu em “Noventa palavras”, 1999, um conjunto de crónicas, reportagens e entrevistas, inaugurando assim a sua imparável peregrinação literária, no domínio da ficção narrativa.Três anos depois surgiu o seu primeiro romance, “A saúde do morto”, 2002, um texto que pela literariedade e densidade ficcional acusa a opção pelo “Realismo fantástico”, claramente influenciado pelo escritor colombiano, Gabriel Garcia Marquez, corrente literária que pode ser definida como sendo a preocupação em mostrar o irreal ou estranho como algo quotidiano e comum.
Com “A saúde do morto”, Luís Fernando inaugurou, verdadeiramente, o universo da sua ficcionalidade, através de um texto definitivamente literário, onde o autor desenha uma escrita escorreita, entenda-se, de fácil digestão, com a marcha da narrativa a decorrer numa aldeia, Kapa, onde as pessoas se empenham em “saber cada vez menos para não atrapalhar a felicidade”, o que nos faz lembrar, de certa forma, a relação trágica de José Arcadio Buendia com o saber, personagem do livro “Cem anos de solidão, 1967, obra-prima de Gabriel Gárcia Márquez. De facto, o encaixe da sucessão de eventos que preside a articulação do sentido dos factos narrados e a retoma de situações, fazem de “A saúde do morto” uma obra que acomoda a leitura e integra o leitor nos espaços referidos no texto, de forma participativa. Neste livro, Luís Fernando liberta-nos da datação dos factos dando asas ao nosso imaginário, numa clara subversão ao nível do tempo das ocorrências, ou seja, o autor solicita a nossa imaginação dedutiva, remetendo o leitor, de forma automática, para a evidência de um tempo remoto.
Mitos
Os mitos, as crenças inquestionáveis, os dogmas, as mortes temporárias, os fantasmas e as doenças incuráveis, longe de constituírem alusões gratuitas, enformam o móbil da acção narrativa de Luís Fernando e dão substância literária e fruição estética à obra, num hábil exercício retórico onde a dimensão metafórica é regulada pelas reais convenções culturais dos costumes africanos. Julgamos que “Tomessa”, aldeia natal de Luís Fernando, terá inspirado a criação de Kapa – instância física que serve de cenário ao desenrolar da acção de “A saúde do morto”, um livro que entrou, por direito próprio, no espaço privilegiado da moderna ficção narrativa angolana. Luís Fernando intercala o romance com o livro de crónicas, “Antes do quarto”, em 2004, e depois com o romance de aventuras, “João Kyomba em Nova Iorque, um livro editado em 2005.
O retracto do quotidiano da personagem, Alegria da Costa, surgiu com o romance “Clandestinos no paraíso”, um jovem empresário industrial que anda à deriva pelas noites da Luanda de hoje, ao volante de um Mercedes “topo de gama” sem convicções ou valores, que balizem o seu comportamento desviante.
Através desta personagem, Luís Fernando traça o perfil de uma cidade marcada por profundas contradições, próprias dos tempos de mudança, de uma vida marcada pela valorização do ter, desprezando o ser. Na sequência e com uma vontade imparável, surgiu, em 2008, o romance “A cidade e as duas órfãs malditas” e a sequência de crónicas, “Um ano de vida”, em 2010, “Dois anos de vida”, em 2012, e “Três anos de vida”, em 2014.
Além de pedagógicas na denúncia e tipificação de comportamentos, as crónicas de Luís Fernando estão contagiadas por uma forte dose de crítica social, bem como é possível conhecer, a partir delas, factos pitorescos e contextos da história de Angola mais recente.
Crónica
A crónica, ao contrário dos textos de pendor estritamente noticiosos, requer uma atenta observação do quotidiano e, mais do que isso, um artifício literário que consagra e confere ao texto, uma dimensão artística e ficcional, viabilizada pela actualização poética dos factos observados, o que denota uma acuidade ímpar do escritor na observação do quotidiano. Quando o observável e o factual se ausentam em Luís Fernando, ocorre a teia da ficcionalidade e se instaura a plástica de um imaginário de mundos possíveis, momento em que a literatura acontece.
Os factos surgem como pretextos para que a metáfora se refresque no ar da sua graça, despindo as crónicas de frias referências factuais. Tanto é assim, que o trivial, em Luís Fernando, ganha um estatuto de pertinência, pelos copiosos recursos estilísticos que se socorre, juntando-se doses de um humor cáustico, e inesperado.
Sempre que lemos Luís Fernando dá-nos a impressão que o texto, mesmo que possuído por uma pretensão ansiosa de glosar o tema, não se esgota nas potencialidades da palavra escrita. É o verbo a desafiar o conseguimento textual, numa vastidão de propostas ilimitadas, sustentadas pelos alicerces do plano da história. Simplificando, o plano do discurso, ou seja, o modo de dizer, é tão fértil, que a história ressurge como que proveniente de sectores surpreendentes dos interstícios de uma alma que, raramente está distante do belo e do esteticamente bem conseguido.
Em “Três anos de vida”, Luís Fernando reuniu quarenta e sete crónicas em torno de temas diversificados, que publicou semanalmente no semanário “O País”, entre 2010 e 2011, onde o escritor alude a pessoas concretas e a factos e acontecimentos marcantes, em Angola e no mundo, não descurando nunca um espaço privilegiado de reflexão sociológica.
Jornalismo
Em 2004, Luís Fernando retornou ao jornalismo, onde nunca saiu, com “Letras na brasa”, um conjunto de entrevistas, e comunicações sobre jornalismo e literatura. “A Cidade e as duas órfãs malditas” é um livro inspirado num episódio histórico que sacudiu a sociedade luandense da segunda metade do século XIX, quando duas pequenas órfãs infectadas de severa moléstia sexual contaminaram respeitáveis cavalheiros, abalando a moral pública e deixando a governação à beira de um ataque de nervos por não existir um asilo que as pudesse recolher.
Diríamos então que a dupla militância da palavra, tanto no jornalismo como na literatura, fez da escrita de Luís Fernando uma extensa reportagem sobre a vida, revelando uma alma inquieta, e sempre subserviente aos desígnios do belo e da irreversível criação artística.
Livros
Ao longo da sua produtiva carreira, Luís Fernando publicou “Noventa palavras”, “A saúde do morto”, “Antes do quarto”, “João Kyomba em Nova Iorque”, “Clandestinos no paraíso”, “A cidade e as duas órfãs malditas”, “Um ano de vida”, “Dois anos de vida”, “Três anos de vida” e “Letras na brasa” e o seu nome está incluído nas seguintes antologias, “Estórias além do tempo” colectânea de contos com catorze outros autores, UEA, “Angola 40 anos, 40 autores”, contos, Mayamba editora, uma edição comemorativa dos 40 anos da independência, “Pássaros de asas abertas”, contos, UEA, com a participação de vários autores angolanos, “Taras de Luanda”, crónicas, co-autoria com o escritor português, Eduardo Água Boa. Luís Fernando foi admitido, em 2009, como membro da UEA, União de Escritores Angolanos, depois de dez anos a publicar com regularidade. O escritor tem no prelo, enquanto cronista, os seguintes livros: “Quatro anos de vida”, “Cinco anos de vida”, “Seis anos de vida”,”Sete anos de vida”, “Oito anos de vida”, “Andanças” e “Um padre no hotel”, contos.
Percurso
Filho de José Fernando Fieti e de Isabel Cani, Luís Fernando nasceu no dia 1 de Outubro de 1961 na aldeia de Tomessa , província do Uíge. Licenciado em Jornalismo pela Universidade de Havana, Cuba, em 1992, iniciou a sua carreira como jornalista, na então Emissora Provincial do Uíge da Rádio Nacional de Angola no dia 1 de Julho de 1978, tinha então 17 anos de idade. Trabalhou por mais de uma década e meia na Rádio Nacional de Angola, onde foi Chefe de Redacção e Director de Informação. Foi Director Geral do Jornal de Angola,durante 12 anos, e Director do semanário “O País” durante cinco anos. Actualmente faz parte do Conselho de Administração do Grupo Média-Nova, onde exerce a função de Administrador Executivo.
Homenagem
Luís Fernando foi homenageado no dia 9 de Setembro de 2016 pelo núcleo da Brigada Jovem de Literatura de Malanje pela importância do conjunto da sua obra literária. Na ocasião, Francisco Ngola, Secretário Provincial da BJL, disse ser intenção da instituição “exaltar e reconhecer a figura de Luís Fernando pelo seu contributo no desenvolvimento da literatura angolana, e a homenagem serve de antevisão à realização da III Conferência Provincial Sobre a Literatura Angolana que Malanje vai acolher em 2017, com o objectivo de estimular o gosto e o hábito pela escrita e leitura no seio dos cidadãos”.
“Este livro tem mais de mim do que os outros que escrevi”
O romance mais recente de Luís Fernando, “Silêncio na aldeia”, 2015, é uma espécie de retorno às origens do autor, através do seu “isotopo”, entenda-se, lugar reiteradamente referenciado no conjunto da obra de determinado autor, no caso, “Tomessa” , sua aldeia natal.
O autor conta que escreveu os primeiros parágrafos de “Silêncio na aldeia”, na varanda da sua escola primária em “Tomessa”, e falou do livro nos seguintes termos: “Silêncio na aldeia” deu-me a sensação de mergulhar numa segunda vida, uma espécie de começar de novo, recuando à génese, ao princípio de tudo e, a partir desse ponto mágico suspenso na infinidade do tempo, celebrar por via da escrita, com a ajuda de pessoas tão entusiasmadas e orgulhosas do seu percurso como eu, o privilégio enorme que foi termos nascido precisamente na nossa humilde aldeia, “Tomessa”.
Será sempre um livro muito especial, um título diferenciado do conjunto da minha obra bibliográfica, porque contém mais de mim do que qualquer outro romance que tenha escrito”.
Via JA
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