MBWENGA : CASAMENTOS NO SEIO DA MESMA FAMÍLIA

© Fotografia por: Silvino Fortunato | Edições Novembro

Por Silvino Fortunato

Os casamentos, segundo o costume dos povos Basoso e Bayaka, podem ocorrer entre membros da mesma família, desde que se cumpram todos os rituais necessários para o efeito, uma prática que visa a manutenção da integridade familiar, segundo observaram os mais velhos. “É para a família não poder ir distante. Não pode ser dispersada”.

Segundo o mais velho Pedro Kagioya, regedor de Kukaka, geralmente o jovem, a dado momento, começa a andar em busca de amizades e quando o pai vir isso tem de o chamar para saber das intenções que tem para com a menina cuja casa esteja a frequentar. Caso confirme que está a cortejar a moça, então o pai tem a obrigação de começar a instruí-lo sobre os desafios da vida adulta, assim como para ter em conta as ligações familiares.

Em caso de se verificar proximidade familiar, o pai tem de se precaver de possíveis conflitos, antecipando-se aos progenitores, sobretudo se se tratar de uma sobrinha, filha de uma irmã, que deve merecer uma preocupação ainda maior, por causa das responsabilidades que se tem na hierarquia familiar.

“Quando você vê que a sua sobrinha já dá, vai falar com a sua irmã (mãe da menina), dizendo-lhe ‘eu estou a ver que a minha filha já é crescida e o meu filho também já é crescido. O meu pensar é que a minha sobrinha tem que casar com o meu filho, para evitar problemas’”.

Há casos em que, como disse Pedro Kagioya, se regista o envolvimento entre a filha de uma sobrinha e o filho do tio desta. Nesta situação da filha da sobrinha que gerou a filha, que é considerada neta, o pai do rapaz, que é no caso o chefe desta família, vai falar com os sogros dele. “Aquela minha neta é minha mulher, vou entregar a sua mão para o meu filho”.

Desde sempre nunca houve complicações, pelo contrário o sogro bate palmas, referiu, explicando que a relação no seio da família serve para que “aquilo que a gente trabalha (herança) não caia em mãos de outras pessoas”.

Sem rejeição

Conforme António Panda Mukau, regedor de Kanvau, dificilmente há rejeição nestas negociações entre famílias, havendo satisfação do lado da menina, que até agradece a sorte de terem como genro alguém da família, sobretudo neste tempo que há muita vigarice entre os jovens.

O pai da rapariga geralmente expressa o seu consentimento. “Papá, também gostei. Eu também para nascer esta filha graças a você que me deu a sua filha”, disse, exemplificando, o ancião, acentuando que “onde sai o funji, também é onde voltam os pratos. Desde que o pai pediu à minha filha que a vossa neta seja esposa do teu sobrinho. Agradeci”.

Entretanto, aludiu também ao facto de hoje em dia haver alguma resistência em preparar os jovens para a ligação marital dentro da família. Esta revolução tem como consequência a fuga à paternidade, com muitas meninas a criarem os seus filhos sem os pais presentes.

“É por isso que estamos a ver muitas crianças sem pais, muitas meninas que não são assumidas. A criança tem pai, mas é pai da janela”, disse o velho Mukau, mediante sorrisos sarcásticos, que envolveram todos os presentes da sala nos anexos do palácio da Nova Esperança, a sede municipal dos Mbwenga.

Pedro Kagioya, o mais velho de todos os interlocutores do Jornal de Angola, reforçou, em relação aos rapazes, que “os tios ou os pais não lhe conhecem, mas se gaba na rua que aquele é meu filho”, tendo reforçado que quem “quiser manter” tem de cumprir o respeito que os mais velhos deixaram, como um dos pressupostos da segurança marital.

Depois do consenso no seio da família, são criados os pressupostos para a amigação. 

Na fase de o rapaz cortejar a rapariga, só para este dar a conhecer que está a conquistar a menina, ele tem de entregar entre 20 e 40 litros de malavu, bebida fermentada elaborada a partir de uma espécie de palmeira, chamada tombe, um veículo que lhe vai permitir conversar com os pais da rapariga.

“Eu já conversei com a menina tal, vossa filha, ela me aceitou, mas de modo a que eu não possa me sujar eis a razão por que eu vim para, pelo menos, o pai me conhecer que eu é que estou a conquistar a vossa filha”, sendo-lhe respondido pelo pai que ” vocês é que sabem”, conforme disse ser a linguagem actualmente usada, continuando o progenitor: “vocês se encontram lá e eu não posso impedir nada. O que eu quero apenas é o respeito”.

“A menina é sua esposa”

Cumprido o primeiro passo, seguidamente o moço vai-se preparando para criar outras condições para acompanhar a remessa da carta de conhecimento (carta de pedido), que será entregue à menina como portadora aos pais. “O pai ao receber a carta responde para que o pretendente prepare um dia para vir atrás da resposta da carta”.

Conhecida a comunicação dos pais da menina, o jovem, sempre ajudado pelos seus tios e pai, prepara, novamente, um outro dote e já em companhia dos parentes vão ao encontro dos pais da menina onde lhes é dito que “a partir de agora a menina é sua esposa”. É levada a menina depois do ritual de casamento, para depois do nascimento de dois ou três filhos, ser-lhe comunicado que os tios estão a cobrar algo para simbolizar a amigação, ou seja o casamento, cujo valor ou a quantidade das coisas a pedir depende de cada família.

Para a formalização da relação marital geralmente é paga alguma coisa, referiu o velho, afirmando que desde os tempos antigos que se cumpriu isso e que os mais velhos falavam não é por ser neta que vai manter sem o cumprimento de alguma obrigação, não. “É seguir as regras, as vias próprias, de maneira a que ele fique sem tristeza”.

Questionado sobre o encarecimento dos dotes, com obrigação de entregar animais e bebidas em quantidades que se podem considerar exorbitantes, o velho retorquiu que “pedir cabrito não é crime, são os nossos pais que deixaram este tipo de ritual. Se você pagar hoje, amanhã também vai ter de volta”.

António Panda Mukau justificou ainda que tem de se entregar sempre algo, nem que seja por simbolismo. Antigamente, disse, entregava-se uma porção de tabaco enrolado em forma de trança. Às vezes entregava-se um porco, um cabrito e já estava a amigação consumada, lembrou, enfatizando ser um ritual próprio do povo e que o incumprimento pode significar a violação de direitos do costume e nestes casos ser-se dado como “cazukuteiro” (vigarista).

Ainda assim, para o idoso Francisco António Kisanga, hoje as coisas tendem a mudar, havendo quem procure encarecer as dotações com pedidos excessivos para a consumação dos casamentos. “Também vender, nunca vendemos as nossas filhas, são as mudanças deste tempo”, referiu, justificando a tendência.

“Não há dendêm  que saia fora do cacho”

Quando o homem ou a mulher morre, tudo depende da família. Caso morra o marido, a família do malogrado comunica à família da viúva a intenção da sua manutenção no convívio deles, que esta nunca vai manter outro homem. “Eles têm de ser claros que ‘já temos um marido que vai suceder esse defunto’. Isso continua ainda nos dias de hoje”.

Geralmente o sucessor é o irmão do defunto ou um sobrinho dele. Se o sobrinho ou o irmão estão na altura de manter (formar família, casar), independentemente do número de mulheres que já tenham, é-lhe entregue a viúva para desposar, aclarou Pedro Kagioya, avançando que quando não houver alguém da família do defunto em condições de assumir a viúva, então ela é livre de voltar à sua família, onde vai encontrar outra oportunidade de amigação.

Kagioya sublinhou que o ritual consagra o princípio de protecção das crianças dentro da família dos seus pais. “Nós é que mantemos a nossa mulher, mas durante o convívio, o tio morreu, o mano morreu, se nós desprezarmos essa senhora, para onde ela for vai levar as crianças e quando estes gerarem os seus futuros filhos não mais vão regressar em redor da família originária”. E também, conforme os princípios da filosofia local, “não há dendêm que saia fora do cacho”.

Então, disse Kagioya, há a necessidade de manter essa senhora no seio da família do primeiro marido, não podendo ir numa outra família (clã), porque não é direito deles e quem assim não proceder e fazer de outro modo paga uma multa pesada. Hoje em dia a penalização pode atingir até 75 mil kwanzas, além de outras dotações.

Para esta comunidade remota dos Mbwenga, 75 mil kwanzas é um preço muito elevado a pagar por uma infracção como esta, que se acrescenta ao facto de a mulher ser obrigada a deixar os filhos gerados da relação anterior, isto é, com o defunto.

Nos casos em que não houver alguém para assumir a responsabilidade marital da viúva, esta continuará a viver na residência que repartia com o defunto, caso tenham gerado filhos. Quando a viúva decide encontrar outro marido fora dos costumes referidos, ela é expulsa e a casa fica para os filhos, nem que sejam crianças.

Esses filhos, quando atingirem a idade adulta, se tiverem sido levados pela mãe, voltam à procedência obrigatoriamente para ocuparem as propriedades do seu falecido pai. “Nada ficará com a mulher”, como revelou o mais velho Francisco António Kisanga, para depois declarar que “na nossa tradição, a mulher que fugiu o marido, mesmo nas condições referidas, vai com as mãos vazias”, seguindo o princípio filosófico local “não há dendêm que saia fora do cacho”.

Aquela que negar viver maritalmente com o cunhado ou o sobrinho do defunto, continuou, volta para a sua família de mãos vazias. “Não tem nada a ver com os nossos bens”, que geralmente se traduzem na casa, lavras ou animais, dada as características da comunidade, sem muitas posses.

 

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