Por Patrício Batsikama
Resumo
Entre 1960 e 1975, a participação efectiva da Mulher na Luta de Libertação foi árdua e há uma instituição notória OMA (Organização da Mulher Angolana) que nos interessa. Da independência de Angola (1975) até as primeiras eleições gerais (1992), a participação da Mulher é real nas Forças Armadas, na Administração pública ou no aparelho do Estado. Da celebração da Paz em Angola (2002) até as novas eleições legislativas (2008) e gerais (2012), os frutos da participação da Mulher são evidentes: Novo Código da Família, Ministério da Família e Promoção da Mulher, Constituição de Angola de 2010, etc. A Senhora General Luzia Inglês Van-Dúnem fez parte da instrumentalização deste desiderato, e abordar-se-á resumidamente aqui o essencial.
Introdução
A importância da mulher nas sociedades angolanas é tripla: (i) responsável pela socialização e estabilidade social; (ii) agente econômica potencial e dinamizadora de capitais; (iii) reserva política do espaço comum.
As heranças socio-históricas são visíveis na anatomia social feminina angolana de maneira que nos interessa aqui trazer uma análise antropológica destas heranças, tentar percebê-las na vida social das angolanas, para depois fazer uma pequena “história social” da Luzia Inglês Van-Dúnem, “Camarada Inga”.
Escolhemos essa cidadã angolana por três razões. Primeiro pela sua história peculiar, rica e típica da mulher guerreira angolana, detentora dos três itens acima citados. Segundo, é curioso notar uma ausência da mulher nos anais da História de Angola, quando na verdade o ator feminino sempre presenciou as etapas transformadoras em África. Terceiro pela nossa linha de pesquisa sobre Estado-nação em Angola, onde a contribuição da mulher é fundamental. A “Camarada Inga” é uma amostra interessante nesse aspecto.
Trabalhamos em três categorias de fontes: (i) documental: diferentes fundos arquivísticos em Angola, Portugal nos serviram; (ii) história oral: entrevista por nós e outras já publicadas; (iii) ensaios: uma bibliografia modesta existe sobre as figuras femininas. Destas fontes, interessa-nos apresentar apenas os resultados das nossas humildes comparações.
Estudo de Mulher e Feminismo em África
Desde o século XX vários países introduziram a discussão na academia sobre a mulher, o que ganhou consistência nos Estados Unidos de América e alastrou-se rapidamente para a Inglaterra, França, Irlanda, Alemanha, Rússia, etc. Por outro lado, e face às dificuldades de abordagem, constituem interessantes esforços metodológicos que se deu a este estudo. A Revolução Francesa (1789-1799) semeou os primeiros suportes aos “Direitos das Mulheres”, que se efetivaram em 1870 e 1871, quando um grupo de mulheres na câmara dos deputados era considerado de feminista e as operadoras eram discriminadas. Embora a Inglaterra tenha politicamente rejeitado tal postura, Jeremy Bentham elogiou a igualdade de direitos entre Homem e Mulher.
As mulheres africanas na luta de libertação da África foram herdeiras sociais de um heroísmo feminino: elas pegaram nas armas na elaboração de estratégia e na vida civil para alcançar a libertação da África entre 1954-1960.
O estudo da professora Teresa Okure traz uma discussão metodologicamente diferente aos Estudos feministas norte-americanos. Por um lado, não separa mulher e homem, e coloca o problema de gênero na mesma leitura que o da raça. Constrói um feminismo antifeminista. Por outro, redefine o conceito da igualdade em África. Na nossa leitura, tratar-se-á de uma outra forma da “aceitação entre as diferenças” face a dominação masculina.
A questão de matriarcado que foi, assim o provou Cheikh Anta Diop, uma realidade africana que congregou as diferenças sociais, o que alguns antropólogos identificaram como “ginocracia”.
A influência dos estudos feministas terá originado da Europa, logo depois das primeiras independências. Inicialmente, entre 1960-1970, não se tratavam de estudos nas academias uma vez que as próprias instituições acadêmicas ainda estavam em reestruturação. As mulheres foram mobilizadas em mobilizar as populações em programas sociais com aproveitamento político. Com as guerras e a discriminação da mulher –entre 1972 e 2003– as discussões sobre a Mulher foram multiplicadas, e assumidas em algumas universidades12: entre 1972-1984 são notórias as contribuições teológicas13; entre 1987-2003 começa o ativismo feminista nas universidades como arena de sensibilização, face as consequências da guerra. As questões pertinentes passaram a ser: (i) como reinserir as mulheres violadas durante a guerra na sociedade; (ii) como rentabilizar o capital académico da Mulher para autoindependência financeira; (iii) mulher na agricultura rural; (iv) aconselhamento das mulheres com HIV; (v) empoderamento da mulher; (vi) lideranças em várias arenas continentais, etc. Interessa-nos ver, no ponto a seguir, os três pontos que define a mulher na cosmogonia angolana.
Mulher na cosmogonia angolana
Partiremos dos resultados de uma análise categorial da mulher angolana:
(i) Responsável
Na cosmogonia angolana, a mulher é socialmente considerada como responsável da primeira educação da criança, apaziguadora das instabilidades emocionais do marido e a garante do bem-estar familiar (garantir a cesta básica, higiene familiar, saúde familiar, etc.). A nível familiar e do clã social (ou mesmo territorial), a mulher é o centro da estabilidade entre várias famílias e clãs.
(ii) Agente econômica
Os primeiros relatos dos exploradores (católicos, aventureiros, comerciantes, etc.) indicam-nos que “é a mulher que trabalha, pois os homens são preguiçosos”. Embora tenham mal percebido, todos eles acertam num aspecto: a produção agrícola foi na inteira responsabilidade da mulher, ora os Bantu (maioria populacional angolana) constituem um povo agrícola que é o motor fundamental econômico20.
(iii) Reserva política
É curioso que apesar da pertença social seja uterina nas sociedades angolanas – salvo nos Lunda, que é patrilinear também – as mulheres quase mantinham um “silêncio simbólico” nas questões políticas. Elas eram aparentemente representadas pelos seus irmãos (mais velhos ou mais novos) de forma pública. Na verdade, foram elas as decisoras: os seus irmãos se limitavam apenas a cumprir as suas orientações.
Existe uma discussão sobre esse assunto, em relação a Angola. A participação das mulheres na luta de libertação de Angola é um facto, embora não orquestrada com pompa que alguns gostariam, talvez. Paulina Chiziane e Dya Kasembe publicaram contribuições valiosas sobre a questão da Mulher na construção de Angola. Nesta discussão há uma tese de Doutoramento interessante de Margarida Paredes que, na verdade, é uma abordagem antropológica que debita a discussão feminista na vertente de “depoentes: vozes feministas”. A professora Paredes elaborou um texto relativamente interessante sobre Deolinda Rodrigues que, na verdade, suscita o interesse de estudos feministas em Angola. Nos dias de hoje essas vozes multiplicaram-se, e não se limitam apenas às antigas combatentes: nos espaços públicos, nas redes sociais e, timidamente na academia angolana, jovens mulheres proporcionam uma plataforma de discussão. No ponto a seguir iremos nos limitar aqui no caso da Luzia Inglês Van-Dúnem.
Luzia Inglês: Neta de uma autoridade local
Na sua chegada em Luanda, no dia 18 de Março de 1885, logo depois dos acordos na Conferência de Berlim, o Bispo americano William Taylor fez questão de informar as autoridades portuguesas da sua missão evangélica. Ele optou ir ao interior, para instalar os seus “postos de evangelização” e inteira colusão com as autoridades locais. Entre Outubro e Novembro de 1893, Mateus Pereira Inglês acordou-se com os evangelistas americanos na instalação de um “posto” numa grande extensão territorial cuja pequena parcela dela é hoje conhecida pelo topónimo de “Quinguelegi”, na província de Kwanza Norte. Quinguelegi significa “terra de (Mateus) Inglês”.
Mateus Pereira Inglês terá sido um Kilamba dos Dembos antes de aceitar a fé cristã26. Os cristãos contam a história dele depois de aceitar a fé cristã. Antes disso ainda é necessário investigar. Nas nossas recolhas na região de Quinguelegi, encontramos quatro origens ligadas às terras que Mateus Inglês herdou: (1) Kajinga; (2) Mbûmb’a Mbulu28; (3) Ndala ki Mbanza29; (4) Mbamba ya Nzungu, arquivos e entrevistas de Joseph Miller. Trata-se de um “espaço dos Dembo” já visível em pós-Batalha de Mbwîla, de acordo com a dispersão dos militares depois desta famosa batalha.
Numa voz de humildade, a sua neta confidenciou-nos:
“O meu avô era rico… Ele tinha muitos bois…, muitas terras… ele tinha muitos escravizados… Temos uma imagem onde ele está vestido de branco… com um cavalo. Quando o branco veio… lhe deram o título de capitão…”.
Esta parece-nos a óbvia razão principal, entre outras, que levou os missionários metodistas evangelistas encontrarem-se com ele, na perspectiva de ter autorização de instalar os “postos de evangelização”. Em contrapartida, ofertaram-no um novo conforto: transporte (cavalo), novas roupas (uniforme diferencial com o povo), novos utensílios e posteriormente as armas ao fogo (uma vez que se tratava de uma autoridade de terra e militar: Kilâmba), que comandava entre os Dembo, Songo e alguns Vângala (Imbângala).
Filha de um Reverendo nacionalista
Guilherme Pereira Inglês assumiu o pastorado da região centro ocidental da Igreja Metodista, depois da morte do pastor Pedro Neto. John Marcum informanos que ele era superintendente que reorganizou a igreja (que o pastor Pedro Neto deixou) e que proporcionou a criação das condições logísticas quer na formação dos angolanos, quer no bem-estar no seio da comunidade cristã. Como nacionalista, o seu trabalho é apreciado em três aspectos: (1) apoio à luta clandestina: mobilidade dos independentistas, pequenas logísticas e algumas provisões alimentares e higiénicas para as famílias; (2) protecção dos combatentes angolanos sob cobertura eclesiástica: entre estes, cita-se Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola; (3) participação diplomática para luta de libertação: secretamente, envolveu-se em algumas arenas diplomáticas (ONU) para expor a questão de Angola. A PIDE-DGS terá descoberto esses três aspectos entre 1958 e 1960, e percebeu-se que Guilherme Pereira Inglês teve um papel preponderante na mobilização dos Dembos e dos cristãos, na luta armada de Março de 196137. O professor John Marcum diz o seguinte a respeito deste nacionalista:
Rer. Guilherme Pereira Inglês, an African Methodist minister in his fifth year as district superintendente in the Dembos, remained in his village after most others ahd fled from Portuguese air raids. There Portuguese soldiers sought him out. He was ‘betean, then shot and, along with his local pastor, Christivão da Silva, dumped in the Danges River.
Numa entrevista à Revista Figuras & Negócios, Luzia Inglês Van-Dúnem lembra-nos como foi morto o pai:
O meu pai foi levado entre 20 e 21 de Março de 1961, no dia 22 veio a aviação bombardear, nós éramos crianças! Contaram os sobreviventes que o Reverendo Guilherme Pereira Inglês, o meu pai, primeiro cortaram-lhe uma orelha, depois o nariz, um braço e outro de depois deram-lhe um tiro de misericórdia, foi tortura! porque eles acharam que o meu pai era o Leão dos Dembos, porque mentalizava os seus crentes contra o colonialismo.
De acordo com as informações disponíveis no fundo arquivístico da PIDE-DGS, Guilherme Pereira Inglês instruía actos políticos subversivos entre 1957 e 1960, e tinha na sua responsabilidade vários pastores, entre os quais Moisés Domingos Cafala de Bulatumba, Cristovão Miguel da Silva de Piri, Suldré José Nobreca de Quipenene (Dange), Pascoal VanDúnem de Quimbinda (Quitexe), Julião João Webba de Muconda, Namboangongo, Francisco de Sousa Santos de Quimar (Namboangongo), Francisco António de Nascimento de Quipedro (Caipemba), Filipe Martins de Feitas de Mazumbo (Caje), Joaquim António Francisco de Cunja (Dange), Domingos da Silva de Cambamba (Dange) e Sebastião João Rodrigues de Bulatumba (Quibaxi).
As populações consideravam as suas igrejas e seus pastores negros como segurança social. As matanças sistemáticas dos pastores desequilibraram essas esperanças de maneira que as populações começaram a fugir em massa. Com a visita de alguns missionários – Ralph Edward Dodge (americano), Edgar Cooper (inglês), Edwin LeMaster (americano), etc.- os angolanos denunciaram as atrocidades. Edwin LeMaster publicou o horror que vivenciou em Angola em 1961.
Na fuga massiva das populações, a adolescente de 13 anos Luzia Inglês apanha a caravana que conduzia a Leopoldville (atual Kinsâsa). Desde 1960, a independência do Congo fez com que a capital deste país fosse considerado como um espaço geoestratégico para independência de Angola. Mas com o assassinato de Patrice Lumumba, a desolação foi grande e isso não escapa nas memórias da Luzia Inglês:
O meu pai [Guilherme Pereira Inglês] ficou muito triste, depois de ouvir a notícia sobre a morte do primeiro ministro congolês, Patrice Lumumba. Ele ouviu a notícia, a partir da Voz de América… num aparelho de rádio que tínhamos em casa…
No ponto a seguir iremos falar da Luzia Inglês. Como podemos notar, o ambiente social onde ela se encontrava até 1961, as ocorrências que enlutaram milhares de famílias em Março de 1961 forçaram a adolescente integrar a luta de libertação. É disto que falar-se-á no ponto a seguir.
Luzia no “caminho cheio de espinhos”
Durante vários meses de caminho, Luzia Inglês viu horror: pessoas mortas, massacradas, animais a nutrirem-se dos corpos em decomposição, etc. Durante este calvário – desnutrida, vulnerável a todo ataque animal ou colonial – a “Tia Inga” percebeu-se (embora ainda criança) as razões pelas quais o pai dela e vários outros nacionalistas foram barbaramente mortos: luta contra o colonialismo e pela independência.
Além de horrores, ela percebeu-se do sacrifício pela causa. Para sobreviver, foi necessário trabalhar nas lavras, beneficiar-se de hospitalidade e, nas suas próprias palavras, “de um prato de funje quente, um banho em mínimas condições… Foi um sacrifício enorme”. É assim que ela chegou a Leopoldville, em 1964 como refugiada, mas será na Escola de 4 de Fevereiro do MPLA em Brazzaville que ela será enquadrada como pioneira-guerreira. Como consta nos arquivos, ela beneficiou das observações médicas de diferentes médicos: [Eduardo Macedo dos] Santos, V. Lopes e Guadalupe. E entrou naquele internato-escola 4 de Fevereiro do MPLA.
Do fundo arquivístico da PIDE-DGS, ela é mencionada nessa escola. Num total de 21 adolescentes, ela mostrou melhores qualidades de aprendizagem e foi admirada pelos seus instrutores no internato de 4 de Fevereiro. As recomendações dos seus instrutores levaram-na imediatamente às fileiras das FAPLA, uma vez que assim se lê numa informação receptada pela PIDE-DGS,
[…] ela aprende com celeridade, e mostra habilidades interessantes nos trabalhos práticos… Interpreta claramente as mensagens… e executa-as com maior precisão. Pensa de forma rápida […]
E numa entrevista, ela admitiu-nos:
Se, na verdade, eu fui boa em algumas coisas, devo admitir que as matemáticas me complicavam no princípio… até, certo dia… aprendi a ter o jeito… foi graças aos professores…
Na base desse capital personalístico, Luzia Inglês será enviada à II Região Político-Militar do MPLA. Os seus instrutores militares notaram a mesma coisa, de modo que, em 1967-1969, valeu-lhe consideração que – na ideia de oferta de bolsa de estudo para exterior – se resumiu nessas palavras: (i) humilde; (ii) serena; (iii) determinada [sabe o que quer] e (iv) espírito de sacrifício pela causa colectiva.
Contudo, interessa-nos aqui frisar dois aspectos da trajetória dela a partir de 1961 e 1969:
A adolescente Luzia Inglês conheceu uma ruptura drástica: de uma menina sob cuidado da família, com proteção familiar (que ia além do núcleo familiar: pai, mãe e filhos) passou a uma jovem “livrada a sua sorte” sem teto. A experiência que conhecera tornou-a forte, pois ela percebeu-se da crueldade que a causa (luta contra o colonialismo) lhe impunha, o que lhe obrigava a ser forte e seguir a frente;
Da formação ideológica à formação militar, ela levou uma vida tensa: (i) individualmente: do “espírito trabalhador” como herança social, entregou a sua vida para alcançar a causa; (ii) coletivamente: do capital ideológico e militar adquirido, ela prontificava-se sempre que era necessário integrar nas frentes, nas emboscadas ou nos árduos trabalhos de voluntariado ocupados pelos “homens”.
Essas qualidades lhe custaram a saúde, tal como está patente em alguns arquivos (ver o documento 2). Mas, apesar de doenças que resultaram da longa marcha, ou das constantes dores de cabeças e de peito, ela não renunciou das suas convicções para a luta contra o colonialismo português. Predispunha-se, sempre que possível, a cumprir mais uma ordem do seu comandante ou dos seus camaradas necessitados50. Isso tudo agravou-lhe a saúde de modo que, finalmente, recebera uma bolsa para Rússia onde foi se formar em Rádio e telecomunicações militares, em 1969.
O objetivo de lhe outorgar essa bolsa era, além da beneficiária ser merecedora desta oportunidade, que poderia aproveitar-se de tratar da sua saúde. Tratava-se de uma “camarada” com capitais culturais rentáveis para a luta de Libertação, cujas heranças sociais estavam ligadas com a mesma causa51.
É notório perceber – nestas paragens – que a aceitação da mulher na luta de libertação, de forma geral, não pode ser visto como um favor machista: terá sido pelo mérito. Partindo dos pressupostos levantados pelo sociólogo Pierre Bourdieu sobre no seu esquema sinóptico das oposições pertinentes52 sobre a realidade social sexuada com hierarquias simbólicas ao detrimento do sexo fraco, Luzia Inglês seria um campo que questiona a sociodecéia masculina, expressamente aguda nas circunstâncias da guerra para a libertação de Angola. Dois fatos são de relevância sobre esse aspecto: (1) nos dias de hoje ela é a primeira General das FAA na Reserva; (2) na liderança da OMA materializaram-se planos estrategicamente bem calculados que permitiram hoje – com auxílio do poder executivo – que se fale da igualdade de gênero.
Importa realçar que as ideologias do MPLA atribuíam e ainda atribuem a mulher um espaço especial, o que se verificou – embora em teoria – no Congresso de 1977, com Angola independente.
Voltando à jovem Luzia Inglês, interessa-nos realçar dois aspectos importantes antes desta bolsa, e faremos isso à luz da teoria de sociodecéa masculina:
Pelo nome – Inglês – é muito provável que as suas origens sociais teriam servido de algum motivo para a sua elegibilidade. Mas, está posto aqui em evidência a sua trajetória ímpar, sua entrega à causa e o capital simbólico tão precioso para a guerrilha;
Pela sua condição de mulher – tendo em conta as posturas comunistas face ao imperialismo – a igualdade de gênero poderia favorecer-lhe, por um lado. E, por outro, proporcionar-lhe um campo propício de elegibilidade. Os pareceres dos seus instrutores, dos médicos e as circunstâncias permitiram que a sorte batesse à sua porta.
A prática e habilidade da mesma constroem no executor uma imagem de poder simbólico para quem o aprecie desde que os resultados sejam úteis54 . A admiração pode ser efémera, demorada ou contínua. Tudo depende, por um lado, do próprio indivíduo consoante o seu perfil e objetivos na coletividade. Por outro, importa mencionar as regras e exigências da concorrência que, por si e pela dinâmica, envolvem muitos fatores.
Filha de um pastor intelectual, a jovem Luzia Inglês tinha noção da importância de know-how, tecnicidade profissional ou acadêmica e “ideologias anticolonialistas” para alcançar a independência. Como veremos adiante, é a mesma postura que tomou na liderança da Organização da Mulher Angolana, embora os contextos tenham mudado. Durante toda a luta de libertação, ela desempenhou as funções militares. Numa palestra que proferiu em Milão, no dia 16 de Setembro de 2015, responde a uma pergunta55 da seguinte maneira:
Durante toda a minha vida, sempre fui militar. Passei toda a minha juventude nos treinos militares, especializei-me em telecomunicações militares … Casei-me.. sempre na Frente do Combate… Lutávamos para independência do nosso país …
Do seu regresso em 1970 recebeu a responsabilidade de financeira e logística de toda a Região Leste. Em 1971-1972, ela serviu de inteligência militar na descodificação de mensagens e a expedição de informações e gestão das mesmas junto ao Comitê Diretor e a II Região Político-Militar. Mais tarde, será a responsável da Estação de Comunicações em Kasamba, pois reconheceu-se nela a interessante mobilidade, rapidez e precisão. Isso lhe valeu a merecida promoção de chefiar todas as comunicações do MPLA na capital de Tanzânia, Dar-è-Salam, em 1974: a distribuição de informação sobre uma conferência proferida por Agostinho Neto no dia 7 de Fevereiro de 1974 na Universidade de Dar-ès-Salam57 foi apreciada pela PIDE-DGS e o Arquivo Histórico Diplomático (Lisboa) podem indicar alguns subsídios.
Terá sido por causa das suas qualidades meritórias e sua destreza que Dr. Agostinho Neto “puxou-a” ao seu entourage. O presidente do MPLA conhecia o pai dela e a história social do “capitão” Mateus Inglês na instalação da Igreja Metodista em Angola, e isso parece-nos – na nossa humilde opinião – uma razão sensata. Ainda assim, os fatos indicam que Luzia Inglês foi muito cedo treinada para a causa, e a sua devoção e entrega seriam duas razões históricas desta escolha para o primeiro presidente de Angola.
No ponto a seguir iremos abordar de forma resumida a sua contribuição na Angola independente.
Da Independência às primeiras eleições gerais em Angola
Na instauração do primeiro Governo, ela foi chefe do Gabinete de Centro de Comunicações Fixo de Comandante-em-Chefe, Agostinho Neto. Isto é, continuou com as funções militares.
A independência de Angola foi marcada por duas repúblicas: República Popular de Angola (R.P.A), proclamada pelo MPLA com um projecto de instaurar um Estado-nação específico à ideologia do MPLA; República Democrática de Angola, que infelizmente não existem ainda documentos que nos possa situar melhor sobre o modelo de Estado que se pretendia instalar.
Isto é, Angola nascia numa desintegridade territorial. Com a morte de Agostinho Neto – em 1979 – José Eduardo dos Santos herdava uma Angola invadida pelas forças armadas sul-africanas ao Sul e uma enorme insegurança ao Norte de Angola. Durante esse tempo Luzia Inglês organiza o Centro de Telecomunicações num órgão específico de gestão e refinamento de informações de caráter militar, tal como ela diz a seguir:
… fui assumir a responsabilidade das telecomunicações no Palácio, mas era um simples fax que existia lá, com três funcionários mas havia necessidade de se dar maior responsabilidade de acompanhamento do país em telecomunicações e criou-se então o Centro de Comunicações Fixo do Comandante-em-Chefe e eu fui a responsável deste centro… crie as bases com responsáveis a nível do Estado-Maior e camaradas da Telecom que nos ajudavam na instalação das telecomunicações já em grande escala, dirigíamos já duzentas pessoas; de três pessoas, evoluímos para duzentas58.
Em 1990-1991 a democracia é abraçada em Angola, na esperança de criar um Estadonação. De modo geral, o Estado-nação é criado através da democracia ou da res pública, e obedece variável ou complementamente na base de duas teorias: StaatsNation ou KulturNation. Tendo em conta os interesses geoestratégicos americanos depois da queda da Rússia, foram impostas a Angola uma americanização cujos resultados precipitaram o país ao abismo: guerra civil59. Em relação à guerra civil, a “Camarada Inga”, também conhecida por NINA, nos diz:
“… com essa nova guerra… eu fiquei muito triste, e preferi ir ao mato, onde havia mais segurança… Fiquei mesmo muito triste … porque, como a minha mãe era de Kalandula, eu queria ir lá… ver as quedas de Kalandula… mas depois das eleições, a guerra tinha voltado… e desta vez, na cidade, criando a insegurança para toda gente.”
Na verdade, a realização das eleições na democracia consiste em instituir as bases de StaatsNation ao benefício de Estado-nação. A primeira impressão que se tem é que a democracia estabelece as instituições de Poder consoante a expressão popular (os votos) que os atores políticos devem respeitar, consoante um conjunto de leis aceito por todos. Depois de quase dois anos de guerra (1992-1994), a situação sociopolítica tinha agravado: guerra intensificou a crise econômica, desestruturação das famílias, enfraquecimento das instituições, etc61. Em 1995-1996 criou-se GURN (Governo de União e Reconciliação Nacional) na base das negociações entre as partes para criar os alicerces da tranquilidade para a realização de outras eleições.
O analfabetismo entre as mulheres era de 75%, ao passo que entre os homens era de 24%. Perto de 64% da população não tinha acesso aos serviços de saúde básica, o rendimento dos cidadãos femininos era inferior a 2 dólares americanos. Estava claro que o Estado-nação não poderia construir-se na base destes indicadores, que eram visivelmente resultados da guerra civil, de acordo com o relatório do PNUD, 1997.
Ciente dessa situação, o GURN ganhou bases funcionais, tendo identificado a necessidade de eliminar as sequelas da guerra. José Eduardo dos Santos já avançava, no seu discurso de fim de ano em 1999, a necessidade de revalorizar a Mulher Angolana, que mais sofreu com a guerra civil .
Entre 1991 e 1999, Luzia Inglês acompanhou o esposo a Nova Iorque, como uma “ponta-de-lança” do Executivo angolano na plataforma mundial da concórdia: ONU. Conforme mostramos na nossa Tese, o Estado-nação não existia em Angola, pois os angolanos eram estranhos entre si, matando-se entre si ao ponto de tentar criar uma Angola do Sul. Face a esse quadro, o presidente angolano – José Eduardo dos Santos – precisava ter quadros de confiança e competentes nas arenas internacionais. Ora, o embaixador Afonso VanDúnem é, na verdade, uma individualidade mais chegada ao Chefe de Estado angolano, quer pela integridade que mostrava, quer pela amizade de longa data que ambos tinham. Luzia Inglês, de modo igual, tinha servido ao presidente angolano como responsável de Telecomunicações junto do Comandante-em-Chefe. Isso requer alta confidencialidade. Ela transformou este setor de um simples “gabinete” de três funcionários em um centro com mais pessoas, geriu militares (homens e mulheres) numa disciplina militar rígida.
Uma vez a missão cumprida na ONU, Luzia Inglês Van-Dúnem precisava de assumir outras responsabilidades, desta vez em Angola, para encontrar possíveis soluções aos problemas de Mulher angolana. É assim que foi levada à OMA, organização que já na luta de Libertação, ela fazia parte. Três missões lhe foram confiadas pelo MPLA: (i) revitalização da Mulher Angolana na época pós-guerra; (ii) Reconstrução da Família angolana (sem cores partidárias); (iii) participação da sociedade na edificação de Estado nacional (NationalStaats).
OMA e Luzia Inglês em busca de Estado-nação.
Com a Paz em 2002, o MPLA – partido no poder – interessou-se em implantar o modelo do seu Estado-nação proclamado em 11 de Novembro de 1975, e Luzia Inglês tinha através da OMA a maior responsabilidade de trabalhar nas políticas de inserção das representatividades femininas e de reestruturação da família angolana.
O Estado-nação constrói-se em duas teorias, Staatsnation e Kulturnation. As eleições, o Executivo, a Legislatura, a diplomacia e as forças armadas constituem suportes do Staatsnation. Faltava então o Kulturnation.
Dois instrumentos já implementados identificavam os problemas: Simpósio sobre a Cultura Nacional e FENACULT. Por ter, parcialmente, desvirtuado dos primeiros pressupostos de Kulturnation no plano social, a OMA parecia para o MPLA e para José Eduardo dos Santos um novo instrumento de actuação junto da sociedade, uma vez que, assim diz o ditado, “a cultura é o povo”.
Kulturnation implica que várias etnias ou grupos societários unidos socioculturalmente estejam em franco diálogo, aceitando as suas diferenças sociais, culturais e políticas de modo que se cultive o interesse de buscar no outro a vontade de viver em conjunto, assim como de partilhar os benefícios e tarefas da cidadania.
Oriunda de uma experiência militar excepcional, Luzia Inglês terá traçado a sua estratégia, reunido o seu elenco e estruturado um plano de acção. A experiencia militar lhe terá servido, de alguma forma. Para reestruturar a Família, era necessário instituir o Ministério da Família e Promoção da Mulher, por um lado. Por outro, era necessário forjar o Código da Família, servindo-se da força da lei para implantar um comportamento psicossocial aos Angolanos.
Entre vários problemas identificados, notava-se a pobreza simbólica da mulher. A mulher não detinha potenciais capitais acadêmicos, políticos, financeiros ou econômicos. Essas faltas não resolviam o seu problema, de modo continuava vulnerável a todas violências possíveis.
O presidente da República –depois de auscultação do conselho militar– prosseguia na promoção de Luzia Inglês à patente de General na reserva. Com esse novo capital muito significativo para um país pós-guerra onde o poder militar é sentido pelos civis, ela poderia defender os civis ao materializar – ainda que seja no ponto estratégico de criar as bases – as medidas sobre a “Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres” – em vigor desde 1981 na ONU – que estabelece o quadro institucional da igualdade entre homens e mulheres.
Em 2001, Angola tinha:
(1) 34 deputadas contra 220 deputados;
(2) 5 ministras contra 27 ministros;
(3) 4 vice-ministras contra 41 vice-ministros;
(4) 2 mulheres embaixadoras;
(5) Uma mulher administradora do município;
(6) Etc
Naquela altura, ela totalizava apenas dois anos de mandato. Em 2012, passados mais 11 anos, o quadro se apresenta da seguinte maneira:
(1) 36,5% das mulheres são parlamentares
(2) 29,6% das mulheres eram ministras
(3) Há 2 mulheres governadoras
(4) 11,23% das mulheres estão na administração municipal
(5) Etc.
Na sua entrevista, Luzia Inglês é dessa opinião:
Se as mulheres aumentarem o seu nível académico… pretendemos que muitas delas assumam cargos de responsabilidade a nível das comunas, municípios, províncias, não só no parlamento. A nossa luta, e quero que isso fique bem claro, não é para ocupar espaços com mulheres mas que, ao concorrer, a mulher mostre as suas capacidades, as suas habilidades, as suas competências, a sua capacidade de liderança e gestão. E fizemos o aconselhamento das mulheres neste domínio.
Vamos agora retomar a questão de Kulturnation. A cultura representa simbolicamente o valor socio-histórico de um povo, de maneira que utilizar essa teoria na instituição do Estadonação é importante para eliminar a pobreza simbólica que existe entre diferentes ‘grupos’ representativos que ocupam o território. Nesse aspecto, o empoderamento da Mulher é uma opção, quando é merecidamente um resultado do próprio mérito. Da mesma forma, será necessário para a criança. Além de instituições afins, o Ministério da Família e Promoção tem definido políticas, muitas delas inseridas na Constituição votada em 2010. Limitaremos aqui na Mulher, uma vez que a OMA versa-se na Mulher e esta é a educadora primária da criança.
Embora ainda falte muita coisa, é de fato claro que a “Camarada Inga” (NINA) aplicou os seus capitais militares para instituir as bases da revalorização da mulher, e criar bases jurídicas para efeito. O Censo populacional realizado recentemente (2014) mostra que a população feminina é superior à população masculina. Contudo, verifica-se maior aderência das jovens mulheres às universidades, nota-se cada vez mais a ideia da mulher empreendedora, expressa-se abertamente hoje dos direitos iguais entre os gêneros, etc. São, em boa parte, os resultados do plano estratégico que em 1999 Luzia Inglês estruturou e que, ao longo do tempo, foi se corporizando.
Em Angola, no período entre 2002 e 2012, instituiu-se NationalStaats. Isto é Estado nacional, que é a base principal de todo Estado-nação. Trata-se de modelo traçado pelo MPLA em 1975, e materializado durante dez anos. Verifica-se a integridade territorial, normalização constitucional, Forças Armadas unidas, etc. Isto é, o StaatsNation – enquanto teoria – se verifica de forma parcial, mas ampla também na realidade angolana. Falta agora KulturNation, que é o mais complexo, pois depende de vários fatores. A OMA parece-nos intervir no aspecto social, a partir do valor da Mulher nas sociedades africanas em geral, e angolana especificamente.
Conclusão
A presença da Mulher na Luta pela Libertação de Angola é inquestionável. Apenas questionamos a rentabilização desta figura nos instrumentos educacionais do “Homem Novo” entoado no Hino Nacional. A participação da Mulher na institucionalização do Estado-nação é evidente. Seria, de igual modo, interessante caso ela estivesse no epicentro da coesão familiar, que é a origem do Estado-nação.
O caso de Luzia Pereira Inglês é uma História interessante, e pode inspirar raparigas nos dias de hoje. Ela representa uma Mulher batalhadora e determinada. Angola nasceu na determinação e custou sangue e sacrifício das pessoas determinadas. Modelo desta Mulher, e tantas outras que existem por aí no anonimato, constituiu um dos aportes da instrumentalização da imagem da “Mãe” para ressalvar os valores e transmiti-los às crianças e aos jovens. Isto é, garantir o respeito dos valores entre os jovens e defesa da sua pátria que mais vale que todo individualismo. Enfim, será na base destes modelos que se deverá se construir a filosofia educacional na metodologia do Ensino de História na escola primária e secundária.
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