Por Venceslau Mateus
Luanda – O escritor e jornalista Luís Fernando destacou, em Luanda, a necessidade e a coragem de se pôr a ler autores angolanos num espectro mais amplo no sistema de ensino.
Em entrevista à Angop, o autor de “João Kyomba em Nova Iorque” e “Destinos no Paraíso” faz abordagem sobre a literatura angolana e projectos pessoais.
Angop – Até que ponto a escrita literária influencia hoje os seus textos jornalísticos?
Luís Fernando (LF): Luto para que cada um se mantenha no seu lugar, que o jornalismo não atrapalhe o escritor que há em mim, e o escritor não invada o território do jornalismo. Mas é claro que esse é tão só um desejo, uma aspiração, pois tenho consciência de que à medida que maturo como escritor, à medida que mais horas dedico ao ofício da escrita de livros, as fronteiras vão-se tornando mais ténues, mais esbatidas, mais difíceis de delimitar. Exceptuando as notícias simples do quotidiano – algo que na verdade faço cada vez menos no jornalismo -, admito que as reportagens de fôlego aparecem cada vez mais permeadas pela escrita literária. É inevitável!
Angop – Já escreveu várias obras literárias. Sente-se um escritor maduro?
LF: A percepção que tenho de mim, do meu percurso, do meu estado actual, é a de que os 16 anos passados a escrever livros não foram em vão; deixaram as suas marcas, consolidaram coisas, fizeram de mim um escritor que coloca a si mesmo metas cada vez mais ambiciosas, mais ousadas, mais difíceis de alcançar. Se a isso se chama estar maduro, então digo que sim.
Angop – Depois do “Silêncio na Aldeia”, o que é que o público leitor poderá esperar do Luís Fernando até ao fechar do ano?
LF: Tenho na forja a publicação de uma colectânea especial de crónicas, um pacote de seis livros da série “Anos de Vida”, cujo elemento distintivo será a combinação da minha escrita com a pintura de Guilherme Mampuya Wola, um dos mais talentosos artistas plásticos da sua geração. A ideia é que este ano as famílias priorizem a oferta de livros, substituam até onde lhes for possível os tradicionais cabazes pelo “package” com esse híbrido de literatura e pintura.
À parte este projecto, devem aparecer contribuições minhas em forma de contos em duas colectâneas que duas entidades editoras estão a preparar no âmbito dos 40 anos da Dipanda. Portanto, e em resumo, conto estar presente no tempo que resta até ao fim de 2015 em mais três momentos literários.
Angop – A obra “Noventa Palavras” marcou a sua estreia, em 1999, no mercado literário. Alguma vez passou pela cabeça que estava a dar os primeiros passos para se tornar na referência literária que é hoje?
LF: Poderá parecer falsa modéstia responder do modo como lhe vou responder, mas é a verdade. Quando publiquei o meu primeiro livro, há 16 anos, a minha única preocupação era reunir num único volume textos que achava merecedores de alguma atenção, que julgava conseguidos, para evitar que eles se perdessem nas páginas de jornais que morreriam carcomidos em armazéns invadidos por teias, pó e outros factores de desgaste como o tempo implacável. Foi o bom acolhimento de Noventa Palavras pelos amigos, pelos leitores, que me lançou o desafio. Fiz a mim mesmo a pergunta: “e se eu escrevesse uma estória totalmente inventada, se eu entrasse para a ficção pura e dura?”. E assim nasceu A Saúde do Morto, em 2002. E como aqui a generosidade do público receptor foi ainda maior, aí sim acreditei que poderia vir a ter futuro no mundo das letras e resolvi não parar. E chegámos ao ponto em que nos encontramos!
Angop – Prosa, romance e ficção policial, em que campo literário mais se sente à vontade para debitar os pensamentos?
LF: Eu só escrevo prosa, ao menos até agora, embora tenha muita gente a desafiar-me a ver se tento a poesia. Digo sempre que não me julgo talhado para o verso, sou mais homem de prosa, e dentro da prosa o meu género predilecto é, indiscutivelmente, o romance. Tenho escrito também alguns contos mas é ainda uma actividade, digamos, residual. É claro que a tudo isto temos de juntar a minha ligação à crónica, outro género que aprecio verdadeiramente!
Angop – Tal como tem em Noventa Palavras a referência da sua entrada no mundo literário, o escritor tem outras duas grandes referências. Estamos a falar de João Kyomba em Nova Iorque e Clandestinos no Paraíso…
LF: João Kyomba em Nova Iorque é um livro muito especial, porque simboliza de modo real o vínculo que um autor, um escritor, um criador, pode estabelecer com os destinatários do seu trabalho. Este romance surgiu porque os leitores tinham gostado tanto da saga inicial do feiticeiro mais famoso do território do Uíge em A Saúde do Morto que, praticamente, imploraram pela sequência, pediram A Saúde do Morto II. Entendi que eles tinham razão, estavam certos. João Kyomba, o feiticeiro, tinha sido notável no seu desempenho como personagem e então achei que não haveria mal nenhum voltar a trabalha-lo noutro livro. E assim nasceu João Kyomba em Nova Iorque.
No caso de Clandestinos no Paraíso, é um livro também marcante por uma situação muito específica: abeira-se de um documentário, tem muito pouco de ficção, porque a malandragem que ele narra da primeira à última linha é Luanda nos dias de hoje. Repare que o romance tem 10 anos e continua tão actual como no momento da estreia. E os leitores gostam de obras que lhes falem de um mundo real, concreto ou, no mínimo, verosímil.
Angop – Quais são as suas principais fontes de inspiração?
LF: Gosto muito do passado, daquilo que vivenciei, das estórias que ouvi ao longo da vida ou do que me contam no presente. Tenho alma de contador de estórias e sinto-me dotado de uma sensibilidade aguda para escutar e captar experiências que depois recrio, amplio, ficciono. Bebo muito do mundo que palpita ao meu redor. Sou uma mente inquieta e tudo o que sacode a modorra, a mesmice, entusiasma-me. As crónicas semanais que escrevo há sete anos são uma demonstração disso.
Angop – Já alguma vez o escritor se viu tomado pelas personagens das suas obras?
LF: Sim, claro, e isso é quase inevitável. E esse envolvimento ocorre de diversas maneiras: umas vezes solidarizamo-nos tanto com o percurso da personagem que nos condoemos com os seus percalços e sofrimentos, a páginas tantas passamos a desejar que a ela (personagem) nada de mau aconteça, e se tínhamos pensado de início matá-lo como elemento da narrativa, acabamos por poupá-la, por deixa-la viva unicamente porque nos apaixonámos por ela. Outra situação em que o escritor mergulha na alma da personagem é quando há o interesse de colocar na pele desta elementos autobiográficos, uma lembrança, um episódio, uma vivência. No meu último romance – Silêncio na Aldeia – eu sou, em parte, o escritor que ali aparece, o tal que tenta escrever sem sucesso um grande livro com o intuito de povoar o mundo com leitores, dada a sua assustadora escassez.
Angop – Como caracteriza o estado actual da literatura angolana?
LF: Estamos numa fase boa com muitos criadores, com muita gente entusiasmada e muitas obras nas gráficas, nas salas de apresentação, nas livrarias, nas prateleiras de casa. É um ambiente fantástico, parece existir um pequeno renascimento intramuros, uma espécie de reinvenção do verbo. Mais me satisfaz ainda esta atmosfera quando se tem certeza que quase ninguém se entrega à escrita de livros porque espera ganhar dinheiro. Portanto, as pessoas escrevem porque assumem a Literatura claramente como uma paixão, não é um emprego, não pressupõe uma fonte de remuneração. Do lado da produção, estamos num patamar verdadeiramente animador. Já a respeito da qualidade, não diria o mesmo, mas não sou catastrofista. Nisto de escrevermos livros, não precisamos de entrar em histerias, o mercado sabe autorregular-se: as boas propostas literárias serão aclamadas, sobreviverão, e o que não é bom, a produção deficiente, medíocre, irá parar ao lixo e os seus autores, esquecidos.
Angop – Que acções podem contribuir para o incentivo ao gosto pela leitura no seio da juventude?
LF: Em primeiro lugar, haver coragem de se pôr a ler autores angolanos num espectro mais amplo no sistema de ensino. O factor proximidade é essencial neste esforço. Coloco-lhe o exemplo das telenovelas: qualquer obra da teledramaturgia angolana é mais acarinhada que uma novela brasileira ou mexicana, que até onde sei são os gigantes do género entre nós. Isso porquê? Porque identificamo-nos com o que lá se vê e se diz; reconhecemos os autores que são pessoas com quem nos cruzamos no supermercado, na praia ou nas viagens; porque vemos as nossas ruas, as nossas cidades, os nossos parques…
Levar os escritores às escolas para que conversem com os alunos é outro caminho. Temos de humanizar a relação entre o livro e quem o lê, demonstrar com actos que as estórias que surgem nos livros alguém as cria, alguém as inventa, quando não são pequenas epopeias vividas pelos autores e que eles gostaram de contar no papel mas gostariam certamente mais ainda de partilhar ao vivo. Tornar o livro acessível pelo preço é um terceiro caminho para se ampliar exponencialmente o número de leitores, sendo certo que existirão muitas mais ideias.
Angop – O elevado preço do livro não está a contribuir também para que a juventude deixe de ter o livro como um amigo predilecto?
LF: Também, mas não é a única razão. Os jovens estão a distanciar-se do livro porque, para seu azar, ainda não perceberam que desse modo comprometem terrivelmente o seu futuro. Quando amanhã forem preteridos no mercado do trabalho porque as suas insuficiências resultantes da pouca leitura ao longo do tempo passado são por demais evidentes, perceberão que fizeram muito mal em ignorar os apelos à leitura. Os jovens hão-de aproximar-se dos livros quando descobrirem nisso vantagens competitivas, porque se tornam bem-falantes e nisso batem a concorrência em disputas do quotidiano como conseguir uma namorada ou namorado; porque dominam mais vocabulário e as plateias admiram-nos por isso; porque chegam mais longe em todos os domínios e a sua vida é melhor por isso. Mas para que isso aconteça a sociedade angolana tem de se transformar numa sociedade regida pela meritocracia. Na verdade, enquanto o sucesso for um oásis de vivaços, esquemáticos e filhinhos empurrados pela linhagem de clãs, que não precisam de galgar patamares por via da capacidade, muitos jovens continuarão a pensar que investir tempo na leitura é coisa de betinhos, de distraídos, de esforçados que podem nunca passar disso mesmo: simples esforçados!
Angop – Até que ponto a Lei do Mecenato pode ajudar para que o livro chegue a um preço mais acessível ao consumidor final?
LF: Sem mecenas a Cultura não sobrevive. Haverá sempre necessidade de se tornar baratas as obras de arte – o livro, a tela, a escultura…-, disponibilizá-las a um preço que não é sempre o que reflecte o somatório dos custos de produção. O papel do mecenas é esse, intervir na cadeia de preço para que os autores consigam produzir e o público destinatário tenha como adquirir as obras. Os mecenas evitam que as regras cegas e estritas do mercado – em que a obtenção do lucro é condição primeira e inegociável – castrem o desenvolvimento da Arte.
Angop – A qualidade do produto colocado ao dispor dos leitores satisfaz as pretensões?
LF: Há de tudo. Como na pintura, no estilismo, na indústria automóvel, se quisermos estender a reflexão para campos mais afastados. Há textos de grande qualidade a serem colocados no mercado, em prosa e em poesia, mas existem também os que são verdadeiros e lamentáveis gastos de papel e tempo.
Angop – Em função da fraca qualidade do ensino em Angola, o futuro da literatura não estará em jogo?
LF: Se não se inverter a tendência, temo que os escritores venham a ser uma espécie rara nas futuras gerações. Salvar-se-ão uns poucos que tenham sido capazes de desenvolver a capacidade de correr sobre os pingos da chuva sem se molharem, ou seja, que no contexto da qualidade fraca do ensino, mesmo assim tenham podido absorver conhecimento sólido por via do autodidactismo ou estudando noutras realidades académicas.
Angop – Aponta-se a nova geração muitas deficiências, não acha que está na hora de os mais velhos promoverem mais acções que levem a juventude a mudar de atitude perante a sociedade?
LF: Os kotas – incluo-me nesta tribo – nunca virámos as costas aos jovens. Estamos sempre disponíveis, seja no ambiente das tertúlias como a Maka à 4ª Feira da União dos Escritores Angolanos, nos eventos do Espaço Verde Chá de Caxinde, no auditório Pepetela do Instituto Camões ou na informalidade da abordagem de rua, nas nossas casas, em todo o lado. Os escritores angolanos, exceptuando um ou outro nariz empinado, somos, regra geral, pessoas humildes, desprovidas de vaidade, acessíveis, de trato fácil e que falamos com toda a gente.
Angop – Quanto custa editar um livro em Angola?
LF: O livro em Angola é caro. Preciso descobrir qual é a alquimia de editoras como a Mayamba para se manterem acima da linha de água. São uma espécie de santos milagreiros os que insistem no negócio do livro entre nós.
Angop – Como vê a convivência entre a velha guarda e os jovens escritores?
LF: Saudável. Os mais velhos temos sabido gerir a ansiedade dos mais novos e estes, os jovens escritores, têm feito razoavelmente bem o seu papel de substitutos naturais daqueles que, mais ano menos ano, deixarão de produzir em consequência dos ditames da Biologia, ou velhos e decrépitos, ou mortos.
Angop – Em 40 anos de independência, que nota atribui ao papel da cultura angolana, particularmente da literatura no processo de afirmação do país?
LF: Angola independente foi feita essencialmente sobre a ponta do fuzil, mas quem empunhou a arma para se chegar ao 11 de Novembro de 75 e entendeu, no tempo a seguir, o valor de se preservar as conquistas, de se consolidar a paz, de se trabalhar para o progresso, é produto em boa medida dos ideais, dos princípios, dos exemplos, que se estampam nos livros sob a forma de episódios reais de patriotismo ou narrativas ficcionadas sobre como deve ser a nossa conduta.
Angop – Se recuarmos para um passado não muito distante, vemos que tínhamos no sistema de ensino uma disciplina de História onde constavam textos sobre a História de Angola e seus heróis. Hoje o cenário é completamente diferente. O que fazer para se mudar este quadro?
LF: Tornar a presença de Angola, dos seus heróis, dos feitos desses heróis, mais sólida no ambiente escolar. Não existe outro caminho para que o país continue a produzir fornadas de jovens comprometidos com o seu sucesso, cidadãos patriotas, angolanos que tenham uma verdadeira relação de pertença com a pátria e não elementos de uma estatística humana interessada unicamente no bem-estar e no conforto que o país em que nasceram lhes deve alegadamente proporcionar.
Angop – Não acha que se está descurar uma componente muito importante para a afirmação do país no contexto das Nações?
LF: Tudo passa pela educação, pelo ensino, pela solidez na formação das pessoas. Para sermos um país virado para o exterior, respeitado entre o conjunto de nações que fazem o Mundo, temos de representar uma massa crítica afastada da mediania, em busca incessante dos valores do progresso. Qualquer caminho diferente deste, torna-nos em simples massa amorfa de utópicos e ingénuos. Afirmar-se no mundo é exibir savoir-faire, dotar-se de elementos diferenciadores que obriguem os outros a procurarem-nos, é tornarmo-nos competitivos. E só se chega lá por via da formação, do conhecimento!
Angop – Que mensagem quer deixar aos jovens jornalistas e aos jovens escritores?
LF: Sejam brilhantes no que fazem e isso só se consegue com o estudo e um investimento na qualidade humana. Pessoas honestas, honradas, humildes – chamar-lhe-ia a regra dos três “H” e dotadas de conhecimentos que se consolidam sem parar, são os únicos cidadãos com quem pode contar uma sociedade estruturada sob o princípio da verdade e que investe na continuidade. Fora disso será apenas alimentar quimeras que podem levar a vitórias piricas, balofas, mas sem consistência.
PERFIL
Luís Fernando, nascido no Uíge, em Outubro de 1961, escritor e jornalista, publicou o seu primeiro livro Noventa Palavras, em 1999. Seguiram-se-lhe A Saúde do Morto; Antes do Quarto; João Kyomba em Nova Iorque; Destinos no Paraíso; A Cidade e as Duas Órfãs Malditas; Um Ano de Vida; Dois Anos de Vida; Três Anos de Vida e Letras na Brasa, Silêncio na Aldeia. Participou, com 14 outros autores, na colectânea de contos Estórias Além do Tempo.
Em co-autoria com o escritor português Eduardo Águaboa escreveu o livro Taras de Luanda, recentemente lançado. Foi admitido, em 2009, como membro da União de Escritores Angolanos (UEA), depois de dez anos a publicar com regularidade. Jornalista desde os 17 anos de idade, foi chefe de redacção e director de informação da Radiodifusão Nacional de Angola. Foi igualmente director geral do Jornal de Angola e do semanário O País.
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