Por Edna Cauxeiro
Quarenta e dois anos após a Batalha de Kifangondo, que vitimou milhares de angolanos, o homem que chefiou o exército da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) na luta contra o MPLA em vésperas da proclamação da Independência Nacional considera que foi “uma guerra triste, aventureira e inútil”. Tonta Afonso Castro abriu a porta da sua casa ao Jornal de Angola e mostrou o lado humano do actual oficial-general do Exército angolano, rotulado pelos seus antigos companheiros da guerrilha como traidor. É que foi Tonta que rejeitou as ordens de Holden Roberto, a partir da Base de Kinkuzu, no Congo-Kinshasa, para a retomada das hostilidades contra Luanda, e convenceu os soldados sob sua liderança a integrarem as extintas Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), já na Angola independente. O general na reserva, proveniente do ELNA, braço armado da FNLA, é hoje um símbolo da reconciliação nacional. “Não tenho problemas com ninguém, não vejo raça nem formação política. Para mim, somos todos angolanos, todos amigos”, disse.
O seu nome está ligado à Batalha de Kifangondo. Que memória tem desse combate?
Foi inútil, lutámos por nada. No fim, estamos todos juntos. Não teve razão de ser e eu critiquei isso em Kinshasa, perante Holden Roberto. Disse-lhe que quando assinaram os Acordos de Alvor não foram assinar a paz, mas sim a guerra. Perguntei-lhe como é que assinaram os Acordos de Alvor num país com cinco exércitos.
Cinco exércitos?
Sim. Tinhamos a FNLA, MPLA, UNITA, o exército português e os filhos de portugueses que nasceram em Angola. Se cada partido cedesse o seu exército mentalizavam-se os militares no sentido de que somos todos angolanos e não teriam a consciência de lutar uns contra os outros.
Mas o que aconteceu concretamente em Kifangondo?
Aconteceu lá muita coisa. Muita coisa mesmo. Fui eu o comandante. Quando lhe falarem da Batalha de Kifangondo diga que esteve com o homem que a fez. Sei onde chegámos e o que fizemos. Não tínhamos armamento suficiente para atravessar aquele obstáculo. Os portugueses que estavam connosco, que diziam ser da PIDE e que conheciam o terreno (um deles era o coronel Santos e Castro), não conheciam a região. As orientações que ele dava sobre o terreno não eram correctas. Em Caxito, onde estávamos, eu enviei uma parte da tropa em direção a Luanda e outra em direcção ao Uíge.
Qual era o objectivo da FNLA na Batalha de Kifangondo?
Era invadir Luanda e derrotar a tropa do MPLA para proclamarmos a independência e governarmos o país.
Os portugueses estavam a apoiar a FNLA?
Estavam divididos. Uma parte apoiava a FNLA, outra parte a UNITA e outra o MPLA.
Por quê é que depois dos Acordos de Alvor os três movimentos ainda se aliaram aos portugueses para se combaterem uns aos outros, uma vez que eram todos movimentos de libertação?
O problema eram as coisas que os portugueses nos colocavam na cabeça. Punham-nos uns contra os outros. Isso criou divisão e um mau ambiente entre os angolanos. Depois vieram os cubanos lutar a favor do MPLA, e da nossa parte vieram os congoleses. Foi uma guerra muito complicada.
Que análise faz dessa batalha, hoje? Considerou-a triste há bocado. Por quê?
Porque não nos devíamos ter matado por causa da ideologia. Não fomos nós que fabricámos a ideologia, veio da Europa, do colono, não falo só do colono português, existe comunismo português, capitalismo português e neocolonialismo português. E existe isso em todos os países europeus. Portanto, eles queriam que nos dividíssemos para poderem aproveitar. Mas também houve a ambição de cada movimento. Jonas Savimbi quis ser presidente, Agostinho Neto quis ser presidente e Holden Roberto também. Então não havia entendimento. Eles usaram-nos para ver quem ia ganhar. Como é que nós íamos combater um exército como o de Cuba? Era impossível. A qualidade de armas que eles tinham nós não tínhamos.
Quem fornecia as armas à FNLA?
Vou dizer a verdade. A FNLA não tinha armas para enfrentar uma guerra. A Batalha de Kifangondo foi mesmo uma aventura. Já lá estive a visitar aquilo, passei por onde saímos, fiz o trajecto que fiz durante a guerra, éramos malucos, minha filha. Foi uma aventura triste. Vi mortos, vi camaradas, soldados meus, a segurarem nos próprios intestinos e a chamarem por mim: “Chefe, chefe”. Isso marcou-me.
Essa batalha foi o aspecto mais marcante da sua vida?
Sim. O mais marcante. Depois disso a FNLA, posso dizer, acabou. Podia aguentar-se, mas a maneira como Holden dirigiu a FNLA destruiu o movimento.
O comandante não aconselhou Holden Roberto?
Não foi por falta de conselhos, foi por ele não ter conhecimento do que era uma guerra. Não tinha confiança nos homens que ele mandou formar no exterior. Foi um erro grave, porque ele não foi militar e, não sendo militar, devia ouvir os militares antes de tomar decisões. Sem ouvir os militares é difícil ganhar a guerra. A política é boa, mas é preciso associar a isso a pessoa que luta, que vai à frente de combate. Se um militar só cumpre ordens para ir à esquerda ou à direita é impossível vencer uma batalha. Foi o fim da FNLA.
Como é que um oficial-general vive com recordações do género?
Vivo com a tristeza de termos sacrificado muitos homens. Não podíamos ter feito isso, porque sabíamos que a região de Kifangondo em si não era um obstáculo fácil. Era necessário um barco que pudesse bombardear Kifangondo. Não devíamos ter feito essa aventura, mas fomos aldrabados pelos portugueses da PIDE. Diziam que era um terreno de fácil percurso, mesmo nós a vermos que havia uma grande elevação. E não tínhamos nenhuma informação sobre a tropa cubana. Os cubanos tinham armas como a BM 21, que largavam 40 obuses de uma só vez. Nós não podíamos aguentar. A arma mais potente que tínhamos era o Morteiro 120. Só alcançava sete quilómetros, mas o BM 21 alcançava 30 a 35 quilómetros e quando disparava eram 40 obuses. Vi uma bananeira verde a incendiar. Nesse momento virei-me para o rapaz que estava comigo e disse-lhe: “Penso que não vamos sair daqui vivos. Vamos morrer aqui”. Era o comandante Matos, que hoje está nos Estados Unidos.
Não tinha esperança de sair da Batalha de Kifangondo vivo?
Não, não pensava sair dali vivo. Eram mais ou menos 11h00, pedi ao comandante Matos para abrir uma lata de chouriço para comermos. E pedi-lhe que, caso ele saísse de lá vivo, dissesse à minha esposa que morri como homem, não como um medroso. Eu não podia e nunca me passou pela cabeça fugir. Foi no dia 10 de Novembro de 1975.
Quem era o comandante do MPLA na Batalha do Kifangondo?
Era o general Ndalu. E do lado da FNLA era eu.
Os soldados congoleses ao serviço da FNLA não conseguiram conter a tropa cubana?
Não, não eram suficientes e não tínhamos armamento. A única arma que tínhamos, a D30, lançou apenas um obus e matou as pessoas que a usaram. Eles não sabiam utilizá-la, era uma arma proveniente da Coreia do Norte, que Mobutu nos tinha oferecido. Tinha um alcance de 35 quilómetros, mas infelizmente os congoleses não sabiam utilizá-la, eles tinham formação militar nos países capitalistas como a Bélgica e a França.
Onde era armazenado o armamento da FNLA?
Na fazenda Tentativa, em Caxito, que fabricava açúcar.
Como é que os sobreviventes de Kifangondo conseguiram salvar-se?
No dia em que pensei que não saía de lá vivo, depois de conversar com o comandante Matos, continuaram a bombardear. Mas por volta das 15h00 acabaram os bombardeamentos. Fomos obrigados a voltar a Caxito. Foi uma sensação horrível. Vi muitas pessoas mortas pelo caminho, sem pernas, sem braços, uns abertos ao meio. A partir dessa data deixei de comer carne, principalmente de porco. O porco, quando percebe que um homem está morto, come-lhe os intestinos. Posso ficar um ano sem comer carne, ou comer só uma vez por ano. Não gosto de carne, porque uma pessoa morta é igual a um animal. Não gosto de me lembrar daquela cena horrível que vi naquele dia.
Que cargo ocupava quando disse a Holden Roberto que não era a favor do Acordo de Alvor?
Praticamente não tinha cargo nenhum porque não concordava com muita coisa, não partilhava das mesmas ideias dos meus chefes. Até estava proibido de vir a Angola. Depois do cessar-fogo não tive autorização para vir a Angola, porque Holden Roberto achava que eu ia mobilizar as pessoas contra a guerra. Fiquei na base de Kinkuzu, tranquilo. O meu trabalho era enviar militares de Kinshasa para Luanda.
Foi exonerado?
Não. Era comandante, mas fui colocado de lado. Vim a Luanda já no fim da guerra, quando o MPLA tomou toda a cidade de Luanda.
Discordava de Holden Roberto por quê?
Porque nós ouvimos que havia as negociações para os Acordos de Alvor na rádio. A FNLA não sentou com os militares para comunicar que iam assinar um acordo. Nenhum de nós teve a oportunidade de manifestar a sua posição em relação ao acordo. Fizeram disso um segredo, depois foram-se embora para Portugal. Nós, que estávamos a combater, não sabíamos absolutamente nada, como é que esses homens foram se entender? Como eu tenho a “boca um pouco grande”, falo muito, fui proibido de vir a Angola, com o receio de que ia mobilizar pessoas contra os dirigentes da FNLA. É um hábito, gosto de falar a verdade.
Ficou um ano em Kinshasa, impedido de vir a Angola. Em que circunstâncias regressou ao país?
Quando a guerra estava no auge, bem quente, o homem que eles nomearam estudou na academia militar na Tunísia, depois de mim. Fui eu que o enviei para lá, o falecido Barreiro. Era o chefe da tropa da FNLA aqui em Luanda. Quando a guerra aqueceu, o falecido Johnny Pinnock Eduardo, na altura encarregado das relações exteriores da FNLA, telefonou para Holden e pediu que enviasse, pelo menos, pessoas que soubessem organizar as forças armadas. Pediu mesmo “Envia-me o Tonta”. E o presidente aceitou enviar-me para Luanda. Considerei isso um insulto.
Um insulto?
Sim. A pessoa que cá estava não podia ser meu chefe. Fui eu que lhe fiz a recruta e o enviei para a academia militar na Tunísia. Mas vim. Chego a Luanda, no Aeroporto 4 de Fevereiro não havia ninguém para me receber. Nunca tinha estado cá. A sorte é que encontrei um senhor de Malanje, de nome Barreto, veio ter comigo e chamou-me “comandante Tonta”. Assustei-me. Ele disse: “Eu conheço-o muito bem, aqui pode ser raptado pelo MPLA”. Saímos e ele levou-me até a casa do Johnny Pinnock Eduardo, na Cidade Alta. Deram-me uma casa no Prenda. No dia seguinte foram mostrar-me todas as posições da FNLA. Eram posições que, se eu estivesse do lado do MPLA, já os fazia correr. Quando eu disse isso enviaram-me para Mbanza Kongo. Ao sair de Luanda a guerra foi tão intensa que os homens da FNLA foram corridos. Puseram-nos em barcos directamente para o Soyo e de lá para o Congo. Fiquei em Mbanza Kongo e de lá fui para Kinshasa. Foi depois disso que Mobutu deixou de apoiar a FNLA.
O que levou Mobutu a deixar de apoiar Holden Roberto?
Houve uma divergência entre um membro da CIA, um americano, o coronel Bill, e Holden Roberto. Holden não queria que ele soubesse que íamos receber armas da Coreia do Norte, porque americanos e coreanos não se entendiam. Holden ameaçou-me dizendo que se eu contasse ao Bill que íamos receber armas ele mandava fuzilar-me. O Bill foi à minha casa, no Ambriz. Fez-me perguntas e prometeu-me cinquenta mil dólares se eu dissesse a verdade. Eu não disse.Ele foi pagar aos portugueses, de quem obteve a informação. Avisei Holden, que o enviou para Kinshasa. Posto lá, contou tudo a Mobutu, que deixou de nos fornecer armas. Mas antes enviou o chefe dele da Casa Militar, o general Bafia. Houve uma reunião com o Bafia, o coronel Mamina, já falecido, e eu. Sentámo-nos na sala do Holden e o general comunicou-nos que íamos deixar de receber apoio de Mobutu caso Holden não acabasse com a aliança com os coreanos. Holden estava irredutível. O general de Mobutu mandou a tropa congolesa arrumar as coisas e regressar ao Congo.
Qual foi a reacção de Holden?
Holden também foi embora, eu fiquei sozinho em casa dele no Ambriz. Arrumei todas as coisas, coloquei no barco e fui por estrada. Cheguei ao rio Mbridge rebentei a ponte para não ser seguido e fui até Tomboco, com o meu batalhão. A minha grande surpresa foi que o MPLA tinha tomado o Uíge, não podíamos fugir, seríamos apanhados em dois dias, no máximo, mas safei-me com a minha tropa.
Como conseguiu safar-se?
Como militar, sempre fui muito observador. Isso permitiu-me escapar inúmeras vezes. Fui instalar-me no Tomboco. O Holden fez um comício em que disse que todos os comandantes da FNLA já não eram comandantes, mas sim soldados. O único comandante era o Kaller, um mercenário turco com nacionalidade britânica, que Holden nomeou chefe da tropa. Ele estava a matar muitos angolanos. Um dia, o mais velho Ngongotou avisou-me que ele estava no meu bairro. Peguei na minha pistola, tirei a segurança e fiquei à espera dele. Chegou à minha casa, não me saudou e começou a inspeccionar. Fiquei a olhar, nao reagi. Ele bateu na minha mesa para me amedrontar. “Vim buscar a tropa”, disse-me e eu respondi que não tinha tropa nenhuma. Começou a gritar que eu não podia responder assim, que vinha a mando do governo. Apontei-lhe a arma e disse-lhe que na minha casa eu é que mandava e, se ele abrisse a boca, eu matava-o. O branco saiu de marcha atrás da minha casa. Ao sair, foi apanhado e fuzilado.
Mobutu chegou a retirar o apoio à FNLA?
Sim. Correu com toda a FNLA do Congo. Quando fez isso o Holden chamou-me e mandou continuar a guerra em Angola, enquanto ele ia passar uma temporada em Paris. Eu pensei naquilo e, como toda a tropa me obedecia, convenci-os a não combater mais. Uma semana depois comecei a tentar conversar com os homens para contactarmos o MPLA. Mobilizei os homens. Veio um avião e largou material militar, dez toneladas, mas eu convenci-os a usar o armamento apenas para protecção e não para fazer guerra. Tínhamos lá um enfermeiro bufo, que escreveu a Holden para dizer que o Tonta estava contra ele. Holden escreveu de volta dando ordem para me colocarem na prisão. Mas eu já tinha um plano. A caixa postal da FNLA tinha um homem a quem paguei e me entregava todas as cartas. O Ngola Kabango, que é cunhado de Holden, não recebeu nenhuma carta. Escondi-as porque se fossem parar às mãos de algum comandante eu morria.
Então não ficou preso?
Não. Estava zangado com o presidente Holden porque houve países que nos forneceram armamento, mas acredito que o mais velho o vendeu. Já sabia que não íamos ganhar a guerra, mas quis enganar aqueles que se sacrificaram por ele. Enquanto ficámos a morrer na guerra, ele estava muito bem na Europa. Decidi criar o Comira (Comité Militar da Resistência em Angola). O mundo inteiro sabia, passou nas rádios. Holden ficou doente, em Paris, quando ouviu a notícia. O Presidente Jose Eduardo dos Santos chamava-me Comira (risos).
Chegaram a criar o Comira?
Sim. Por isso estou aqui hoje. Não vim em nome da FNLA, vim em nome do Comira. Começámos os contactos com o MPLA em Kinshasa. De lá levaram-me para o Congo-Brazzaville e do Congo-Brazzaville vim para Angola clandestinamente, com um passaporte falso. Fiquei aqui um mês, fui ver a tropa da FNLA que estava a combater na fronteira da Namíbia, quando os americanos estavam lá. Era o Batalhão Búfalo, pertencia à FNLA. Fui eu que treinei aqueles homens. O MPLA pediu-me para ir falar com eles e fui. Puseram-me uma farda das FAPLA e fui para lá clandestinamente mobilizar aquela tropa para parar com a guerra e voltar para Angola. Quando o comandante me viu, olhou fixamente para mim, reconheceu-me, eu chameio-o “Mbongoto”. Começou a chorar, abraçou-me e fomos para o lado deles.
Se treinou o Batalhão Bufalo e eram militares da FNLA, o que faziam na fronteira com a Namíbia?
Nem toda a tropa da FNLA estava em Luanda. Alguns estavam dispersos, em Mbanza Kongo, no Uíge e no sul de Angola. Quando o MPLA começou a receber os militares da FNLA eles fugiram para a fronteira e os sul-africanos apanharam-nos. Passaram a lutar com os sul-africanos contra os homens do partido de Sam Nujoma.
A desassociação da FNLA e a criação, em seguida, do Comira, trouxe alguma consequência para os militares?
Sim. A FNLA fuzilou perto de trinta oficiais que formou fora do país, dois anos antes do fim da guerra e das negociações com o MPLA. É uma história longa. Eram meus amigos, eram homens que sabiam lutar. Foram fuzilados na base de Kinkuzu dois anos antes da independência. Eu assisti, mas ia fazer o quê, se também escapei por um triz? Há nomes que não quero citar porque ainda estão aqui. Preciso evitar porque já tentaram fazer-me mal cá em Luanda.
Quem tentou fazer-lhe mal?
Sou considerado um traidor, um inimigo. Havia em Cacuaco uma passagem aérea, foi lá que tentaram matar-me. Morreu um comandante nosso, o Panzo, que vivia em Cacuaco, isso no ano 1984, quando vim para Luanda. Eu não queria ir ao óbito porque havia lá muita gente da FNLA, mas decidi ir. Eles orientaram alguém a ficar em cima da passagem aérea de Cacuaco para disparar contra mim quando eu passasse. Naquela época não havia muita gente que circulava naquela estrada. Fizeram uma reunião para me liquidar, mas houve alguém,um amigo meu da FNLA, que ouviu isso e deu o recado a um sobrinho meu para eu não ir ao óbito. Mas o meu sobrinho não acreditou e não me deu o recado. Aparece na minha casa o falecido Johnny Pinnock Eduardo e convenceu-me a ir. Em seguida veio o general Hendrick e também aconselhou a ir. No dia seguinte de manhã tentei pôr o carro a funcionar, um carro novo, não arrancou. Então fui pedir emprestado o carro do meu sogro. Foi a minha salvação porque esperavam por mim no meu carro, que era amarelo, e eu passei com um jipe Land Rover. Quando cheguei ao óbito todos ficaram assustados e eu desconfiei que alguma coisa não estava bem. Já nem me sentei, inventei uma desculpa, peguei na minha esposa e fui embora. Senti-me mal lá. Fui para a casa do meu sogro. A pessoa que falou com o meu sobrinho foi ver-me lá e contou-me que queriam matar-me. Fomos falar com uma autoridade do governo do MPLA, que os ameaçou. Se acontecesse alguma coisa comigo, a FNLA ia ter consequências graves. A partir daí largaram-me.
Como olha para Angola hoje? O que pensa que devia ter sido feito e não foi?
Angola está a mudar. O que acho que devia ter sido feito são pequenas coisas, mas com muita importância. Um exemplo simples, é que Luanda está cercada de rios e não tem água. Sabe porquê? Porque o general vende água, o ministro vende água. Se esses vendem água, o povo não pode ter água. Se um general desvia a canalização ninguém vai lá dizer que isso não está correcto. Há certos negócios que os dirigentes não devem fazer. Outra coisa, antes não haviam tantos libaneses e outros árabes em Angola. Agora estamos cheios deles. Esses homens, quando entram num país, o Banco Nacional torna-se num mercado. Vi isso no Congo, no tempo de Mobutu, quando entraram um monte de árabes. O Banco Nacional do Congo tornou-se numa praça onde se trocavam dólares com francos congoleses. Agora aqui faz-se a mesma coisa.
E qual é a solução?
É preciso controlar a imigração. Antes tínhamos fábricas de pneus. Quem rebentou com isso? Hoje é o árabe que nos envia pneus. Tínhamos fábrica de montar televisões, no Huambo, até televisão a cores. Onde está? Não foi a guerra que destruiu isso, foi o próprio angolano quem destruiu. Tínhamos fábrica de baterias Tudor. Onde está? No Uíge começaram a montar pequenos carros que custavam barato. Onde está essa fábrica? A Textang, funciona? Não. Não foi o povo que a destruiu, foram os dirigentes, para terem sócios libaneses e venderem tudo isso para obter riqueza. Não vendem comida, Luanda está cheia de pneus e os dirigentes angolanos são os sócios desses comerciantes. O que rebenta com Angola não são homens que vêm de fora, são os próprios angolanos.
Se dependesse de si como resolvia o problema da falta de água em Luanda?
Não há falta de água em Luanda, tem muita água em Luanda. É preciso conhecer a história do país para perceber melhor alguns aspectos. Maianga, na minha língua, o kikongo, quer dizer lagoas. Quando o português veio encontrou lagoas. Foi entulhando para poder construir. Mas a água não saiu, ficou em baixo da terra até hoje. Mesmo no Kinaxixi há prédios que até hoje estão cercados de água. Alí nas imediações da antiga DNIC,na Cidadela, há uma bacia de água que pode ser usada para regar todos os jardins da cidade. Luanda não tem pulmões para respirar. São pequenos erros que não devíamos ter cometido. Cometemos porque não há regulamentos. O general e o ministro devem fazer grandes negócios, como o da agricultura, e priorizar as empresas públicas, ou seja, fabricar coisas para beneficiar a população.
Como foram os primeiros contactos com o MPLA depois de ter perdido a batalha que antecedeu a proclamação da Independência de Angola?
Foi no Congo. Levei a minha esposa e a minha família para ver o embaixador de Angola no Congo. O tio da minha esposa estava lá e a casa dele estava arrendada ao embaixador. Foi ele que nos pôs em contacto com o embaixador. No primeiro contacto ele começou a insultar-nos, chamou-nos traidores,mas eu disse-lhe: “Senhor embaixador, não querem pessoas que querem a paz, não querem a guerra,o que querem? O senhor embaixador não pode insultar-nos porque também lutamos pela libertação de Angola”. Mandou-nos escrever uma carta dirigida ao Presidente da República. Fizemos a primeira carta e não obtivemos resposta. Trocaram o embaixador e quando o novo tomou posse enviei para lá um primo, já falecido, que foi feito refém porque não tinham conhecimento da primeira carta que escrevemos a pedir tréguas. A Embaixada ligou para Luanda e o Presidente Neto mandou libertar o meu primo e contactar o chefe do nosso grupo. Libertaram o Milton e ele chegou à nossa casa às 18h00, apavorado. Fomos para lá porque o embaixador mandou-nos chamar. Era um senhor muito inteligente, falava francês, conversamos muito bem e tornamo-nos amigos. Mas um dia ele disse-me que não acreditava na nossa boa vontade porque ninguém tinha coragem de ir para Angola.
O que respondeu o comandante?
Eu disse-lhe que não sou cobarde, que se fosse preciso morrer morreria, mas tinha que cumprir os meus objectivos. Decidi vir a Luanda, mesmo com o risco de ser morto. Se o MPLA quisesse, que nos matasse. Fiz uma mensagem para o interior de Angola a pedir que me enviassem quatro comandantes influentes. Vieram os comandantes,fui ter com o embaixador porque não tinha lugar para os alojar. Cedeu-me uma casa e eu pedi para não colocarem fotos de dirigentes do MPLA na casa. Foram bem recebidos, mas encontraram a foto de Neto na casa dois dias depois e revoltaram-se. Fui ter com eles, era o chefe deles. Expliquei-lhes e convenci-os a ir mobilizar os outros soldados no interior de Angola. Foi daí que vim a Luanda. Fui bem recebido, hospedaram-me no Hotel Panorama, isso em 1983.
Quantos militares da FNLA integraram o exército das FAPLA?
Vim a Luanda com mais de 1.800 militares e trinta mil civis. Uns foram enquadrados na Polícia Nacional. Quando fui integrado nas FAPLA a minha primeira patente era de major. Fui comandante da Região Militar no Huambo, combati ao serviço do MPLA contra a UNITA, no Huambo, entre outras missões de Estado.
O que falta a um homem com duas medalhas e dois diplomas de mérito, 12 filhos, um casamento feliz e uma carreira militar de invejar?
Apenas assegurar a nossa vida. Quando te colocam na reforma (já estou há dois anos reformado), fica tudo parado.
“Salvei a vida do Holden e ele mandou matar-me em seguida”
Uma vez salvei a vida a Holden na ponte sobre o rio Lifune. Caímos numa emboscada e a pessoa que estava à frente dele apanhou um tiro na boca. Ele, como não era militar, continuou de pé. Meti-lhe imediatamente no chão e disse-lhe: não me traz problemas, se você morre agora vão dizer que o Tonta é que te matou. Puxei-lhe e saímos da emboscada. Meti-lhe no meu jipe, conduzi até ao Ambriz e parámos na ponte, onde ele suspirou de alívio e me disse: “Você sofre”. Eu disse-lhe: “Presidente, quando te pedem dinheiro não dás. Está a ver os problemas que enfrentamos?” Voltei para junto da minha tropa, não podia abandoná-los lá na emboscada, iam dispersar-se. Mas depois disso ele escreveu uma carta em que orientou que eu devia ser morto por causa da associação Comira que eu decidi criar com os oficiais e os comandantes da FNLA que ficaram no interior de Angola, para acabar com a FNLA. Isso custou-nos caro. O comandante Sony, que estava comigo e era meu adjunto, foi baleado pelos homens de Holden. Todos devíamos morrer.
Cargos no Exército angolano
Comandante-adjunto da Primeira Ordem M.Dn. 128/nm/86, de 1986 a 1987.
Segundo-Comandante da Frente Norte, de 1990 a 1991.
Comandante da tropa da Frente Norte (1991 a 1993).
Director dos SVC Missão Militar Angolana na RDC (República Democrática do Congo), de 1993 a 2000.
Oficial de Legião do Estado-Maior General (EMG) com chefes das Missões Militares Angolanas na República Democrática do Congo e República do Congo-Brazzaville no ano 2000.
Conselheiro do Ministro da Defesa Nacional de 2005 a 2009.
Conselheiro do chefe do Estado-Maior-General desde 2009.
Em 2014, por ordem do Comandante-Chefe, passou à reforma por limite de idade.
PERFIL
Nome:
Tonta Afonso Castro
Filiação:
Tonta Álvaro Castro e Emiliana Maria
Data de nascimento:
2.Abril.1943
Naturalidade:
Mbanza Kongo
Estado Civil:
Casado com a Sra. Celestina Castro
Número de filhos:
12
Condecorações:
Distinguido em 2005 por despacho presidencial com a Ordem de Mérito Militar do Primeiro Grau.
No mesmo ano, igualmente por despacho presidencial, foi condecorado com a Ordem dos Combatentes da Liberdade do Primeiro Grau.
Via JA
Os melhores filhos são sacrificados! Foi bom ter abraçado o governo e dai vem o reconhecimento. E, se assim não fosse o país não lhe reconheceria e seria um comandante desconhecido da FNLA como muitos se perderam e morreram sem honras por caprichos do presidente Holden. Esta matéria deve ser compilado num livro com título: “As memórias de um comandante”