ISAAC PAXE: “Há pessoas interessadas em mostrar serviço para ficarem bem na fotografia”

Por Nok Nogueira

O mote da entrevista foi um comentário que o docente universitário Isaac Paxe publicou na sua página do Facebook, uma plataforma interactiva onde se tem mostrado bastante interventivo, sobretudo com análises que têm que ver com as políticas públicas de ensino e outros temas. O académico falou ao Novo Jornal sobre a tragédia do momento, deixou as suas impressões sobre o fenómeno que vitimou 74 vidas no Lobito , mas não poupou nas críticas a algum oportunismo de pessoas que “querem mostrar trabalho para ficar bem na fotografia”, assim como não deixou de chamar a atenção do Estado para que este não se furte das suas responsabilidades.

Novo Jornal (N.J): Recentemente, através da rede social Facebook, onde, aliás, é bastante activo, no sentido da intervenção social, considerou as legações sobre as construções em zonas de risco como um “slogan infeliz”, referindo-se ao imputar de responsabilidades aos cidadãos que assim procederam e na esteira do que aconteceu no Lobito. Não há aqui algum radicalismo?

Isaac Paxe (I.P): Radicalismo de quem imputa as responsabilidades aos cidadãos ou por eu considerar as alegações como um “slogan infeliz”? Caso este radicalismo esteja na nossa abordagem do fenómeno, ele realmente o é, atendendo ao sentido da nossa fala, que se sustenta na premissa que defende a responsabilidade do Estado na sua relação com o cidadão, quer na efectivação dos direitos destes ou no dever do Estado de garantir que os cidadãos respeitem as leis da República. A responsabilidade que evocamos para o caso do Lobito foi a do não exercício, pelo Estado, da virtude e da responsabilidade ex-ante facto, que convoca o Estado a antecipar-se a fenómenos e a prátcas que podem corroer a salvaguada do bem-estar e da vida do cidadão.Esta antecipação pode ser feita via políticas públicas condizentes ou actuação nos marcos da lei para impedir, no caso das construções, que os cidadãos as consumam em zonas de perigo.

N.J: Não receia que seja mal interpretado ao considerar a questão nos termos com que o fez?

I.P: Infelizmente a nossa sociedade tem alguma dificuldade em assumir que é da livre circulação de ideias que se originam abordagens substanciais para os diferentes desafios que as sociedades enfrentam. O meu pronunciamento não teve o propósito de destratar a acção do governo, mas o de sinalizar que, ao buscar-se culpados numa situação de calamidade como esta, estaríamos a rejeitar a oportunidade de abordarmos não apenas as construções em zonas de risco em todo o país, mas também os movimentos necessários para se desenharem políticas habitacionais que, para além de garantirem o direito à habitação, salvaguardem a vida dos nossos concidadãos. É a necessidade de compreendermos que as calamidades podem prover ocasiões para se repensar a actuação da sociedade como um todo. Repare que nós falávamos dos agentes do Estado e também da sociedade civil que, como parceira do Estado, pode e deve induzir programas afins. Há a necessidade de uma atitude proactiva desta sociedade civil nas propostas de programas para a gestão do fenómeno (construções em zonas de risco) em detrimento da actual que se resume essencialmente no carácter reactivo a situações como as calamidades naturais ou as demoliçõesresultantes da acção do governo.

N.J: Já agora acha que é pela ausência desse radicalismo que algumas coisas em Angola pecam, exactamente por não se aterem a um certo radicalismo quando as circunstân-cias assim o exigem?

I.P: Existem dois elementos essenciais nesta questão: Um deles é a existência de uma realidade legal para sustentar a actuação do poder público; o outro é a materialização dos pressupostos deste quadro legal. O radicalismo tem estado ausente fundamentalmente na materialização da lei. Há um certo descaso do poder público em exigir que o cidadão cumpra o que a lei estabelece. Se a construção em regiões não autorizadas é uma transgressão administrativa, qual tem sido a dificuldade da actuação eficaz do Estado? O descaso praticamente generalizado na nossa sociedade, na não observação das obrigações legais, exige do Estado um radicalismo para que os princípios ou as condições salvaguardadas pela lei sejam observados, principalmente quando esta transgressão pode resultar em atentados à vida. Mas também compreendemos que o próprio Estado, ao reconhecer (isso é mérito e não fraqueza) a não satisfação da necessidade à habitação condigna, pode condi-cionar acções mais radicais quando as transgressões ocorrem. Outra questão é a razão de muitos desses conjuntos habitacionais existirem há muitos anos como resultado do êxodo populacional nos momentos de crise do país, o que exige políticas de reassentamento sustentadas.

E cada um de nós tem consciência dos obstáculos que condicionam a materialização de programas dessa natureza em curto espaço de tempo.

N.J: Estamos diante de uma situação que poderá vir a mudar o paradigma das zonas de risco do país ou acredita que esse alarido em torno da questão da tragédia do Lobito poderá ficar “arquivado” passado algum tempo?

I.P: Estou céptico quanto ao aprendizado que podemos tirar desta situação. Há muito que temos programas de fomento da habitação que buscam reassentar populações em zonas de risco, como também garantir moradia para todos na sua condição de cidadãos. A questão é saber como é que essas tragédias podem ser consideradas como presuposições que informam novas abordagens na efectivação destes programas. A nossa cultura da gestão centralizada condiciona uma rápida adaptação dos programas às demandas do momento e do local.

N.J: Na mesma publicação que fez no Facebook afirma que a responsabilidade não deve ser apenas dos cidadãos, mas, acima de tudo, do Estado enquanto tal. Pensa que o Estado tem sido muito permissivo ou há aqui uma situação clara de descaso das partes? Entre o Estado e o cidadão, sem, claro está, aquela clássica ideia de que “o Estado somos todos nós”…?

I.P: Acho que ela já está respondida….

N.J: Entretanto, estamos a falar de um assunto que não é novo como tal. Provavelmente o que seja novo é a tragédia ocorrida e não necessariamente o facto das construções em zonas de risco. O que pensa o Isaac Paxe sobre estes temas que, na verdade, são recorrentes por altura do tempo chuvoso por causa de outras tragédias (talvez menos gaves como esta última) que ocorrem pelo país?

I.P: A situação do Lobito chamou a atenção pelo número de mortes em menos de 48 horas. Mas as cheias,a destruição de residências, de bens e até de campos de cultivo é recorrente nas épocas de chuva. Apesar desta constante presença do fenómeno, temos sido, como sociedade, lentos nas respostas. Reconhecemos a existência de algumas obras em Luanda e em outros centros urbanos, mas a lentidão na sua execução e a não extensão das mesmas para outras realidades, elas também de risco, têm esvaziado a dimensão da resposta do Estado. Seria relevante abordar essa questão não como um assunto de gabinetes especializados dos agentes do Estado, mas como uma questão comunitária que, ao envolver os diferentes sectores destas comunidades, podem produzir resultados céleres e sustentáveis.

O compromisso comunitário pode fiscalizar a acção dos seus membros e desenvolver consciências sobre os riscos resultantes da construção em zonas de riscos.

N.J: Acredita que com a situação ora vivida abrem-se “boas” (e vou colocar isso entre aspas) perspectivas para o surgimento de debates que possam incidir mais a fundo sobre estas questões?

I.P: O debate já está a acontecer na sociedade, mas é necessário que ele passe de facto para as arenas que produzem políticas públicas para programas sociais afins. Como dificilmente temos a cultura de indução de políticas públicas via sociedade civil, necessário se faz que as arenas dos debates sejam deslocadas do “centro para a periferia” da tomada de decisão, para que eles gerem ideias e contribuições úteis. Só incidiremos mais a fundo sobre estas questões quando elas forem encaradas neste debate como questões de cidadania, nos seus direitos e deveres, e de Estado, nos seus deveres, que se distanciam de programas pontuais de governo.

N.J: Basta andar pelos arredores de Luanda que vemos centenas, senão milhares, de casas construídas em zonas de risco. Advinha-se, na sua opinião, que este ano venha a ser o da “caça às bruxas” aos cidadãos que construíram em zonas de risco, depois do que aconteceu no Lobito?

I.P: Receio que isso aconteça. Receio que haja neste momento pessoas interessadas em mostrar serviço para “ficarem bem na fotografia”. Requer-se responsabilidade e sabedoria dos agentes do Estado em lidar com esta questão, para que não se repitam situações como as dos desalojados em várias áreas de Luanda, cuja situação social se degradou como resultado desta acção do Estado. A questão que se coloca é: Melhorar a condição da habitação do cidadão como direito seu, não substituir apenas os factores que degradam essa condição.

N.J: Ainda sobre a sua publicação no Facebook afirma o seguinte: “Espero mesmo que a tragédia do Lobito nos tenha dado lições sobre a necessidade da promoção do “bem fazer”, em detrimento da nossa cultura de buscar os fracos aos quais a culpa deve caber como uma luva retirada de um “balão de fardo””. Quer falar sobre o destinatário do recado deixado?

I.P: O destinatário somos todos nós na nossa condição de cidadão, eleitor, contribuinte e detentor de direitos. Compete ao cidadão participar nos programas de governo e também fiscalizar a acção do governo. Agora, há vozes que se fazem ouvir “aqui e ali”, identificando os culpados pelos resultados da tragédia. E sabemos que o elo mais fraco neste momento são aqueles moradores da região do infortúnio, mas esquecem-se os promotores deste discurso que ao imputarem os cidadãos como culpados, imputam também culpa ao Estado pela sua inépcia em regular a acção dos cidadãos.

N.J: Acha que os especialistas da área de ordenamento do território, arquitectura, etc. etc., não têm sido ouvidos ou estes mesmos não têm feito soar a sua voz?

I.P: Existem órgãos do governo e ordens profissionais da área. Acredito que em algum momento eles têm participado ou apresentado junto do governo as suas ideias. Contudo, desconhecemos o grau de assimilação destas ideias pelos programas do governo. Há um ‘déficit’ de informação sobre a questão.

N.J: Quem deveria assumir a responsabilidade numa altura como esta em que teve lugar a tragédia do Lobito?

I.P: Definitivamente, a responsabilidade é do Estado, mas isso não o converte em actor solitário no processo. Voltando à publicação que serviu de mote para esta conversa. Quan-do afirma que “o princípio que leva o Estado a organizar campanhas de vacinação para salvar as pessoas das doenças e de uma eventual morte é o mesmo que deve ser aplicado com a prática das construções em zonas de risco”, não estará a miniaturizar demasiadamente o problema, já que parece que estamos perante um gigantesco problema que transcende, às vezes, as fronteiras do bom senso do cidadão, uma vez que algumas famílias se encontram há mais de 20 anos nessas zonas? Não há aqui um problema estruturante da situação?

Apresentado desta maneira, a comparação parece mesmo desproporcional, mas o que queríamos demonstrar com o exemplo é a natureza da responsabilidade ‘ex-ante facto’ do Estado. Ele concebe prognósticos, previsões sobre o resultado das suas acções ou das dos seus cidadãos. Quando essas acções denunciarem eventuais danos à condição humana e/ou atentado à vida, compete ao Estado desenvolver acções preventivas. Reconhecemos que a situação é gigantesca, também reconhecemos que é um problema estruturante, contudo nunca deve o Estado demitir-se das suas responsabilidades seja em que circunstâncias ele se encontre. Temos consciência de como as políticas de governo foram prejudicadas pela conjuntura política do país ao longo dos anos que durou a guerra civil. Sabemos também que a reversão do cenário requer tempo e recursos que não estão disponí-veis nas quantidades e qualidades que satisfaçam as expectativas da sociedade. Por isso, o discurso que se espera do Estado é o de convocar sinergias para abordar o fenómeno sem ferir a justiça social, e os seus deveres na sua relação com os cidadãos.

N.J: O primeiro secretário do MPLA em Luanda, Bento Bento, “solicitou e alertou para a retirada imediata de todos os cidadãos em Luanda que vivem em zona de risco”. Estes apelos têm maior força quando advêm de entidades políticas do que propriamente da sociedade civil, por exemplo?

I.P: Sim, porque a base de governo assenta essencialmente nos políticos; é neles que está concentrado o poder e o controlo dos mecanismos de distribuição dos privilégios conferidos pelo Estado. Agora, sobre o pronunciamento, o mesmo, se acatado, pode prejudicar mais asituação desses cidadãos do que os beneficiar. Para onde iriam esses cidadãos? O que os levou a construir nessas zonas de risco? E qual foi a experiência do senhor secretário sobre a gestão desta questão enquanto governou Luanda?

N.J: Como tem acompanhado a onda de solidariedade em relação aos sinistrados do Lobito? Acha que este movimento poderia estender-se igualmente às pessoas qu se encontram ainda em zonas de risco, no sentido de se perceber até as motivações que as levaram a construir nesses lugares?

I.P: Há muito que não testemunhava um movimento de solidariedade como este em Angola. Temos tido exemplos dignos, como o dos Gambos, Cunene…, mas este talvez – também pela mediatização e pelo aparato da mobilização, a dimensão das “dores” – tenha unido mais os Angolanos. São situações como estas que me fazem sentir orgulho na nossa gente. Sobre o estender do movimento, é preciso compreender que a questão não se resume ao acto de construir em zonas de riscos, é necessário compreender as razões desta prática, até porque essas zonas não são constituídas por condomínios de luxo, ao contrário, por construções precárias. É crença minha que o foco deve primeiro assentar na compreensão das origens do fenómeno para depois se pensar em soluçõesque não firam a justiça social e os direitos dos cidadãos.

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Perfil

ISAAC PEDRO VIEIRA PAXE possui licenciatura em Ensino de Língua Inglesa como língua estrangeira (2000) pela Universidade Agostinho Neto de Angola, Mestrado em Administração Escolar (2004) pela Lynch School of Education da Boston College,Boston MA, EUA, sob supervisão acadêmica do Professor Andrew Hargreaves; e Doutorado em Educação (2014) pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do Professor Romualdo Luis Portela de Oliveira. É director do Centro de Estudos Multidisciplinares do ISCED Luanda. Tem como interesse de pesquisa na área de Educação, com ênfase em Política Educacional, principalmente sobre os seguintes temas: Gestão democrática de sistemas e de unidades escolares, custos da educação, análise de políticas educacionais e financiamento público da Educação e políticas de formação de professores.

Via Novo Jornal

Dr. Isaac Paxe é ntural do Vale de Loge, município do Bembe, província do Uíge. Imagem facebook

Dr. Isaac Paxe é ntural do Vale de Loge, município do Bembe, província do Uíge. Imagem facebook

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