LEVANTAMENTOS DO 15 DE MARÇO E ASSASSINATOS EM MASSA NA CADEIA DO BAIRRO PEDREIRA

Por: Silvino Fortunato

Uíge, 16/03 (Wizi-Kongo) – Em 1917, por ordem do capitão – mor do Mbembe, Manuel José Pereira, é enviado Júlio Berberan, com a finalidade de localizar um lugar para ser construído um novo posto militar na região do Uíge. De acordo com o ancião José Santos, 75 anos de idade, o emissário fixou-se inicialmente na região de Luhombo, junto a encosta da Serra do Uíge, tendo-se deslocado posteriormente até a aldeia do Kiongua, ocupando aqui o deserto diante do rio Kangombo.

Antes de chegarem ao lugar, que é hoje a cidade do Uíge, as expedições paravam, primeiro, na região do Mbembe, partindo daí para o destino final, tal como o percurso que foi feito primeiramente por Américo Tomás.

Segundo Domingos Panzo, numa entrevista que concedeu ao Jornal de Angola em 2019 e que viera a falecer em 2020 com cerca de 100 anos, as caravanas de colonos, que integravam também negros que tinham a função de carregadores de carga, interpretes e guias, usavam a rota Ambriz/Bembe/Songo/Kaxexi atÉ chegarem ao Uíge, porque a actual via directa Songo/Uíge ainda não existia.

“Esses migrantes coloniais, quando chegaram aqui, construíram posteriormente o primeiro posto militar que se juntou a povoação para albergar três militares e cinco civis comerciantes, que eram o capitão Manuel José Pereira, Silva Santos, António Figueiredo, Tristão Mendes, provenientes de Ambriz, e João Toyolar, que viera de Ambrizete”.

O posto militar, um forte, foi construído exactamente no lugar onde é hoje o bairro Pedreira, que, na altura, era dominado apenas por terrenos baldios a sua volta, sendo depois criada uma granja que pertencia a administração colonial, onde vinham trabalhar, por contrato ou por castigo, os nativos que viviam nas aldeias circunvizinhas de Kimakungu, Kiongua, Kindenuco, Kasexi, Kivita e outros, sempre distante do colonato dos portugueses, anotou Domingos Mpanzu.

De acordo com ele somente, a partir dos anos 60, é que alguns autóctones começaram a fixar-se próximo da vila do Uíge, formando os actuais bairros suburbanos do Mbemba Ngangu e o Kandombe, onde foram sendo permitidos morar os “patrícios”, que mantinham alguma relação permanente com o colono, como os que faziam trabalhos domésticos.

Primeira cadeia colonial

Com o aumento do aglomerado populacional de colonos e da actividade administrativa colonial, a antiga concentração híbrida, militar e civis da primeira fase de ocupação do Uíge, foi transformada em cadeia onde eram aprisionados os infractores de diferentes delitos, indo os antigos inquilinos morar num outro espaço onde construíram acampamentos que resultara muito mais tarde na actual cidade do Uíge.

A primeira cadeia da administração, que ficava aí no bairro Pedreira que naquela altura era controlada por sipaios, albergava maioritariamente presos negros, muitos deles fugidos dos contractos, sendo outros denunciados pelo missionário Peterson, por razões ligadas a incumprimentos ou a desconfiança de subversão.

“O Peterson trabalhava com a Polícia colonial e mais tarde com a PIDE. Quando alguém fugisse do trabalho de contrato, a polícia procurava o fugitivo, inicialmente, nos bairros onde moravam os seus familiares, contando também com a colaboração deste mesmo missionário Peterson, que ouvia as confissões dos crentes”, conforme disse Domingos Panzu o nacionalista.

Acrescentou que caso chegasse a conclusão que determinada revelação, feita na confissão, representasse o crime que as autoridades procuravam ou que estivesse ligada a qualquer informação da política, o crente era inicialmente expulso dos rituais religiosos e depois entregue às autoridades para o correspondente castigo, que ia até a cadeia, na antiga fortaleza.

Por sua vez o mais velho Nunes Manuel, lembrou que quando começaram a eclodir as manifestações nacionalistas violentas desde o 4 de Janeiro de 1960, as autoridades coloniais de então transformaram o forte militar em cadeia para presos políticos, tendo antes retirado o acervo militar dos primeiros anos da fixação colonial, que ainda aí se mantinha sendo depositado na administração colonial, que já ficava no centro da cidade do Uíge,

“Eu entrei nesta cadeia dos presos políticos no dia 14 de Março de 1961 por ouvir uma rádio que emitia em francês”, lembrou o octogenário que precisou que naquela época quem fosse apanhado a ouvir este tipo de rádio era considerado Lumumbista. “Estava lixado”. Ele Foi então acusado de fazer parte de células que propagavam os ideais da revolta que se tinha instalado na vizinha República do Congo, incentivado sobretudo por Patrício Lumumba.

Nunes ainda se recorda que em 1959 já tinha recebido a advertência de que em Angola, tarde ou cedo, as pessoas haveriam de se revoltar contra a colonização, tal como estava a acontecer no outro lado da fronteira, no Congo, e que todo o cuidado era pouco para se não cair às mãos da polícia política colonial. “O meu amigo que era um enfermeiro, um grande profissional de saúde, que era de Catete, no Icolo e Bengo, me dizia que daqui a pouco vamos ter problemas muito sérios com a revolução do Lumumba, que não passaria um ou dois anos para sofrermos as consequências dos levantamentos que aí se estavam a passar”.

E foi o que aconteceu ao nacionalista Nunes Manuel e ao mesmo amigo Sebastião Domingos da Costa que se encontraram nesta cadeia e na mesma cela. Eu tinha 27 anos quando entrei nesta cadeia, onde testemunhei a morte de vários companheiros da cela. “Entrei neste presídio que servia para internar as pessoas que roubassem as galinhas dos outros, àqueles que tirassem o café dos outros nas fazendas”, disse Nunes Manuel, um ancião de 89 anos.

O nacionalista recordou que a cadeia pertencia a administração colonial do Conselho do Uíge, que foi construído com a finalidade de internar pessoas envolvidas em actos de crimes comuns, mas que os acontecimentos recentemente ocorridos neste ano, como as revoltas da Baixa de Cassange e os acontecimentos de Luanda do 4 de Fevereiro de 1961 viriam a forçar as autoridades coloniais a converterem a cadeia em prisão da PIDE/DGS para prenderem as pessoas que julgavam envolvidas em assuntos políticos.

Nunes Manuel disse que todo o sangue que viu verter aqui impulsionou a revolta e a determinação da luta que determinou a independência nacional e que os jovens de hoje devem ter como exemplo. “Vocês os jovens têm de ser fortes para continuarem a manter essa nossa Angola unida, que custou muito sangue para tê-la independente. Ninguém vos engane, esta Angola é nossa” retorquiu o nacionalista dirigindo-se ao Jornalista do Jornal de Angola.

A morte do homem de Icolo e Bengo

Já na cela, adiantou, o enfermeiro Sebastião, natural de Icolo e Bengo, voltou a lembrar-lhe o que lhe tinha dito dois anos atrás. “Mano, agora vamos morrer aqui, mas isso vai significar que a luta não mais vai parar até serem corridos estes brancos da nossa terra”. O homem de Catete, acrescentou, viria mesmo a ser morto nesta cadeia do actual bairro Pedreira, o castelo dos primeiros anos da chegada dos colonos portugueses.

“Ele foi um dos primeiros homens a ser morto nesta cadeia. Num dos dias, chamaram-no para o interrogarem intensamente e por fim cortaram uma das suas orelhas. Quando voltou na cela, cheio de sangue, disse-me: ‘eles queriam que eu comesse a minha orelha, mas neguei, porque sei que comendo ou não morreria na mesma. Que matem’ foram as últimas palavras que eu ainda hoje registo”, disse Nunes Manuel.

No dia 16 de Março, a cela foi aberta e entraram dois carrascos, segundo o mais velho Nunes, que prosseguiu que um deles, o agente Simão, indicou ao outro, o Custódio, dizendo que o Sebastião Domingos da Costa era refilão, era calcinha (cínico) e que tinha desrespeitado a sua ordem de comer a sua própria orelha, como os outros faziam. “Foi então que o Custódio, um dos chefes do centro da PIDE, disse ao Sebastião para mostrar a sua língua. Este tirou a língua para fora e o Custódio sacou um alicate com que engatou e puxou a língua do Sebastião, tendo-a cortado ao meio e seguidamente decepou também o pescoço do companheiro”.

Olhando para o cadáver chamou o detido Nunes para arrastá-lo para fora e quando regressou ainda nu, porque eram mantidos assim sem roupas, disse-lhe também para levar ao lixo a cabeça do homem. “Foi muito doloroso, muito triste. Sempre que vejo esta cadeia mesmo à distância ocorre-me uma tristeza e revolta profunda”. Com a cabeça em suas mãos no pátio da cadeia deparou-se a entrar de rompante o comerciante e latifundiário Ferreira Lima.

“Por aquilo que ouvia entendi que o latifundiário vinha a procura do Sebastião. Então parei propositadamente para ele me ver”. Daí ele aproximou-se de mim e reconhecendo a cabeça do Sebastião, o comerciante, muito respeitado naquela altura, começou a despejar a sua fúria contra os oficiais coloniais aí presentes, desqualificando a inteligência dos homens da PIDE que não sabiam analisar e lidar com as circunstâncias que então se viviam, usando métodos precipitados que iriam dizimar muita gente inocente e importante, como o Sebastião, que no seu entender era um grande profissional.

A partir do dia 16 de Março, um dia depois dos levantamentos nacionalistas que ocorreram, muitos deles em simultâneo, em várias localidades da província do Uíge, a cadeia era preenchida com muitos outros presos, que eram considerados políticos muito perigosos. “Neste dia chegaram presos de Kitexi, de Kasexi e de muitos outros lugares”, sendo os detidos organizados e abatidos em grupos, referiu ainda Nunes Manuel.

“O soba Alberto da Silva e seu adjunto integrando um grupo de 45 presos, trazidos das sanzalas destruídas com a fúria da vingança dos colonos, foram mortos por fuzilamento neste mesmo dia, cujos corpos foram deitados na vala onde posteriormente foi construído a piscina na cidade do Uíge”, disse o Nunes Manuel, sempre com discurso nostálgico.

Um outro grupo de nacionalistas, em que depois foi integrado Nunes Manuel, era composto por 46 pessoas. No dia do abate chamaram todos e “a mim mandaram ficar, com o argumento de que a prisão não podia ficar sem alguém. A gente que vi entrar e sair morta daqui, me fazia pensar que já não restava ninguém fora”.

“Foi nestas condições que ao me reconhecer também mandou-me subir no seu geep e levou-me para a cidade até onde estava o quartel dos comandos do batalhão de caçadores, no actual edifício do INEIA. “Foi graças a este latifundiário, que tinha grande poder económico e influência político, que me livrei da morte nesta cadeia de triste memória.

A revolta dos colonos

Entretanto, uma breve resenha feita pelo nacionalista Santos Kamalanda relembra que em 15 de Março de 1961 tinha havido a tentativa fracassada do ataque contra os colonos na cidade do Uíge, em que pereceram vários angolanos, numa acção liderada pelo nacionalista António Ninginisa que se dizia, o enviado especial de Holden Roberto com a missão de incentivar a rebelião nesta região.

Aclarou que depois dos assaltos nacionalistas, as milícias coloniais puseram-se em correrias para a vingança, apanhando qualquer negro que se lhes aparecesse, uma operação facilitada também pelos corpos dos que tinham tombado nos ataques.

Santos Kamalanda da aldeia de Kivita disse que os colonos depois de conterem esse ataque contra a cidade do Uíge, armados de caçadeiras, dirigiram-se primeiramente ao bairro Kimuana, onde eram naturais a maioria dos homens caídos em combate, tendo despejado a sua ira contra qualquer pessoas que se lhes aparecesse”. Por fim recolheram o regedor, os sobas e gente que já sabia ler e escrever, sendo levados para a cidade do Uíge onde foram mortos.

Eles, os colonos, como disse um outro interlocutor Domingos Panzu, da aldeia de Kasexi, estavam assustados com os ataques. Não sabiam quem eram os seus autores. “Quando iam reparando nos homens caídos, reconheciam este ou aquele filho de fregueses com quem negociavam.

Foi assim que souberam que os causadores das mortes dos seus eram mesmo aqueles com quem conviviam e então partiam para o ataque contra as sanzalas que ardiam e capturavam os que não conseguiam escapar, referiu o ancião, acrescentando que nestes dias chegavam apinhados em geep inúmeros detidos idos de várias sanzalas de Kitexi, Lukunga, Kasexi e outros lugares que tinham sido atacados pela ira popular.

“A maioria das centenas de presos nacionalistas foi morta nesta cadeia do Uíge”. “Quase ninguém sobreviveu”.

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